Por Karina Toledo
Publicado na Agência FAPESP
A quarentena decretada em março por prefeitos e governadores de todas as regiões brasileiras promoveu uma queda substancial na taxa de contágio do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Mas, ao contrário do observado em países asiáticos e europeus que também adotaram medidas de isolamento social, o achatamento da curva epidemiológica no Brasil não foi suficiente para fazer o número de casos e de mortes por COVID-19 parar de crescer.
Segundo estimativa feita por pesquisadores do Imperial College London (Reino Unido), no final de fevereiro, o número de reprodução (Rt) do SARS-CoV-2 em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Amazonas estava entre 3 e 4. Isso significa que, nesses locais, cada indivíduo infectado transmitia o vírus para mais de três pessoas em média, fazendo a epidemia avançar rapidamente. No início de maio, estima-se que o Rt havia caído para valores entre 1 e 2.
“Houve uma redução acentuada na intensidade da transmissão, o que significa que o isolamento social ajudou a salvar muitas vidas e das pessoas mais vulneráveis da sociedade. Mas em nenhum estado o Rt caiu abaixo de 1. E somente quando isso ocorrer poderemos dizer que a epidemia está sob controle. O número de infecções diárias cairá significativamente, seguido pelo número de mortes”, disse Thomas Mellan, primeiro autor de um estudo que buscou descrever a evolução da COVID-19 em 16 estados brasileiros por meio de modelagem matemática. Ainda em versão preprint (sem revisão por pares), o artigo foi postado na plataforma medRxiv em 18 de maio.
Na avaliação do pesquisador, a adesão insuficiente da população ao isolamento social parece ser um dos fatores que explicam a menor eficácia dessa “intervenção não farmacológica” na contenção da doença no Brasil. “O motivo exato não está claro, mas ao analisar o Relatório de Mobilidade Comunitária do Google [baseado em dados de localização de usuários em 131 países] observamos que a redução da mobilidade da população brasileira durante a quarentena é menor do que a registrada na maioria dos países europeus”, contou Mellan à Agência FAPESP.
Alternativas metodológicas
A metodologia do estudo foi apresentada por Mellan e por seu colega do Imperial College London Samir Bhat no dia 21 de maio, durante o webinar “COVID-19 – Epidemiological monitoring and measurement of infectivity rates in key countries”, organizado pela FAPESP e transmitido ao vivo pelo canal da Agência FAPESP no YouTube.
Na ocasião, Bhat explicou que o objetivo do trabalho foi estimar a taxa de ataque (número de pessoas infectadas) e o Rt do novo coronavírus no Brasil, usando como referência o número de mortes por COVID-19 confirmado pelo Ministério da Saúde.
“Há várias estratégias para determinar esses indicadores epidemiológicos: vigilância populacional de infecções [testagem em larga escala para detectar casos sintomáticos e assintomáticos], análises genéticas [inferir o Rt com base em linhagens virais sequenciadas], inquéritos de soroprevalência [avaliar por amostragem o porcentual da população que tem anticorpos contra o vírus], estimar com base no número de casos reportados [método fortemente influenciado pela quantidade de testes realizados no local] ou estimar a partir do número reportado de mortes, que julgamos ser a forma mais segura para países como o Brasil, mas não é livre de erro”, ponderou Bhat.
Os resultados do estudo britânico indicam que cinco estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Amazonas – concentram 81% das mortes relatadas até o momento no país. Estima-se que, nesses locais, a porcentagem de pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2 varie de 3,3% (com intervalo de confiança de 95%, podendo variar de 2,8% a 3,7%) em São Paulo para 10,6% (de 8,8% a 12,1%) no Amazonas. O estado com a segunda maior taxa de ataque foi o Pará (5,05%), seguido por Ceará (4,46%) e Rio de Janeiro (3,35%). Entre os 16 estados estudados, Minas Gerais apresentou menor proporção de infectados (0,13%), seguido por Santa Catarina (0,23%) e Paraná (0,25%).
Considerando a margem de erro da pesquisa, os números estimados pelo grupo do Imperial College London para São Paulo e Paraná estão próximos do encontrado nas capitais desses estados por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) na primeira fase do estudo EPICOVID19-BR: 3,1% na cidade de São Paulo e 12,5% em Manaus (AM). Realizado entre os dias 14 e 21 de maio, o inquérito sorológico abrangeu coleta e análise de amostras de sangue de mais de 25 mil pessoas, em 133 cidades. O objetivo foi calcular o porcentual da população que já desenvolveu anticorpos contra o SARS-CoV-2. O trabalho foi coordenado pelo reitor da UFPel, Pedro Curi Hallal, que foi um dos palestrantes do seminário online promovido pela FAPESP na semana passada.
Nas principais cidades do Pará, o estudo apontou que o índice de infectados chega a 24,8% na cidade de Breves, 15,4% em Castanhal e 15,1% na capital Belém. Em Tefé, município do interior do Amazonas, a taxa de soroprevalência foi de quase 20%.
