Por Owen Jarus
Publicado na Live Science
Você já ouviu a história de uma batalha de bruxos que supostamente ocorreu quando uma das primeiras igrejas foi construída? Ou que tal a história de um guarda de fronteira que desafiou as ordens do rei Herodes e salvou a vida de Jesus? Os estudiosos acabaram de traduzir esses e outros textos cristãos “apócrifos” (histórias não contadas na Bíblia canônica) para o inglês pela primeira vez.
Sabe-se da existência de mais de 300 textos apócrifos cristãos, conta Tony Burke, professor de cristianismo primitivo na Universidade de York em Toronto, Canadá, no livro que editou “New Testament Apocrypha More Noncanonical Scriptures (Volume 2)” (Eerdmans, 2020). “Os textos apócrifos eram essenciais para a vida espiritual dos cristãos muito depois do aparente final do cânone bíblico e os apelos para evitar e, até mesmo, destruir essa literatura nem sempre eram eficazes”, escreveu Burke.
Os cristãos antigos frequentemente debatiam quais textos diziam a verdade sobre Jesus e quais não. No final do século IV, a Igreja havia ‘canonizado’ os textos que considerava corretos e os incluiu na Bíblia.
Batalha de Bruxos
Um dos textos recém-traduzidos fala de uma batalha contra bruxos “diabólicos” que tentavam destruir uma antiga Igreja que estava sendo construída dedicada à Virgem Maria na cidade de Filipos, na Grécia.
O texto está escrito em copta, uma língua egípcia que usa o alfabeto grego, e pode ter sido escrito originalmente há cerca de 1.500 anos, como escreveu Paul Dilley, professor de estudos religiosos da Universidade de Iowa (EUA), que traduziu o texto. A história é contada em dois textos, ambos do Mosteiro de São Macário, o Grande, no Egito. Naquela época, grande parte da população ao redor do Mediterrâneo havia se convertido ao cristianismo, embora alguns ainda seguissem crenças politeístas.
“Havia uma tendência de identificar as pessoas que ainda seguiam o politeísmo como ‘magoi’ ou ‘bruxos’, que representavam perigo para a comunidade cristã, às vezes abertamente, às vezes clandestinamente”, disse Dilley ao Live Science.
No texto, a Virgem Maria aparece para o Bispo Basílio (que viveu de 329-379 DC) em um sonho e diz para ele onde encontrar uma imagem dela que “não foi feita por mãos humanas”, de acordo com o texto traduzido. Ela também o instrui a colocar a imagem no santuário de sua Igreja no topo de duas colunas, que ele encontrará em um templo fora de Filipos.
“Essas duas colunas foram montadas desde o tempo dos gigantes. Imagens demoníacas as cobrem. Ninguém pode derrubá-las senão por ordem do meu filho amado [Jesus]”, diz a Virgem Maria no texto.
Nesta história, quando Basílio leva um grupo ao templo, ele é confrontado por um grupo de bruxos que conheciam a magia diabólica. “Quando eles ouviram sobre esses planos [para mover as colunas], eles foram perturbar e trazer desgraça ao grupo e fizeram algumas grandes ilusões diabólicas”.
Basílio pega um bastão que havia sido colocado em um “sinal da cruz salvadora” e o coloca nas colunas. “Coloquei [o bastão] sobre as duas colunas e, imediatamente, um grande estrondo aconteceu sob as colunas. De repente, [as colunas] saltaram de suas bases e rolaram até chegarem ao lugar dos estádios da cidade”, diz Basílio no texto.
Os bruxos param o grupo, e a batalha mágica entre os bruxos e o grupo de Basílio chega a um impasse; quando a noite chega, Basílio decide dispensar seu grupo e descansar.
Quando Basílio vai dormir, a Virgem Maria vem a ele em outro sonho e faz a promessa de que os bruxos serão derrotados: “Aqueles que cometeram esta maldade de magia impertinente, eis que estão cegos, gananciosos”, diz ela.
Mais tarde, depois que Basílio acorda, uma foz de água surge ao lado das colunas, criando um riacho que cura as pessoas milagrosamente. Os bruxos não tiveram tanta sorte, pois “imediatamente a terra abriu a boca e os engoliu”, diz o texto. Basílio também descobre que a imagem foi colocada nas colunas pela própria Virgem Maria.
Hoje, as duas cópias remanescentes do texto estão na Biblioteca Apostólica do Vaticano e na Biblioteca da Universidade de Leipzig.
Guarda de fronteira ajuda Jesus
Outro texto recém-traduzido fala de um bandido chamado Dimas (também chamado Dymas/Dismas) que foi crucificado ao lado de Jesus. O texto afirma que Dimas já trabalhou como guarda de fronteira e foi crucificado depois de ajudar Jesus e sua família quando eles fugiam para o Egito. O texto diz que Jesus era um bebê na época e sua família estava fugindo do rei Herodes que queria matar Jesus.
Esse texto apócrifo foi escrito em latim e data do século 12 ou 13, disse Mark Bilby, bibliotecário assistente-sênior de comunicação acadêmica e professor de Estudos Religiosos na Universidade Estadual da Califórnia em Fullerton (EUA), que traduziu o texto. Bilby observa que durante a Idade Média surgiram várias histórias que afirmam contar a história dos criminosos crucificados ao lado de Jesus. O texto, provavelmente, foi escrito em um mosteiro francês que Bilby estudou.
