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Cinco equívocos sobre o pensamento de Carl Sagan

Hoje, parece estar na moda adotar como uma “referência de pensamento” uma figura pública, seja cientista, filósofo ou político. O problema está em adotar tal concepção de pensamento sem indagar-se criticamente sobre a qualidade de seus argumentos, ou mesmo deturpando suas ideias para corroborar com alguma posição pessoal. Então, cria-se um culto à personalidade. (Veja na Internet como inúmeras citações atribuídas à Einstein são usadas para dar algum suporte para posições políticas e religiosas.)

Nas faculdades de humanidades, persiste o “dogma acadêmico” de reinterpretar pensadores à luz da contemporaneidade, ao invés de levantar autênticos problemas sobre a realidade (algo como a consigna de “busca pela verdade”, para os pós-modernos da academia, não passa de um jogo de palavras que, quando “desconstruído”, mostrará alguma motivação ideológica que remete a um “discurso de poder”, ou mesmo para alguma forma de opressão). Às vezes, tal motivação para reinterpretar pensadores parte do intuito de mostrar que o que foi dito a quatro ou dez séculos atrás continua sendo importante para os dias atuais (mas qual é a motivação?). Então, em periódicos acabamos nos deparando com inúmeros artigos sob os títulos de “a psiquiatria à luz de Foucault”, “o conceito de ‘verdade’ em Nietzsche”, “a metafísica sob a concepção de Santo Agostinho” ou “redefinindo ‘átomos’ a partir da metafísica dos pré-socráticos”. Defendo que não há nenhum problema em contrastar a intuição dos filósofos à luz do conhecimento atual, mas o problema é fragmentar-se em um pensamento obsoleto, que está em desacordo com a maior parte do conhecimento atual, para salvar, talvez por razões estéticas ou preferências pessoais, o pensamento de um cientista ou filósofo antigo cuja a intenção seja de aplica-lo para solucionar algum “problema” (por exemplo, usar Foucault para argumentar que doenças mentais são construções sociais de figuras de autoridades que têm a intenção de oprimir, ignorando assim toda a literatura especializada em psicologia experimental e neurociência).

Nos círculos apologéticos, persiste a vontade de validar a asserção de que “o pensamento cristão está de acordo com a ciência” recorrendo a Newton (ignorando que suas contribuições à física de sua época não corroboram com suas crenças teológicas e ocultistas) e a Einstein (ignorando que o seu conceito de “Deus” remete ao filósofo Baruch von Spinoza). Não obstante, nos círculos autointitulados céticos acontece a mesma coisa, ou, às vezes, até pior.

No famoso grupo Saganistas, uma versão recente de um antigo grupo de entusiastas da ciência e da filosofia, inspirada inicialmente na página Carl Sagan Irônico, está ocorrendo uma onda de deturpação a respeito do pensamento de Sagan para validar posições políticas e crenças pessoais. Abaixo, segue uma lista de cinco equívocos comuns cometidos pelos autodenominados “Saganistas”:

1. Ateu

Carl Sagan era agnóstico. Na obra “God and Carl Sagan: Is the Cosmos Big Enough for Both of Them?”, Sagan diz:

“Um ateu é alguém que tem certeza de que Deus não existe, alguém que tem provas irrefutáveis contra a existência de Deus. Não conheço essa evidência convincente. Como Deus pode ser relegado a tempos e locais remotos e causas últimas, teríamos que saber muito mais sobre o universo do que agora para ter certeza de que Deus não existe. Para ter certeza da existência de Deus e ter a certeza da não existência de Deus parece-me ser os extremos confiantes em um assunto tão cheio de dúvida e incerteza quanto ao inspirar muita pouca confiança no mesmo.”