No conjunto das 90 cidades em que o grupo do EPICOVID19-BR conseguiu testar mais de 200 pessoas (número mínimo para fazer as análises), a taxa de soroprevalência foi estimada em 1,4%, podendo variar de 1,3% a 1,6% pela margem de erro da pesquisa. Segundo os autores, os resultados não devem ser extrapolados para todo o país, nem usados para estimar o número absoluto de casos no Brasil, pois são cidades populosas, com circulação intensa de pessoas e que concentram serviços de saúde. De qualquer modo, a comparação dos números estimados pelo grupo da UFPel e os números oficiais do Ministério da Saúde aponta que, para cada caso confirmado de COVID-19 nesses municípios, existem sete casos reais na população.
Várias epidemias em uma
Os resultados do EPICOVID19-BR indicam que a região Centro-Oeste é a menos afetada do país até o momento. Nenhum teste positivo foi registrado nas nove cidades estudadas, embora já existam casos e óbitos notificados nesses locais. No Rio Grande do Sul, onde já foram concluídas, entre abril e maio, três ondas de testes sorológicos em nove cidades, a taxa de soroprevalência encontrada também foi baixa: variando entre 0,05% (primeira coleta) e 0,22% (terceira coleta).
A região Norte, por outro lado, tem hoje o cenário epidemiológico mais preocupante do país, segundo a pesquisa brasileira, abrigando 11 das 15 cidades com maior proporção de infectados.
A conclusão vai ao encontro dos resultados do modelo britânico, que mostram uma ampla heterogeneidade nas taxas de ataque dos estados estudados, sendo que as regiões Norte e Nordeste parecem estar em um estágio avançado da epidemia, que, em escala nacional, ainda pode ser considerada incipiente.
“Apesar dessa heterogeneidade, no entanto, em nenhum estado a imunidade de rebanho parece estar próxima de ser alcançada”, afirmam os pesquisadores do Imperial College, referindo-se à taxa necessária de infectados (estimada entre 60% e 70%) para que o vírus não consiga mais se propagar na população. “Dado o estágio inicial da epidemia no Brasil, há perspectiva de agravamento da situação caso outras medidas de controle não sejam implementadas”, concluiu o estudo.
Em busca de soluções
Além de Hallal e dos pesquisadores britânicos, o rol de palestrantes do seminário online contou com Cécile Viboud, pesquisadora do Centro Internacional Fogarty, vinculado aos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, e Michael Levitt, ex-professor da Universidade Stanford (Estados Unidos) hoje baseado em Israel e vencedor do Nobel de Química em 2013. A mediação foi feita pelo professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Rui Maciel.
“Este é o primeiro de uma série de seminários online que a FAPESP pretende promover na tentativa de contribuir para a busca de soluções contra a COVID-19, instigando cientistas nacionais e internacionais e trazendo à tona perguntas e discussões relevantes”, afirmou durante a abertura Luiz Eugênio Mello, diretor científico da Fundação.
Em sua apresentação, Viboud apresentou resultados de estudos de modelagem que buscaram avaliar o impacto de diversas intervenções adotadas no início de janeiro para conter a epidemia na China, principalmente nas cidades de Xangai e de Wuhan.
“Uma das primeiras coisas que nos interessamos foi quantificar as mudanças no número de reprodução. Inicialmente, vemos um período de rápido crescimento da epidemia, com Rt de 2,5. Após 23 de janeiro muitas intervenções foram feitas, incluindo forte distanciamento social, e o Rt cai rapidamente abaixo de 1, e assim permanece até agora”, contou a pesquisadora.
Já Levitt, que tem sido um crítico contundente das políticas de isolamento social, argumentou que, ao contrário do que sugerem os principais modelos epidemiológicos – entre eles o do Imperial College London –, a COVID-19 não cresce exponencialmente, ainda que nenhuma medida de contenção seja implementada.
“Este seria um fenômeno realmente aterrorizante, pois saltaríamos de três casos para 1 milhão em um período de duas semanas caso houvesse crescimento exponencial puro”, disse.
Após avaliar as informações sobre os casos confirmados na China, Levitt concluiu que a curva epidemiológica da doença segue o padrão da chamada curva de Gompertz ou função Gompertz, modelo matemático em que o crescimento é menor no começo e no fim do período temporal.
“Essa coisa toda sobre achatar a curva não tem sentido, pois a curva começa a se achatar sozinha desde o primeiro dia da epidemia”, argumentou.
Na avaliação de Hallal, de fato a taxa de crescimento de novos casos e de mortes começou a baixar em países como Itália, Espanha e Inglaterra bem antes de ser atingido o porcentual de infectados necessário para a imunidade de rebanho.
“Com as medidas de isolamento, o vírus acaba circulando menos e o número de pessoas suscetíveis que ele encontra não é tão grande. A boa notícia é que não é preciso haver tanta gente infectada para os casos começarem a cair. Por outro lado, como a maior parte da população ainda não tem imunidade, é bem provável que daqui a algum tempo venha outra onda da doença. Não podemos subestimar o valor do distanciamento social”, disse à Agência FAPESP.