Por Carlos Fioravanti
Publicado na Pesquisa FAPESP
A pandemia do coronavírus guarda semelhanças com a da gripe espanhola, também de alcance mundial, com um impacto devastador: infectou cerca de 500 milhões de pessoas, o equivalente a um terço da população mundial na época, e matou entre 25 milhões e 50 milhões, em geral com 20 a 40 anos, de 1918 a 1920.
Na cidade de São Paulo, em poucos meses a epidemia matou 5.300 paulistanos, o equivalente a 1% da população da capital, e foi tão intensa que os mortos se acumulavam nas ruas até serem recolhidos; a cidade do Rio de Janeiro viveu uma situação similar.
Embora em outro contexto histórico – não havia equipamentos de proteção para quem atendia os doentes, as pessoas morriam em geral em suas próprias casas e não se conhecia ainda o material genético dos vírus –, a epidemia de gripe também gerou desorganização econômica e social, já que os portos, o transporte e outros serviços públicos pararam de funcionar.
“Em todo o mundo, o discurso das autoridades do governo sobre o controle da epidemia conflitava com a imensa dificuldade das equipes dos serviços de saúde em atender as pessoas doentes”, diz a historiadora Anny Torres, professora das universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e de Ouro Preto (UFOP) e autora do livro Influenza espanhola e a cidade planejada: Belo Horizonte, 1918 (Fino Traço, 2007).
Segundo ela, uma diferença entre as duas pandemias é que em 1919 os médicos diziam que era ineficaz decretar quarentena e fechar fronteiras porque era impossível deter o avanço da doença. Em sua pesquisa sobre a gripe espanhola na capital mineira, Torres verificou que as autoridades tomavam medidas preventivas para não serem criticados publicamente e para a população se acalmar.
Também houve ganhos. “A gripe destravou o debate sobre a criação, efetivada em 1919, do Departamento Nacional de Saúde Pública, vencendo as resistências dos estados, principalmente São Paulo, diante da necessidade de coordenar as ações contra a epidemia em todo o país”, afirma o cientista político e historiador da saúde Gilberto Hochman, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro e autor de A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil (Hucitec, 2013).
“A gripe espanhola expôs os limites e levou a uma valorização do sistema público de saúde, indispensável para enfrentar uma epidemia, e dos profissionais da área médica“, diz ele.
A situação se repete: “Não há leitos suficientes, notificação precisa e acolhimento possível para todos, mas somente o Sistema Único de Saúde será capaz desse enfrentamento, embora não tenha recebido os investimentos necessários nos últimos anos, porque só ele possui tecnologia e histórico de enfrentamento de doenças e epidemias”, diz o historiador André Mota, da Faculdade de Medicina da USP. “O SUS precisará ser rapidamente revitalizado e entendido como suporte central para quaisquer medidas de controle”.