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Cientistas cultivam “mini-cérebros” usando DNA neandertal

Publicado em The Guardian
Autora: Hannah Devlin
Traduzido por Elan Marinho

Cientistas estão se preparando para criar “cérebros em miniatura” geneticamente modificados para conter DNA neandertal, em uma tentativa sem precedentes de entender como os seres humanos se diferem de seus parentes próximos.

Em poucos meses, pequenas bolhas [blobs] de tecido, conhecidas como organoides cerebrais, serão cultivadas a partir de células-tronco humanas que foram editadas para conter versões neandertalizadas de vários genes.

Os organoides com dimensões de lentilhas, que são incapazes de pensamentos ou sentimentos, replicam algumas das estruturas básicas de um cérebro adulto. Eles talvez possam demonstrar, em um primeiro momento, se existem diferenças significativas entre a estrutura biológica do cérebro humano e a do neandertal.

“Os neandertais são os parentes mais próximos dos humanos atuais; então, se nós devemos nos definir como grupo ou espécie, é de fato com eles que devemos nos comparar”, disse o Prof. Svante Pääbo, diretor do departamento de genética no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, Alemanha, onde os experimentos estão sendo realizados.

Anteriormente, Pääbo liderou o próspero esforço internacional para analisar o genoma neandertal e está focando em trazer os traços característicos do homem de neandertal de volta à vida no laboratório por meio de sofisticadas técnicas de edição genética.

O laboratório já tinha inserido genes neandertais, para o desenvolvimento craniofacial, em camundongos (os roedores Marmosa andersoni não foram previstos), além de genes neandertais relativos à percepção de dor em ovos de rã, os quais poderiam sugerir se eles tinham um nível dor diferente da dos humanos. Agora o laboratório está voltando suas atenções para o cérebro.

“Nós estamos vendo se podemos encontrar diferenças básicas em como funcionam as células nervosas que podem ser a base do porquê de humanos parecem ser cognitivamente tão especiais”, diz Pääbo.

A pesquisa, que se encaminhava como o esteriótipo de longa data de neandertais enquanto lerdos e violentos, está sendo reescrita pela emergente evidência de que eles enterravam seus mortos, produziam arte rupestre e possuíam cérebros maiores do que os nossos.

Prof. Svante Pääbo, diretor de genética evolutiva no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva. Fotografia: Christian Jungeblodt

No subsolo abaixo do escritório de Pääbo, cientistas estão trabalhando para extrair o DNA – o código da vida – de antigos fósseis humanos e animais escavados em terrenos mundo afora. O sucesso da equipe depende da tomada de precauções obsessivas contra contaminação: uma partícula de poeira pairando por uma janela pode conter mais DNA do que poucos miligramas de osso antigo em pó submetido a análise. Os pesquisadores tomam ducha e vestem uniformes de estilo espacial antes de entrar em salas que são mantidas esterilizadas por raios UV e por um sofisticado sistema de filtração de ar.

Foi em 2010, sob essas rigorosas condições de trabalho, que sua equipe remontou o código do genoma neandertal a partir de amostras muito degradadas tomadas de quatro fêmeas que viveram na Europa dezenas de milhares de anos atrás.

O genoma revelou o cruzamento de neandertais com os nossos ancestrais – e com sucesso suficiente para que todos os não-africanos hoje carreguem de 1% a 4% de DNA neandertal. E, dado que as pessoas adquirem genes ligeiramente diferentes, coletivamente cerca de um terço do genoma neandertal ainda está flutuando pelas populações modernas.

Entretanto, existem também zonas genéticas mortas: amplas extensões do genoma neandertal que ninguém herdou, possivelmente porque conferiam desvantagens à saúde, à fertilidade, à cognição ou à aparência física.

Um breve guia (aqui)

“Nós queremos saber se, em meio a tudo isso, existe algo oculto que realmente nos diferencia”, diz Pääbo. “Existe uma base biológica para o porquê de humanos modernos virem a se tornar milhões e, eventualmente, bilhões de pessoas espalhadas pelo mundo e tendo cultura?”.

Não é certo que os destinos contrastantes entre as duas espécies estejam ligados às diferenças cognitivas, mas Pääbo diz: “É tentador pensar que sim”.

O último trabalho foca nas diferenças entre três genes conhecidos como sendo cruciais para o desenvolvimento cerebral. Usando a técnica de edição de CRISPR, mudanças têm sido introduzidas nas células-tronco humanas para fazê-las se aproximar das versões neandertais.

As células-tronco são persuadidas com uso de gatilhos químicos para se transformarem em neurônios, os quais espontaneamente se aglomeram e organizam a si mesmos em estruturas parecidas com cérebros em miniatura que crescem uns poucos milímetros de diâmetro. A falta de qualquer entrada sensorial significa que o circuito interno é desordenado e que varia de uma bolha para a seguinte.

