Por Carl L. Hart
Publicado na Nature
Há mais de 25 anos, eu comecei estudar neurociência porque pensava que essa abordagem iria unicamente corrigir o “problema das drogas”. Nessa época, eu acreditava que a pobreza e o crime na comunidade pobre de onde eu vim era um resultado direto do vício em drogas; então, eu raciocinei que se eu pudesse curar o vício, especialmente através de manipulações neurais, eu poderia corrigir a pobreza e o crime na minha comunidade. Mas, aprendi que enquanto a cocaína – e outras drogas recreativas – alteram temporariamente a função de neurônios específicos nos cérebros de todos que ingerem a droga, a vasta maioria dos usuários nunca fica viciada. E em relação ao pequeno percentual dos indivíduos que ficam viciados, doenças psiquiátricas coexistentes e fatores socioeconômicos são responsáveis por uma proporção substancial desses casos de vício. Até hoje, não foi identificado substrato biológico que diferencie pessoas não viciadas de indivíduos viciados.
A noção de que o vício em drogas é uma doença cerebral é cativante, mas vazia: praticamente não há dados em humanos indicando que o vício é uma doença do cérebro, da mesma maneira que, por exemplo, Huntington ou Parkinson são doenças do cérebro. Com essas doenças, é possível olhar o cérebro de indivíduos afetados e fazer previsões precisas sobre a doença envolvida e seus sintomas.
Não estamos perto de sermos capazes de distinguir os cérebros de pessoas viciadas daqueles de indivíduos não viciados. Apesar disso, a perspectiva do “cérebro doente” tem uma influência grande no financiamento e direcionamento da pesquisa, assim como o uso e o vício em drogas são vistos na sociedade. Por exemplo, o recém-lançado e multimilionário estudo longitudinal Adolescent Brain Cognitive Development busca primariamente por dados de neuroimagem para melhor entender o vício entre adolescentes. O estudo coleta informações genéticas e mensura o uso de drogas e o resultado acadêmico, mas falta uma consideração de importantes fatores sociais. Notavelmente, nunca houve um financiamento ambicioso como esse focado em determinantes psicossociais ou consequências (por exemplo, estado empregatício, discriminação racial, características do bairro, políticas) do uso ou vício em drogas.
Essa situação contribui para política de drogas prejudiciais, custosas e irrealistas. Se o real problema com o vício em drogas, por exemplo, é a interação entre a droga em si e o cérebro do indivíduo então a solução desse problema está entre uma de duas abordagens. Remover as drogas da sociedade através da polícia e aplicação das leis (por exemplo, sociedades livre de drogas) ou focar exclusivamente no cérebro ‘viciado’ do indivíduo como o problema. Em ambos os casos, não há necessidade ou interesse em entender o papel de fatores socioeconômicos na manutenção do uso de drogas ou mediando o vício em drogas.
Os efeitos prejudiciais de usar a aplicação da lei como um meio primário de lidar com uso de drogas são bem documentados. Milhões são presos anualmente por posse de drogas e a abominável prática de racismo floresce na aplicação de tais políticas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a posse de maconha foi responsável por quase metade das 1,5 milhão de prisões relacionadas às drogas, e negros são quatro vezes mais prováveis de serem presos por posse de maconha do que brancos, mesmo que ambos os grupos usem maconha em taxas similares.
Uma insidiosa premissa da teoria do cérebro doente é que qualquer uso de certas drogas é considerado patológico, até mesmo o uso recreativo, não problemático que caracteriza a experiência da grande maioria daqueles que ingerem essas drogas. Por exemplo, em uma popular campanha americana antidroga, é implicado que apenas um uso de metanfetamina é suficiente para causar danos irrevogáveis.
Nos anos 80, o uso de crack foi culpado por tudo desde extrema violência até altas taxas de desemprego, mortes prematuras, e abandono de crianças. Até mais assustador, o vicio na droga era dito que ocorria apenas após um único uso. Especialistas em drogas com vertentes em neurociência se manifestaram. “A melhor maneira para reduzir a demanda”, o professor de psiquiatria da Universidade de Yale Frank Gawin, foi citado na revista Newsweek (16 de Junho de 1986), “seria Deus redesenhar o cérebro humano para mudar a maneira como a cocaína reage com certos neurônios”.
“Neuro-observações” sobre drogas com nenhum fundamento em evidência foram perniciosas: elas ajudaram a moldar um ambiente no qual havia um objetivo irrealista e injustificado de eliminar certos tipos de uso de drogas a qualquer custo para marginalizar cidadãos. Em 1986, o Congresso dos Estados Unidos passou uma legislação definindo penalidades que eram literalmente 100 vezes mais duras para violações relacionadas ao crack (pedra de cocaína) do que para o pó de cocaína. Mais de 80% daqueles sentenciados por ofensas relacionadas ao crack eram negros, apesar do fato de que a maioria dos usuários era branca. Hoje, muitos acham as leis referentes a pedra/pó de cocaína repugnantes, porque elas exageram os efeitos danosos do crack e são aplicadas em uma maneira racialmente discriminatória, mas poucos examinam criticamente o papel exercido pela comunidade científica apoiando as premissas subjacentes a essas leis.
Por sua parte, a comunidade científica tem ignorado a vergonhosa discriminação racial que ocorre na aplicação das leis referentes às drogas. Os próprios pesquisadores são esmagadoramente brancos e não têm de viver com as consequências de suas ações. Eu não tenho esse luxo. Todas as vezes que eu olho para meus filhos ou volto para o local que passei minha juventude, sou forçado a lidar com a dizimação resultante da discriminação racial que é tão desenfreada na aplicação das leis referentes às drogas e é instigada por argumentos com uma fraca base em evidências científicas.
Não podemos mais permitir que neuro exageros determinem nossas prioridades de financiamento e rumo da pesquisa em drogas, moldem nossas visões nem nossas políticas de drogas. As apostas são muito altas e o custo humano é incalculável.