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Sono REM e memória (parte 1)

Quando o assunto é neurociência, poucas coisas são mais intrigantes do que a função desempenhada pelo sono, talvez porque seu papel não se resuma a somente uma função, como o enunciado anterior leva a crer. Dentre as várias funções atribuídas ao sono, destacam-se as relacionadas à memória, e neste artigo discutiremos o papel de diferentes fases do sono na consolidação e na avaliação afetiva de memórias emocionais.

O sono REM (rapid eye movement) ou sono paradoxal foi descrito pela primeira vez em 1953 num artigo de Aserinsky e Kleitman, e desde então cientistas tem imaginado qual seria sua função ou se seria mesmo necessário. Vários estudos de privação foram feitos desde então e já num dos primeiros experimentos (Dement, 1960) foi observado que uma privação de 65% a 75% da quantidade normal de sono REM causou irritabilidade, ansiedade e até pânico, mas nada catastrófico, nas palavras do próprio autor. Isto leva a crer que o sono REM influencia na estabilidade emocional.

No que diz respeito à memória, vários estudos concentraram sua atenção na avaliação afetiva e na consolidação de memórias emocionais. Uma teoria de destaque sobre o papel do sono REM (Goldstein & Walker, 2014; Walker & van der Helm, 2009) é a “sleep to forget and sleep to remember”: o sono REM mais do que qualquer outra fase do sono ou a vigília promove uma maior consolidação na memória de eventos emocionais em comparação a eventos neutros (esta é a parte “sleep to remember”). Já a parte “sleep to forget” afirma que o sono REM reduz o tônus emocional da memória, i.e., que o sono REM diminui o potencial de uma memória eliciar reações emocionais durante o processo de recordação. É digno de nota que esta hipótese se aplica somente à memória declarativa e particularmente à memória episódica.

Há na literatura vários estudos que suportam a parte “sleep do remember” da hipótese, mas apenas um que conseguiu evidências para a parte “sleep to forget”. Neste texto, vamos tratar de um artigo (Weisner, C. D., et al., 2015) que procurou testar essa hipótese, qual seja, de que o sono REM é necessário ou, pelo menos, vantajoso para a consolidação de memórias emocionais e que diminuiria a magnitude da resposta eliciada pela recordação de uma memória emocionalmente negativa.

O EXPERIMENTO

Para a realização do experimento, foram recrutados 62 estudantes com uma média de 23 anos (32 mulheres e 30 homens). Os critérios de exclusão foram ter histórico de doença neurológica ou psiquiátrica, problemas do sono, tomar medicação (exceto contraceptivos), ser canhoto, ter deficiência visual, ser dependente de nicotina e ter o índice de massa corporal maior do que 30. Também foi pedido aos participantes que não consumissem cafeína, álcool e nicotina um dia antes do experimento.

Os participantes foram divididos em três grupos: o primeiro foi privado de sono REM (REMD), o segundo foi privado de sono de ondas lentas (SWSD) e o terceiro grupo ficou acordado (Wake). O desenho do experimento foi tal que os participantes tinham uma primeira etapa de codificação de imagens, um subsequente teste de reconhecimento e um teste tardio realizado nove horas depois do primeiro.

Todos os participantes que foram privados de sono dormiram duas noites no laboratório. A primeira delas visava excluir pessoas com problemas graves de sono e possibilitar a adaptação às condições do laboratório. Foram registrados de cada pessoa o eletroencefalograma (EEG), o eletromiograma (EMG) e o eletrooculograma (EOG), que são usados como indicadores das fases do sono.

Após passarem a primeira noite no laboratório, no dia do experimento os participantes chegavam ao local às 20 horas, se familiarizavam com o procedimento, que se iniciava por volta das 21 horas, e às 22:30 as luzes eram apagadas e era pedido aos participantes que fossem dormir. A privação seletiva de sono era performada durante a noite e às 6 todos eram acordados, tomavam café da manhã e realizavam a etapa final do experimento.

O grupo que não foi privado de sono chegava ao laboratório às 8 horas para a codificação de imagens e o imediato teste de reconhecimento. O teste tardio de reconhecimento acontecia às 18:45 do mesmo dia. Durante este intervalo, os participantes continuavam com suas atividades normais. Em todos os grupos, o tempo médio entre um teste de reconhecimento e o outro era de cerca de nove horas.

A tarefa que era pedida aos participantes consistia em codificar 160 imagens, sendo que 80 delas eram emocionalmente neutras e as outras 80 eram emocionalmente negativas. Um slide padrão era apresentado por um segundo e, logo após, os participantes tinham um segundo e meio para memorizar a imagem, então eles avaliavam o nível de agitação causado pela imagem e a sua valência. Os participantes eram informados que iriam ser testados logo após essa etapa.

Durante o teste imediato de reconhecimento, 40 imagens emocionalmente neutras e 40 imagens emocionalmente negativas – sendo uma metade de cada grupo composta por imagens codificadas e a outra metade de imagens novas – eram apresentadas aos participantes. Um slide fixo era exibido por um segundo, seguido da exibição da imagem, por um segundo e meio. Era, então, perguntado aos participantes se a imagem era um das que eles haviam visto durante a etapa de codificação ou se era uma imagem nova, e era pedido também que avaliassem o grau de confiança que depositavam em suas respostas. A acurácia ou precisão, isto é, a diferença entre os acertos e os erros foi usado como medida de performance da memória.

Já durante o teste tardio de reconhecimento, os participantes viram, aos moldes do teste anterior, as 60 imagens negativas e as 60 neutras restantes do processo de codificação e mais 120 novas, sendo metade composta por imagens neutras e a outra metade composta por imagens emocionalmente negativas. Uma tarefa a mais era demandada, a saber, que fosse feita a avaliação afetiva da imagem como durante o procedimento de codificação. 

Essa foi a primeira parte deste artigo, a segunda sairá em breve e contará com os resultados dos testes e sua discussão, além das referências completas dos artigos citados.

Rafael Bossoni

Rafael Bossoni

Sou estudante de psicologia na Universidade Federal do Paraná, tenho 20 e poucos anos (parei de contar) e tenho um gato preto chamado Chiquinho. Adoro discutir os assuntos de meu interesse, como epistemologia, metodologia científica, psicologia experimental e neurociência. Atualmente faço iniciação científica na área de neurofisiologia com ênfase em psicologia fisiológica.