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Acarologia Forense: quando os insetos não são vestígios

Os Ácaros

Ácaros são organismos microscópicos da mesma Classe das aranhas e escorpiões, o nome do grupo “acari” é originado do grego akares, uma referência ao seu pequeno tamanho. São seres bem peculiares e cosmopolitas, ou seja, podem ser encontrados em quase todos os tipos de ecossistema. Habitats terrestres, lagos, rios, mares, em animais, na cortina da casa, nas nossas roupas e nos poros da nossa pele, todos esses ambientes são colonizados pelos ácaros.

A subclasse Acari tem sido registrada desde o século XIX, porém devido ao seu tamanho e falta de estudos na área, foram sempre deixados de lado nas práticas forenses. Atualmente, esses minúsculos artrópodes são considerados uma ferramenta poderosa de investigação devido à sua capacidade de dispersão, colonização, riqueza de espécies e abundância.

Devemos lembrar que os insetos são um dos dois principais fatores de decomposição de um cadáver e quando o ambiente é de difícil acesso para esses animais o corpo passa pelo processo de mumificação. Assim, o cálculo de IPM se torna mais difícil ou a entomologia forense conseguir fornecer alguma informação. Casos assim não são incomuns, basta ser um local fechado como carro, quarto ou até mesmo em casos que os corpos foram emparedados. Nesse momento é quando a acarologia forense é aplicada para obter informações e evidências, pois os ácaros são capazes de colonizar esses locais, é quase certo que eles serão encontrados na cena do crime.

A capacidade de dispersão dos ácaros é muito eficiente, podendo ocorrer pelo ar, deslocamento, transferência de materiais e forésia. Nesse último caso, quando em associação com animais cadavéricos, se torna um indicador de que eles visitaram o cadáver e não forem mais encontrados tardiamente. Sem contar com sua absurda abundância no solo, que ajuda também nas análises ambientais.

O grupo possui mais de 50 mil espécies já descritas e essa alta diversidade mostra uma grande especialidade de microambiente em diversos casos. Por exemplo, os ácaros que vivem nas nossas roupas não pertencem ao mesmo taxón da nossa pele ou do sofá. Essa capacidade de especialização e resolução espacial em diversidade dificilmente é encontrada em outro grupo de organismo.

Primeiro caso

O corpo de um recém-nascido foi encontrado em Paris na rua Rochebrune em janeiro de 1878. A cena foi descrita da seguinte forma, um corpo completamente mumificado, coberto com um pano de linho umedecido e com pontas apodrecidas que tocavam no solo. Pelo aspecto da mumificação, o patologista da época acreditava que tinha sido carbonizado. Larvas de mariposa e os adultos foram coletados e identificados das espécies Aglossa pinguinalis e A. caprealis. Porém, mesmo com a presença das mariposas, não foi realizado nenhum cálculo de IPM utilizando os insetos, pois estruturas de tubos de sedas presente no corpo indicavam que as mariposas teriam chegados meses antes.

Além disso, uma camada marrom de 2mm de espessura estava presente, composta de uma única espécie de ácaro, Tyroglyphus longior. Eles também estavam presentes no interior do crânio. Estes ácaros são conhecidos por estarem relacionados com carcaças, fezes e em particular, ambientes com baixas temperaturas.

Com base nas poucas informações existentes, é possível fazer um IPM mínimo, através da velocidade de colonização do T. longior. A superfície do corpo do recém-nascido possuía uma área de 3,000 cm², incluindo a parte interna do crânio. Considerado que a análise indicou que existiam pelo menos 4 adultos (vivo ou morto) ou ovos por cada mm³, tinha um total de 2,400,000 ácaros no corpo. Baseado em estudos da biologia de T. longior e T. mycophagus, podemos dizer que cada fêmea daria luz a 10 outras fêmeas e 5 machos, que maturam em 15 dias. Então, em três meses teria 1,500,000 ácaros, levando em conta outros fatores ambientais o especialista estimou que o corpo esteve exposto entre 6-8 meses. Este foi um caso que ainda é debatido até hoje e que demonstra o grande potencial que esses artrópodes podem oferecer às pericias criminais.

