Por Sara Imari Walker
Publicado na Nature
Dentre os grandes enigmas científicos de nosso tempo está a questão de como a vida emergiu da matéria inanimada. A partir dos anos 1920, os bioquímicos Alexander Oparin e JBS Haldane investigaram separadamente as propriedades de gotículas ricas em moléculas orgânicas que existiriam em uma “sopa pré-biótica” na Terra primitiva. Suas hipóteses supõem que os compostos orgânicos sofreram reações levando a moléculas mais complexas e, eventualmente, às primeiras formas de vida.
O que faltava na época, como falta ainda agora, era uma teoria concreta para a física do que é a vida: uma teoria testável contra experimento, e que provavelmente deverá ser mais universal que a química da vida na Terra.
Em 1944, Erwin Schrödinger tentou estabelecer bases conceituais para tal teoria em seu livro What Is Life? No entanto, até os dias de hoje, pesquisadores ponderam se as respostas estariam presentes numa física desconhecida. E ninguém deu tanta importância a estas questões como o biofísico Stuart Kauffman.
Nos anos 1980 e 90, Kauffman – um pesquisador de sistemas complexos – desenvolveu sua teoria altamente influente para as origens da vida, baseada em moléculas que se reproduzem apenas coletivamente, chamada de Conjuntos Autocatalíticos. Ele postulou que se uma sopa química de polímeros for suficientemente diversa, tais conjuntos emergem espontaneamente como uma transição de fase – isto é, uma mudança significativa de estado ou função, semelhante à mudança de sólido para líquido. Os conjuntos se catalisariam mutuamente formando todos os seus membros moleculares. Sua inspiração veio dos avanços na Matemática de Redes de Paul Erdős e Alfréd Rényi, que demonstraram como as transições de fase ocorrem em redes aleatórias à medida que a conectividade aumenta.
Seu insight é motivado pelo que ele chama de Mundo Não- Ergódico, o mundo dos objetos mais complexos que átomos, que quando começam a interagir para formar moléculas têm um número de estados possíveis incrivelmente grande. O número de proteínas diferentes, possíveis de serem montadas com 200 aminoácidos de comprimento é igual 20200. Isso porque o código genético universal se utiliza de somente 20 aminoácidos diferentes no processo de montagem durante a tradução.
Kauffman então expande sua teoria introduzindo o conceito de Encapsulamento, onde os processos estão ligados de modo que cada um conduza o próximo em um ciclo fechado. Ele postula que conjuntos de autocatálise (RNA e peptídeos) encapsulados em uma esfera de moléculas lipídicas poderiam formar protocélulas auto-reprodutoras, e especula que essas protocélulas poderiam evoluir. Assim, cada nova inovação biológica gera um novo nicho funcional, promovendo ainda mais inovação. Por isso mesmo, não é possível prever o que vai existir, já que aquilo que a biologia gera depende do que veio antes, mas depende também de outras coisas que existem agora, com um conjunto cada vez maior do que é possível em seguida.
Ele conclui provocativamente que não há lei matemática que possa descrever a diversidade e a abundância da vida em evolução, já que não conhecemos as variáveis relevantes anteriores à sua emergência. Ele argumenta que na melhor das hipóteses, qualquer “lei da vida” que venha a existir descreverá apenas distribuições estatísticas de aspectos dessa evolução.
Kauffman argumenta que o surgimento da vida pode estar nos fundamentos da física, mas não é derivável deles.
Se a biologia não pode ser reduzida à física, então ela estaria além da física? Este é um momento interessante para se trabalhar as origens da vida: Existe um debate intenso em andamento sobre se a física atual é adequada ou se novos princípios são necessários. Será que uma compreensão profunda da vida, em última instância, vem da compreensão de como a forma e a função surgem dos fluxos de informação? A vida será entendida apenas como um processo em escala planetária, fundamentalmente ligado às ciências dos exoplanetas? Ou a teoria e a experiência de fusão levarão a novas abordagens para a criação vida artificial? Essas abordagens estão sendo desenvolvidas em um esforço internacional, que se fundiu na conferência de 2015 “Reconceituando as Origens da Vida”.
Dentro, não além
Concordo com Kauffman que a vida não pode ser explicada pelas nossas atuais leis da física, mas discuto seu argumento de que a explicação está além da física.
A física já se desenvolveu muito além da mera descrição daquilo que é muito grande (cosmologia); do muito pequeno (sistemas quânticos); e da escala humana (estudada por Galileu e Newton). Trabalhos interessantes estão emergindo do estudo da complexidade em áreas como economia, eletrônica, física do clima, ciências da sociedade e da termodinâmica em não equilíbrio.
Tais avanços interdisciplinares sugerem que a física em si não deve ser definida apenas por sistemas que ela descreveu no passado, mas sim como uma maneira de ver o mundo, que valoriza as descrições mais abstratas, fundamentais e unificadoras da realidade, dos átomos ao Universo. Dentro deste intervalo se encontra a complexidade biológica e tecnológica, dos fenômenos humanos às cidades.
A questão de se existe uma física da vida exige que consideremos que todos os exemplos de vida podem, em seu núcleo, fazer parte do mesmo fenômeno fundamental; caso contrário, “vida” não é uma propriedade objetiva, mas uma coleção de casos especiais. Essa visão unificada parece estar de acordo com o que Kauffman está procurando. Mas sugere que uma explicação possa exigir uma nova física.
A força da estatística
A linha unificadora que explica a vida poderia ser algo estatístico, como Kauffman propõe, e ainda ter propriedades “semelhantes à uma lei”. Afinal, algumas leis da física são estatísticas por natureza, como por exemplo a segunda lei da termodinâmica.
No entanto, abordagens convencionais para as origens da vida – como o Mundo de RNA e outros modelos genéticos – não podem ser formuladas dessa maneira. Isso porque eles fazem muitas suposições não universais com base em propriedades que podem ser exclusivas da química da vida na Terra, como o fato de que o RNA é necessário para as origens da vida.
As áreas emergentes da “Química Desordenada” e as abordagens da vida artificial, passando pela pesquisa de origens partem de misturas químicas de baixo para cima com suposições mínimas sobre como a vida emergente pode parecer. (O químico Lee Cronin, por exemplo, experimenta a auto-montagem e a auto-organização em grandes moléculas, como os óxidos metálicos.) Nesse sentido, o campo está tentando adotar uma abordagem conjunta e pode fornecer novos caminhos para o desenvolvimento de teorias sobre os princípios universais que ligam a matéria e a vida não orgânica, o que pode inspirar o próximo salto conceitual.
De qualquer forma, Kauffman faz as perguntas de que precisamos para resolver o mistério da vida e suas origens. E resta muito trabalho a fazer para as próximas gerações poderem respondê-las.