Por Hanrrikson de Andrade e Wanderley Preite Sobrinho
Publicado no Universo Online
O ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, divulgou hoje que um teste in vitro realizado no Brasil apontou eficácia de 94% para um remédio contra a COVID-19. Especialistas consultados pelo UOL afirmam, no entanto, que há uma grande diferença entre resultados em laboratório e em humanos e que o anúncio do governo é um “desserviço”.
De acordo com o ministério, ao menos 500 pacientes com a COVID-19 participarão dos estudos clínicos. Pontes não informou o nome da droga, mas disse que o medicamento desenvolvido por cientistas brasileiros tem formulação pediátrica e preço acessível.
Trata-se de um remédio descoberto pelo CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), em Campinas (SP). A eficácia de 94% mencionada por Pontes se deu após 48 horas em testes in vitro contra o coronavírus – indicador similar ao da cloroquina, que também vem sendo testada no Brasil e no exterior.
Os médicos consultados pelo UOL explicam que o teste “in vitro” a primeira fase da pesquisa, ainda na “bancada do laboratório”. “É feito em uma placa celular, de vidro. Nela você coloca uma substância da molécula [do remédio] na estrutura [celular] e, a partir disso, existe uma parte que pode se encaixar”, explica o infectologista José David Urbaéz Brito, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Sucesso ‘in vitro’ é comum
Para Brito, o anúncio do ministério é um “desserviço” que “faz aumentar a expectativa de uma população vulnerável submetida ao medo”.
De acordo com ele, a eficácia de moléculas testadas in vitro é algo “corriqueiro” e quase sempre não se confirma nos exames com humanos. “No mundo da descoberta de medicamentos, os cientistas fazem centenas, pra não dizer milhares, de testes in vitro. Quase sempre todos são muito bem-sucedidos. É uma ferramenta para lá de primitiva e que não dá base para imaginar que isso possa funcionar em um organismo inteiro”, disse.
Pesquisador e professor de Medicina Intensiva da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Luiz Fernando dos Reis Falcão explica que os testes in vitro são o primeiro de uma série de passos que separam a descoberta de uma molécula de sua eficácia em seres humanos.
“Toda a vez que um laboratório desenvolve uma medicação ele primeiro é testado em laboratório, na bancada, in vitro, para depois iniciar os estudos experimentais, normalmente em ratos, para então ser testada em humanos”, explica.
Falar que um remédio funciona in vitro não tem nada a ver com funcionar em rato ou em humanos. É um passo muito distante entre uma coisa e outra.
Luiz Fernando dos Reis Falcão, pesquisador da Unifesp
De acordo com Falcão, a literatura científica tem “um ranqueamento de níveis de evidência”. “O teste experimental, in vitro, é o penúltimo, um dos piores. O pior é o palpite. O teste número um é em humanos.”
Ele explica que os experimentos em pessoas também passam por diversas etapas. “Nunca expomos fragilizados, como crianças, idosos e grávidas”, diz. Além disso, o teste precisa ser “multicêntrico”, feito em pessoas de diversos lugares.
“Não é só com brasileiro e chinês. Também precisa ir além do prontuário e ser randomizado, com grupo de controle: algumas pessoas desse grupo receberão o remédio, outras não.”
Ele explica que um medicamento leva, em média, “de 10 a 20 anos para sair da bancada e chegar à prateleira da farmácia”. Ele diz, no entanto, que, se o remédio anunciado pelo governo já está no mercado, esse processo pode ser mais rápido.
Trabalho de “baixa qualidade”
Segundo Brito, da Sociedade Brasileira de Infectologia, um “organismo inteiro” é muito mais complexo do que a observação de moléculas em laboratório. “Há imensa multiplicidade de células, vias metabólicas, vias de inflamação”, compara. “É muito prematuro dizer que aquela molécula que teve algum efeito interessante e que deu algum entusiasmo poderá ser usada em uma pessoa.”
Além da “irresponsabilidade” do anúncio, o infectologista também aponta como problema a ausência de teste em animais, como camundongos e primatas.
Nunca se viu uma informação [oriunda de um trabalho científico] de tão baixa qualidade. […] Notícias oportunistas têm um enorme impacto em um momento de medo coletivo.
José David Urbaéz Brito, infectologista
Como o remédio foi desenvolvido?
Os cientistas do CNPEM testaram 2.000 medicamentos utilizando um computador com inteligência artificial para ver a interação com enzimas que fazem a replicação do vírus. Destes, seis seguiram para o teste in vitro. Um deles se mostrou especialmente promissor e agora vai para testes clínicos com pacientes infectados.
Os pesquisadores não divulgarão o nome do remédio por enquanto, por ainda estar em fase de testes. Segundo eles, os testes devem durar quatro semanas. A intenção é saber se o sucesso notado na pesquisa in vitro também ocorrerá em humanos, o que seria um grande avanço na luta contra o coronavírus.
Segundo Kleber Franchini, diretor do LNBio (Laboratório Nacional de Biociências, que fica dentro do CNPEM), esta fase é importante para entender se o medicamento funciona. Os outros medicamentos que participam dos testes in vitro ainda não estão descartados; eles continuarão sendo avaliado pelos cientistas, já que há a possibilidade de que o coronavírus seja combatido por um “combo” de remédios.
“Continuamos na triagem de medicamentos. Embora tenha sido identificado um candidato bastante promissor, sabe-se que, para o tratamento de viroses, é comum que sejam necessários mais de um medicamento para vencer as frequentes mutações do vírus. Ou seja, muitas vezes é preciso um arsenal terapêutico, um coquetel, capaz de inibir diferentes alvos virais, como acontece no coquetel utilizado contra o HIV”, afirmou Franchini.
A pesquisa em pacientes deixará de ser parte do CNPEM. Os resultados foram entregues para a Rede Vírus, criada pelo MCTIC e composta por várias organizações, que delegará para outra instituição o teste clínico contra a doença em hospitais.