“Você começa cultivando o organoide e leva isso por nove meses até ver o que acontece”, diz Gray Camp, líder do grupo do instituto que está supervisionando o experimento dos organoides. “Você não consegue um cérebro humano inteiro com formação completa, mas você vê múltiplas regiões com um tipo de formação; você pode estudar as sinapses e a atividade elétrica e as diferenças de desenvolvimento iniciais”.

Os cientistas vão comparar os organoides “neandertalizados” com os totalmente humanos para avaliar a velocidade na qual as células-tronco se dividem, se desenvolvem e se organizam em estruturas cerebrais tridimensionais e, também, se as células cerebrais se conectam de maneira diferenciada.

“Um resultado sonhado seria o de que as mudanças [genéticas] criassem proeminências neuronais duradouras e mais ramificadas”, diz Pääbo. “Talvez seja possível dizer que essa é a base biológica para o porquê do nosso cérebro funcionar de maneira diferenciada”.

O trabalho não relevará qual das espécies é a “mais inteligente”, mas pode indicar diferenças relativas às capacidades de planejar, socializar e de utilizar a linguagem.

O laboratório também está averiguando como os genes neandertais que são comumente encontrados no DNA das pessoas com ancestralidade europeia e asiática influenciam no desenvolvimento cerebral. Por cultivar organoides a partir de células retiradas de pessoas vivas e analisar como os genes neandertais ligam e desligam [switch on and off], a equipe pode verificar se o desenvolvimento cerebral de uma pessoa é sutilmente influenciado por sua antiga ancestralidade neandertal.

“Podemos recultivar seu cérebro neandertal”, diz Camp. “Podemos monitorar isso e ressuscitar a funcionalidade daqueles genes neandertais”.

Guardian graphic

A equipe não é a primeira a vislumbrar a ressurreição da biologia neandertal. Antes, o professor de Harvard George Church sugeriu que um bebê neandertal clonado poderia ser criado se uma “humana fêmea aventureira” estivesse preparada para atuar como uma mãe substituta. Tal cenário, Pääbo conta, não só é eticamente impalatável como também é inviável com a tecnologia atual, a qual nos permite fazer apenas um punhado de edições genéticas por vez, e não as 30.000 que são requeridas para o tecido totalmente neandertal.

Pääbo diz que ele acha comentários como os do Church frustrantes porque “então outras pessoas como eu tem que parecer entendiantes, não-visionárias, dizendo que isso não é possível e achando que isso não é ético”.

As bolhas de cérebro vem com suas próprias considerações éticas? “Sim, em algum ponto é claramente possível se perguntar: quando que o desenvolvimento cerebral está dando a luz a um indivíduo? Mas isso está distante no futuro”.

Os humanos modernos e os neandertais divergiram em linhagens separadas por volta de 400.000 anos atrás, com nossos ancestrais remanescentes na África e os neandertais se movendo para o norte pela Europa. Cerca de 60.000 anos atrás, como revela o registro arqueológico, houve uma migração em massa de humanos modernos para fora da África que colocou as duas espécies face a face uma vez mais. A revelação de que neandertais cruzaram com humanos e a de que foram de longe mais sofisticados do que antes se pensava leva à sugestão de que as duas linhagens devem ter sido combinadas em uma única espécie, mas Pääbo e outros discordam.

“Sim, existe uma evidência crescente de que neandertais, particularmente perto do fim da sua história, fizeram alguma forma de arte”, ele diz, “Mas, se for para ser um pouco duro, poderia dizer que eles fizeram alguma arte mas que era uma arte muito moderna, porque eu não consigo captar o que ela retrata”.

E não há evidência de que neandertais tenham partido para explorar o mundo marítimo, como os humanos fizeram há pelo menos 100.000 anos, uma façanha que talvez tenha tanto a ver com a nossa mentalidade quanto estar motivado a ponto de construir um barco.

“É altamente arriscado partir pelo Pacífico e procurar por algo quando você não sabe o que está lá fora”, diz Pääbo. “Os neandertais foram sensatos, como os outros mamíferos. Eles não sairiam pelo oceano sem saber o que estava por vir do outro lado. Para mim, a maior questão da história da humanidade é: por que nós fomos tão loucos?”.

Elan Marinho

Elan Marinho

Academicamente, entrei em filosofia em 2016. Desde então, desenvolvi uma pesquisa sobre como intuições funcionam. Nessa pesquisa, me baseio na filosofia analítica e nas ciências cognitivas. Também trabalho com divulgação de filosofia, sendo redator (2016-) do portal Universo Racionalista e produtor de conteúdo (2020-) para o Youtube no canal “Filosofia Acadêmica”.