Ácaros e cadáveres

O caso do recém-nascido de Paris não foi um caso isolado sobre a relação dos ácaros no processo de decomposição. Na verdade, eles estão presentes em todos os estágios, desde o fresco até os estágios mais secos, em alguns momentos até possíveis de serem vistos a olho nu. E ainda assim, são frequentemente negligenciados, até confundidos com mofo ou com serragem.  Diversos outros casos de corpos mumificados com uma “camada marrom” foram relatados, porém sem qualquer análise microscópica para confirmar se essas camadas eram de ácaros.

Algumas espécies são relacionadas com o processo de decomposição, sejam cadáveres ou fezes. E por serem muito abundantes no solo, conseguem facilmente chegar em corpos que estão enterrados em covas rasas ou fundas. Eles também já foram registrados em corpos que estavam submersos em lagos. Em regiões temperadas, algumas moscas podem ser ausentes em certos períodos do ano. Contudo, outros ácaros estão sempre presentes ou são oportunistas, podendo oferecer outras informações aos peritos. Na arqueologia, eles já são usados como indicadores de habitat, aspectos sociais humanos, atividades econômicas e pecuária.

Nas primeiras 72 horas da morte os parâmetros médicos são mais utilizados para calcular o IPM, entretanto, foi notado que os ácaros do gênero Demodex, que vivem nos folículos de pelo dos cílios, seguem a morte do hospedeiro. Os ácaros presentes na pele ocular também variam sua densidade de acordo com a idade do indivíduo.

Além de tudo isso, os ácaros possuem um ciclo de vida e troca de gerações mais curto do que os insetos, isso pode determinar um cálculo ainda mais preciso do IPM. Em adicional, as taxas de sexo podem ser outra ferramenta de IPM, pois muitas espécies são haplodiploides para determinação do sexo e somente as fêmeas possuem o estágio de forésia, dessa forma a primeira geração será inteiramente de machos e variando ao longo das gerações. Esses invertebrados minúsculos são, inclusive, capazes de habitar ambientes aquáticos artificiais, como piscinas e aquários, o que podem ser utilizados como traços investigativos, pois costumam ser colonizados por uma única espécie.

Conclusão

Ácaros possuem uma vasta aplicação para investigação e bioindicadores, porém a dificuldade de trabalhar com ácaros na ciência forense não é só pelo tamanho, mas também devido à falta de especialistas que possam desenvolver mais conhecimento sólido sobre o assunto. Contudo, devido ao crescimento das técnicas moleculares promove-se um pensamento mais otimista à importância da acarologia forense para os fins científicos e investigativos.

Revisão: Hudson Felipe.

Referências

  • Braig, H. R. & Perotti, M. A. (2009). Carcases and mites. Exp Appl Acarol 49, 45-84.
  • Frost, C. L., Braig, H. R., Amendt, J. & Perotti, M. A. (2009). Indoor Arthropods of Forensic Importance: Insects associated with indoor decomposition and mites as indoor markers.  Current Concepts in Forensic Entomology, 93 -108.
  • Perotti, M. A. (2009). Megnin re-analysed: the case of the newborn baby girl, Paris, 1878. Exp Appl Acarol 49, 37-44.
  • Perotti, M. A. & Braig, H. R. (2009). Phoretic mites associated with animal and human decomposition. Exp Appl Acarol 49, 85-124.
  • Perotti, M. A., Lee Goff, M., Baker, A. S., Turner, B. D. & Braig, H. R. (2009). Forensic acarology: an introduction. Exp Appl Acarol 49, 3-13.
Daniel Moura

Daniel Moura

Bioinformata no VarStation/ Hospital Israelita Albert Einstein. Mestre pelo Programa International Master of Science in Agro- and Environmental Nematology na Universidade de Ghent, Bélgica. Graduado em Bacharelado de Ciências Biológicas / Ciências Ambientais da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil e pela Universidade Eötvös Loránd, Húngria. Atua na área de Zoologia, Ecologia, Fisiologia Comparada, Biologia Forense e Biologia computacional. Contato: dmouraslv@gmail.com