Traduzido por Julio Batista
Original de Jennifer Nalewicki para a Live Science
Milhares de anos atrás, uma criança no Peru foi sacrificada como parte de um ritual antigo, sua cabeça cortada no pescoço e transformada em uma espécie de troféu. Uma nova análise de um único cabelo arrancado do crânio da múmia revela que a criança consumiu um cacto psicoativo antes da execução, como parte da cerimônia.
A cabeça preservada da criança era um dos 22 restos humanos associados à antiga sociedade de Nazca examinados em um novo estudo; todos esses indivíduos viveram durante a era pré-hispânica (3500 a.C. a 476 d.C.) e foram enterrados perto da costa sul do Peru, onde foram escavados durante o Projeto Nazca, um programa arqueológico de longa duração que começou em 1982.
Embora os cientistas não tenham certeza do sexo e da idade da vítima, eles relataram que a criança havia ingerido o Cacto São Pedro (Echinopsis pachanoi), uma planta espinhosa tomada por suas “fortes propriedades alucinógenas” e usada por civilizações indígenas das Américas em medicamentos e durante os rituais tradicionais.
“O troféu de cabeça é o primeiro caso de consumo de São Pedro por um indivíduo que viveu na costa sul do Peru”, disse à Live Science a principal autora do estudo, Dagmara Socha, doutoranda no Centro de Estudos Andinos da Universidade de Varsóvia, na Polônia.
“É também a primeira evidência de que algumas das vítimas que foram transformadas em troféus de cabeças receberam estimulantes antes de morrerem”.
Para o estudo, Socha e sua equipe coletaram amostras de cabelos individuais de quatro troféus de cabeças, três das quais pertenciam a adultos, e de 18 múmias de adultos e crianças. Exames toxicológicos revelaram que muitos dos falecidos haviam consumido algum tipo de planta psicoativa ou estimulante antes de suas mortes.
Esses itens ingeridos incluíam folhas de coca, conhecida como fonte da substância psicoativa cocaína, bem como o Cacto São Pedro, que contém mescalina, uma droga psicodélica.
Os pesquisadores também detectaram vestígios de Banisteriopsis caapi, o principal composto da ayahuasca, uma bebida alucinógena que contém harmina e harmalina (dois compostos usados em antidepressivos modernos).
“Foi muito interessante ver quantas pessoas tiveram acesso a [essas plantas]”, disse Socha.
“Também queríamos descobrir a rota do comércio de algumas dessas plantas antigas. Por exemplo, as folhas de coca não eram cultivadas na costa sul do Peru, então elas tinham que ser trazidas do norte do Peru ou da região amazônica.”
O uso de drogas datava de 100 a.C. a 450 d.C., descobriram os pesquisadores.
“Podemos ver que essa transição das plantas começou cedo e podemos rastrear a rede de comércio”, disse Socha.
“Nossa pesquisa mostra que essas plantas foram extremamente importantes para diferentes culturas para efeitos médicos ou visionários. Especialmente porque não há [registro escrito] desse período de tempo, então o que sabemos sobre Nazca e outras culturas próximas é de investigações arqueológicas.”
Dezesseis anos antes deste estudo, Rainer Bussmann, professor do Departamento de Etnobiologia do Instituto de Botânica da Universidade Estadual de Ilia em Tbilisi, Geórgia, e chefe de botânica do Museu Estadual de História Natural de Stuttgart, na Alemanha, publicou um estudo no Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine examinando o uso de plantas medicinais por comunidades indígenas no norte do Peru.
Como Socha, ele examinou as rotas comerciais de diferentes plantas cultivadas nesta parte do mundo.
“Sempre houve um pequeno comércio acontecendo nesta região, com plantas sendo comercializadas da Amazônia para cima e para baixo na costa [peruana]”, disse Bussmann, que não esteve envolvido no novo estudo, à Live Science.
“Essas plantas eram tradicionalmente usadas para fins cerimoniais ou medicinais, e às vezes eram combinadas. Nunca vi nenhum relato de uso recreativo. Para essas culturas, sempre havia um propósito específico.”
Mas, embora as evidências sugiram que essas plantas eram consumidas como remédios e para cerimônias, os cientistas ainda têm dúvidas sobre o quão difundido era o consumo na cultura de Nazca, disse Socha.
“Na verdade, não sabemos com que frequência essas [plantas] estavam sendo usadas”, disse ela. “No caso do São Pedro, não está bem preservado em um contexto arqueológico, e no caso das folhas de coca e Banisteriopsis caapi, nunca foram encontradas crescendo nesta região durante esse período.”
Além dos restos humanos, Socha e sua equipe também encontraram uma variedade de bens funerários nos cemitérios, incluindo tecidos, potes de cerâmica, ferramentas de tecelagem e uma chuspa – um tipo de bolsa usada para carregar folhas de coca.
As descobertas serão publicadas na edição de dezembro de 2022 do Journal of Archeological Science.