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Em 1110, a Lua desapareceu do céu e agora talvez finalmente sabemos o motivo

Traduzido por Julio Batista
Original de David Nield para o ScienceAlert

Quase um milênio atrás, uma grande reviravolta ocorreu na atmosfera da Terra: uma nuvem gigante de partículas ricas em enxofre fluiu pela estratosfera, tornando o céu escuro por meses ou até anos, antes de finalmente cair na Terra.

Sabemos que esse evento aconteceu porque os pesquisadores perfuraram e analisaram núcleos de gelo – amostras retiradas das profundezas das camadas de gelo ou de geleiras, que aprisionaram aerossóis de enxofre produzidos por erupções vulcânicas que atingem a estratosfera e voltam à superfície.

O gelo pode, portanto, preservar a evidência de vulcanismo em escalas de tempo incrivelmente longas, mas apontar a data precisa de um evento que aparece nas camadas de um núcleo de gelo ainda é um negócio complicado.

Neste caso, os cientistas presumiram que o depósito de enxofre foi deixado por uma grande erupção desencadeada em 1104 pelo Hekla da Islândia, um vulcão às vezes chamado de ‘Portal do Inferno’. Visto que sua fina faixa de gelo está entre os maiores sinais de deposição de sulfato do último milênio, isso parece plausível.

Mas e se a linha do tempo aceita de um núcleo de gelo acabar sendo distorcida no tempo? Há alguns anos, um estudo concluiu que uma escala de tempo chamada Cronologia do Núcleo de Gelo da Groenlândia 2005 (GICC05) estava errada em até sete anos no primeiro milênio d.C. e em até quatro anos no início do próximo milênio.

Essas descobertas, de acordo com uma pesquisa publicada em abril de 2020 – liderada pelo paleoclimatologista Sébastien Guillet, da Universidade de Genebra, na Suíça – significa que o Hekla não poderia ter sido o culpado pelo sinal gigante do sulfato, afinal.

“Uma descoberta proeminente decorrente desta datação revisada do núcleo de gelo é um sinal vulcânico bipolar importante e até então não reconhecido com a deposição do sulfato começando no final de 1108 ou início de 1109 d.C. e persistindo até o início de 1113 d.C. no registro da Groenlândia”, explicam Guillet e os co-autores em seu paper, observando que as evidências para o mesmo evento também podem ser vistas em uma cronologia do núcleo de gelo da Antártica revisada de forma semelhante.

Para investigar o que pode ter sido responsável por deixar esses rastros antigos no topo e na base do mundo, a equipe vasculhou a documentação histórica, em busca de registros medievais de eclipses lunares estranhos e escuros que poderiam corresponder à névoa estratosférica de grandes eventos eruptivos.

“Os espetaculares fenômenos ópticos atmosféricos associados aos aerossóis vulcânicos de alta altitude chamam a atenção dos cronistas desde os tempos antigos”, escreve a equipe.

“Em particular, o brilho relatado de eclipses lunares pode ser empregado tanto para detectar aerossóis vulcânicos na estratosfera quanto para quantificar profundidades ópticas estratosféricas após grandes erupções.”

De acordo com os registros da NASA baseados em retrocálculos astronômicos, sete eclipses lunares totais seriam observáveis ​​na Europa nos primeiros 20 anos do último milênio, entre 1100 e 1120 d.C.

Entre eles, uma testemunha de um eclipse lunar ocorrido em maio de 1110 escreveu sobre a escuridão excepcional da Lua durante o fenômeno.

“Na quinta noite do mês de maio apareceu a lua brilhando forte ao entardecer, e depois aos poucos sua luz diminuiu, de modo que, assim que a noite chegou, foi apagada tão completamente, que nem luz, nem orbe, nem nada disso foi visto”, escreveu um observador na Crônica de Peterborough.

Muitos astrônomos já discutiram esse eclipse lunar misterioso e incomumente escuro. Séculos depois de ter ocorrido, o astrônomo inglês Georges Frederick Chambers escreveu sobre isso, dizendo: “É evidente que este [eclipse] foi um caso de um eclipse ‘negro’, quando a Lua se torna bastante invisível em vez de brilhar com o familiar tom acobreado”.

Apesar de o evento ser bem conhecido na história da astronomia, os pesquisadores nunca sugeriram que ele pudesse ter sido causado pela presença de aerossóis vulcânicos na estratosfera, embora essa seja a causa mais provável, sugere o novo estudo.

“Notamos que nenhuma outra evidência de cobertura de poeira vulcânica, como escurecimento do Sol, crepúsculo vermelho e/ou halos solares avermelhados, puderam ser encontrados durante nossas investigações nos anos 1108-1110 d.C.”, escreveram os pesquisadores.

Se o timing estiver correto, então qual vulcão foi responsável pela nuvem de enxofre, já que Hekla agora está fora de cena?

Embora seja impossível saber com certeza, a equipe pensa que a explicação mais provável é o Monte Asama, no Japão, que produziu uma erupção gigante de meses no ano 1108 – significativamente maior do que uma erupção subsequente em 1783 que matou mais de 1.400 pessoas.

Uma anotação do diário registrada por um estadista descreve o acontecimento de 1108: “Houve um incêndio no topo do vulcão e uma espessa camada de cinzas no jardim do governante. Por toda parte, os campos e os arrozais estão impróprios para o cultivo. Nunca vimos isso no país. É uma coisa muito estranha e rara.”

Além de relatos de testemunhas, os pesquisadores também observaram evidências em anéis de árvores, o que sugere que 1109 d.C. foi um ano excepcionalmente frio (cerca de 1 grau Celsius mais frio no hemisfério norte), baseado em anéis de árvores significativamente mais finos.

Outra documentação histórica, em particular relatos de impactos climáticos e sociais nos anos 1109-1111 d.C., corroboram a hipótese de que uma erupção de 1108 (ou uma série de erupções que começaram naquele ano) poderia ter levado a efeitos desastrosos nas comunidades afetadas.

Os pesquisadores encontraram uma “abundância de testemunhos referentes ao clima adverso, quebras de safra e períodos de fome nesses anos”, observando que “as evidências reunidas sugerem que as dificuldades de subsistência, que começaram em 1109, se agravaram com a fome em várias regiões da Europa Ocidental”.

Claro, essas dificuldades de longa data não podem ser tomadas como prova de qualquer evento eruptivo em particular, mas os pesquisadores dizem que todas as evidências, tomadas em conjunto, sugerem que um grupo “esquecido” de erupções vulcânicas em 1108-1110 desencadeou terríveis consequências na humanidade. Estamos apenas redescobrindo-os agora.

Os resultados são relatados em Scientific Reports.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.