Por Júlio Bernardes
Publicado no Jornal da USP
Uma das frentes de pesquisa no combate à COVID-19 são os efeitos da doença no funcionamento dos rins. Os cientistas sabem que os portadores de problemas renais crônicos são considerados grupo de risco e o aparecimento de lesões agudas no órgão pode aumentar o risco de morte pela doença. Alguns trabalhos publicados sobre pacientes na China mostraram que as alterações renais não foram significativas. No entanto, outros estudos apontam que a infecção não se limita aos pulmões e encontraram partículas do vírus da COVID-19 em células dos rins, que podem estar associados a quadros de inflamação renal.
O professor Niels Olsen Saraiva Câmara, do Departamento de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, relata ao Jornal da USP que a COVID-19 causa Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), condição que compromete o pulmão, provocando infiltração de células inflamatórias, acúmulo de líquidos (edema) e destruição de partes do órgão responsáveis pelas trocas gasosas. “Em situações como estas há a liberação de várias proteínas pró-inflamatórias (citocinas), como a interleucina 6, hoje um dos possíveis alvos para tratamento de casos graves da COVID-19”, relata. “Esta tempestade de citocinas ocasiona uma inflamação sistêmica, que tem como alvo todos os órgãos, inclusive os rins”.
Segundo o professor, que pesquisa o papel da resposta imune na lesão renal aguda e foi ouvido pelo Jornal da USP sobre os achados mais recentes em estudos internacionais a respeito dos efeitos da COVID-19 no órgão, os rins são órgãos fundamentais para manter o equilíbrio do organismo (homeostasia) e fazer a eliminação de toxinas. “Essas duas funções são afetadas pela perda de capacidade dos rins, que também pode ocasionar outras complicações caso o paciente precise de terapia de reposição renal, como a necessidade de acesso vascular (risco de infecção e trombose), de anticoagular (risco de hemorragia), entre outras”, explica. “Assim, é sabido que a perda de função renal no curso de outras afecções, como a SARS, aumenta o risco de morte”.
Saraiva Câmara ressalta que pacientes com doença renal crônica são considerados grupo de risco, com mortalidade maior que pessoas sem doenças preexistentes, e, caso o paciente desenvolva lesão renal aguda, o risco de morrer aumenta em quase cinco vezes, considerando os casos analisados na China. “O que ainda estamos aprendendo é a evolução clínica da COVID-19 em pacientes transplantados renais”, destaca. “Apesar de esta população ser considerada de alto risco para infecções oportunistas, existe relato de poucos casos com ótima evolução. Mas ainda é preciso mais tempo para entender a evolução clínica neste grupo de pacientes”.
Doença crônica e lesões
Atualmente, na maioria dos dados publicados sobre doenças a relação entre doenças crônicas e a COVID-19 é oriunda de pacientes inicialmente infectados na China, na província de Wuhan e arredores, aponta o professor do ICB. “Há poucos trabalhos publicados e é importante frisar dois aspectos”, observa, “a infecção em pacientes com doenças já conhecidas como hipertensão, diabete e doença renal crônica, e a infecção em pacientes sem lesão renal aguda ou crônica previamente diagnosticada”.
Entre os casos analisados na China, uma parcela dos pacientes evolui para SARS e tem a necessidade de terapia intensiva e ventilação mecânica. “O aparecimento de perda de função renal nestes pacientes pode ser uma manifestação da inflamação sistêmica e do comprometimento pulmonar. Em infecções por outros tipos de coronavírus, registradas em 2003, 6% dos pacientes tiveram disfunção renal aguda”, diz Saraiva Câmara. “No segundo caso, os poucos dados existentes mostram que alguns pacientes apresentam excesso de proteína e sangue na urina no início da infecção e outros uma perda de função renal, de leve intensidade”.
O professor relata que foi descrito que uma das portas de entrada do vírus SARS-CoV-2 nas células seria a enzima conversora de angiotensinogênio 2 (ECA2), altamente expressa em células pulmonares (pneumócitos), e também na boca, língua, coração, vasos e rins. “Nos rins, elas são detectadas em células envolvidas com o manuseio de proteína na urina”, afirma. “Assim, existem trabalhos que já detectaram, em análises pós-morte, partículas virais nas células renais, juntamente com um quadro de inflamação denominado nefrite tubulointersticial”.
A extensão das consequências do vírus nos rins ainda não é plenamente conhecida, enfatiza Saraiva Câmara. “São poucos estudos, ainda com uma amostragem pequena. Por exemplo, um estudo chinês que indicou que as alterações renais foram discretas incluiu somente 116 pacientes”, diz. “Existem vários outros relatos já demonstrando a presença do vírus nos rins, em análises pós-morte, e até a presença de RNA viral na urina”.