“Eu acho que o enredo é totalmente fictício, como uma lenda construída em cima de, pelo menos, 10 lendas anteriores não-reveladas”, disse Bilby ao Live Science. No livro, Bilby observou que essa história e outras semelhantes podem ter a intenção de “trazer um apelo implícito para os jovens deixarem suas famílias, juntarem-se às Cruzadas e se tornarem amigos de Jesus na Terra Santa e seus arredores”.
A história se passa, segundo o texto, na época que Herodes estava tentando encontrar e matar Jesus, e os guardas receberam ordens para matar qualquer menino que encontrassem. Para cuidar de Jesus, Dimas e seu pai guardavam a fronteira entre a Judeia e o Egito, conta a história.
No texto, o pai de Dimas sai para fazer suas rondas e diz a Dimas para vigiar a passagem da fronteira com cuidado. Pouco depois, José e Maria chegam à fronteira carregando o menino Jesus vestido de trapos. Dimas se aproxima da família e pergunta sobre Jesus. Maria teme que Dimas roube Jesus, mas José fala com Dimas e o convence a deixá-los ir.
José convence Dimas de que uma família pobre não representava nenhuma ameaça para Herodes. “É apropriado que todos vocês se atentem com os filhos dos homens ricos desta região, que são capazes de invejar a superioridade do Rei em um momento posterior. No entanto, quando você vê pessoas esquálidas na miséria, não é apropriado pará-las com essas conversas”, diz José no texto.
O Dimas deixa-os cruzar a fronteira e até dá comida à família. Quando o pai de Dimas descobre, fica furioso. “O que farei agora? Se for pego, não poderei mentir no juramento. Se ele [o rei Herodes] me condenar por traição, me matará no lugar dos meninos”, disse o pai de Dimas.
Herodes, posteriormente, convoca Dimas, que fala sobre a família que teve permissão para escapar. Dimas é rejeitado por seu pai e, então, volta-se para o banditismo.
“Expulso da casa e da vizinhança do pai, passou a se envolver no banditismo, e isso se tornou uma série de aflições em sua vida, porque foi desviado para o caminho das armas e das perversidades…”, diz o texto. Cerca de 30 anos depois, Dimas é capturado no tempo em que Pôncio Pilatos era prefeito (governador) da Judeia e é crucificado ao lado de Jesus (que agora é um adulto), diz o texto. Quando estão para serem crucificados, Dimas confessa os pecados que cometeu como bandido e é perdoado por Jesus.
A única cópia sobrevivente do texto está na biblioteca do Grand Séminaire em Namur, Bélgica.
Armadilha para demônio
Outro texto recém-traduzido, mas do grego, conta como o apóstolo Pedro prendeu sete demônios que se disfarçavam de anjos na cidade de Azoto (também chamada de Asdode no que hoje é Israel).
Embora data do século 11 ou 12, a história, provavelmente, foi escrita originalmente séculos antes, talvez cerca de 1.600 anos atrás. “A narrativa soa de forma parecida com o contexto das reflexões presentes nos séculos IV e V sobre o pecado, mas sua forma de escrita livre e falta de arregimentação parecem representar uma fase inicial do desenvolvimento desse pensamento”, escreveu Cambry Pardee, professor visitante de religião na Universidade Pepperdine, em Londres, na Inglaterra, no livro.
O autor do texto “estava escrevendo uma obra de ficção, valorizando as aventuras do grande herói cristão Pedro”, disse Pardee ao Live Science. Embora os eventos sejam fictícios, “é muito provável, porém, que muitos cristãos comuns que encontraram esta lenda, seja por escrito ou na forma falada, teriam acreditado que era um relato verdadeiro, uma história perdida da vida de Pedro”, completou Pardee.
No texto, Pedro, que desconfia dos “anjos”, marca um círculo ao redor deles e afirma “meu Senhor Jesus Cristo, que a tua glória seja revelada pelo Espírito Santo. São estes, como dizem, anjos da tua divindade ou espíritos que odeiam aquilo que é bom?” (tradução de Cambry Pardee).
Seis dos demônios admitem a Pedro que são os do engano, da imoralidade sexual, da falsidade, do adultério, da avareza e da calúnia. O sétimo demônio desafia Pedro e pergunta por que os demônios são tratados tão mal em comparação com os humanos, dizendo que os pecados humanos são perdoados por Cristo, mas os pecados demoníacos não. “Você tem a parcialidade perante a Cristo; por isso, ele nos castiga, mas ele nos poupa quando nos arrependemos. Portanto, se ele levasse uma prostituta e um cobrador de impostos e um ímpio e um blasfemador e um caluniador para o seu reino, ele deveria reunir todos nós com vocês!”
O demônio também observa que os humanos devem parar de culpá-los por seus erros. “Eu, o demônio, não sou causador deles, eles próprios se levam pelos erros. Pois eu me tornei fraco e estou sem vigor. Portanto, não tenho mais lugar para ficar, nem lugar para ir, pois em todos os lugares as pessoas se tornaram cristãs. Portanto, que vigiem a si próprios e não culpem os outros”, diz o demônio. Pedro, então, deixa os demônios irem.
A única cópia remanescente desse texto está na Biblioteca Angelica, em Roma.