2. Astrobiólogo

O erro em questão está contido na versão portuguesa da Wikipédia, onde coloca Sagan até mesmo como cosmólogo. O ponto é que a astrobiologia, enquanto ciência emergente, surgiu após a sua morte. É sabido que houve uma tentativa de estabelecer um “programa científico” que buscava sinais de vida extraterrestre microbiana em Marte, o programa ficou conhecimento como “exobiologia” e acabou caindo no esquecimento pela falta de evidência. Uma outra tentativa, e que ainda continua em atividade, vem do campo da radioastronomia, que busca sinais de vida extraterrestre inteligente através de radiotelescópios do Instituto SETI. No entanto, até pouco tempo atrás, nenhum desses programas eram vistos como sendo parte de um campo emergente (ou “mais amplo”), o que agora é conhecido como “astrobiologia” e que lida também com outras questões, tais como as origens e os limites da vida na Terra, que até então eram de domínios exclusivos das ciências básicas (a química e a biologia), e que emergiu no início deste século. Sagan, no melhor dos casos, foi um dos precursores da astrobiologia pelas suas pesquisas sobre a especulação das condições geológicas e meteorológicas de planetas que poderiam abrigar a vida no Sistema Solar (Marte e Vênus), ou mesmo em planetas que poderiam ter alguma forma de vida completamente diferente da nossa (Júpiter), pelo ativismo político no que tange a importância do investimento financeiro no projeto SETI para a busca de vida inteligente extraterrestre e, principalmente, por integrar um grupo de cientistas e ufólogos no projeto Blue Book, onde visava analisar criticamente relatos sobre o aparecimento de UFOs (sigla em inglês para “objetos voadores não identificados”).

3. Problematizador (ou Pós-moderno)

O termo “problematizar” vem carregado da arte de que indagar-se sobre as trivialidades da vida cotidiana, ao mesmo tempo que defende posições autoritárias no que concerne a vida alheia. Em síntese, indivíduos problematizadores questionam se “é correto um negro relacionar-se com um branco?”, “héteros podem falar sobre os direitos homossexuais?”, “se homens podem falar de feminismo?”, et cetera.

A problematização vem seguida do “argumento de vivência” (apelo à experiência, ou evidência anedótica), que defende que somente indivíduos que passaram por certas experiências podem falar sobre elas. Por exemplo, um historiador brasileiro do século XXI não pode falar do nazismo, porque ele não o vivenciou. Em outra analogia, somente um judeu que viveu na Alemanha de Hitler pode falar sobre o nazismo. Mas os pós-modernos aplicam esse argumento para falar sobre causas e problemas sociais, então, argumentam com louvor que somente indivíduos pertencentes a um grupo socialmente e historicamente oprimido podem falar sobre eles. Deste modo, ignoram que não são todas as pessoas que reagem de forma semelhante as mesmas experiências.

Um outro problema é o “pós-modernismo”, que é uma reação filosófica contra-Iluminista, é anticientífico, porque nega princípios filosóficos que favorecem a investigação científica, tal como o realismo (a suposição filosófica de que existe uma realidade independente do sujeito e de que podemos conhece-la em alguma medida), a racionalidade (de que todas ideias podem ser debatidas de maneira clara e precisa), a objetividade, o universalismo e o secularismo.

O problema é que Sagan não era problematizador nem flertava com o pensamento pós-moderno, tendo, inclusive, brevemente criticado no “O Mundo Assombrado Pelos Demônios”. O que Sagan enfatizava em suas obras era a importância do ceticismo científico, que longe de ser um jogo de questionamentos triviais, esse princípio proclama pelo questionamento racional de um experimento, teoria ou resultado de uma pesquisa científica, e também serve para controlar a imaginação, no sentido de que ela não sobreponha o conhecimento da realidade.

4. Humanismo: Secularidade e Secularismo

Sagan não era simpático à religião. No “O Mundo Assombrado Pelos Demônios”, ele diz:

“As religiões são frequentemente escolas de pseudociência que têm proteção do Estado, embora não haja razão que as obrigue a desempenhar esse papel. De certo modo, é um artefato de tempos muito remotos.”

Sagan defendia a promoção da ciência e do pensamento crítico, batendo de frente com as indagações de pseudociências, que eram – e ainda são – comumente divulgadas na mídia e promovidas dentro de seitas religiosas (esotéricas, new age, et cetera).

O compromisso de Sagan estava na adoção do secularismo, que é o princípio filosófico de que devemos promover a educação científica, a livre pesquisa e o ceticismo científico, separar o Estado da religião, e erradicar o pensamento obscurantista, o movimento anticiência, a pseudociência e a crença no sobrenatural. Assim, estabelecendo uma renovação de valores em favor da racionalidade e não endossando o pluralismo religioso nas questões políticas e sociais, algo que é adotado pela secularidade.

Além disso, Sagan, juntamente com o seu colega e filósofo Paul Kurtz, fundou a CSICOP (Comitê para a Investigação Científica de Alegações do Paranormal), uma sociedade que tem como objetivo investigar alegações de fenômenos paranormais e sobrenaturais, mas mantendo sempre o compromisso com o ceticismo científico.

5. Socialista

Carl Sagan não era um socialista tradicional. Sua posição, de acordo com a entrevista abaixo, pode ser definida como social-democracia:

 

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Consultor em Segurança da Informação e Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking e Full Stack Java Developer. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.