Por Karina Toledo
Publicado na Agência FAPESP
Uma parceria firmada entre os pesquisadores do Observatório COVID-19 BR e a Secretaria de Saúde do Município de São Paulo tem possibilitado monitorar com dados mais próximos da realidade a evolução da epidemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) na capital paulista – cidade com o maior número de casos confirmados no país.
Com uso de uma ferramenta estatística conhecida como nowcasting, a equipe consegue corrigir o atraso no sistema de notificação da doença, que é decorrente da demora – de aproximadamente 10 dias – no processamento dos exames diagnósticos. Desse modo, por exemplo, foi possível calcular a existência de 4.493 paulistanos com manifestações graves de COVID-19 no dia 13 de abril, enquanto os dados oficiais apontavam apenas 3.357 casos confirmados nessa data.
Os resultados do trabalho, realizado no âmbito do Grupo Técnico de Assessoramento em Epidemiologia e Modelagem Matemática COVID19 (GT COVID-19 Sampa), estão disponíveis na página covid19br.github.io/municipio_SP.
“A principal vantagem é possibilitar ao gestor público a tomada de decisão com base em dados do presente e não de duas semanas atrás”, afirma o físico Vítor Sudbrack, mestrando no Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp) sob a orientação do professor Roberto Kraenkel. Ambos integram a equipe do Observatório COVID-19 BR, plataforma on-line que reúne análises baseadas em dados oficiais sobre a propagação do SARS-CoV-2 no Brasil. A iniciativa é fruto da colaboração entre cientistas da Unesp, da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Graças à parceria com a secretaria municipal, os pesquisadores tiveram acesso à base de dados local do Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (SIVEP-Gripe), que é gerido em nível nacional pelo Ministério da Saúde. Lá estão concentradas as notificações de todos os pacientes que deram entrada em hospitais públicos da capital e foram internados com síndrome respiratória aguda grave (SRAG).
“Quando o paciente é internado com SRAG, é feita a notificação e colhida uma amostra para diagnóstico. O resultado pode indicar se a causa foi o novo coronavírus, o influenza [vírus da gripe], algum outro patógeno ou ainda pode ser inconclusivo”, explica Ana Freitas Ribeiro, médica sanitarista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e membro do GT COVID-19 Sampa.
Dados do Ministério da Saúde indicam que, na semana epidemiológica 14 – que corresponde ao período entre 29 de março e 04 de abril –, cerca de 90% das confirmações de SRAGs por vírus respiratórios (7.333) correspondiam a casos de COVID-19. “Entretanto, nesse mesmo período, 89% dos casos notificados em nível nacional ainda estavam em investigação”, conta Ribeiro.
Segundo Paulo Inácio Prado, professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da USP e integrante do Observatório COVID-19 BR, a metodologia usada pelo grupo para corrigir esse atraso no registro de casos de COVID-19 da capital paulista poderia ser aplicada em qualquer cidade do país.
“Temos interesse em fazer novas parcerias que nos possibilitem acesso às bases de dados do SIVEP-Gripe. No GT COVID-19 Sampa acontece o diálogo entre pesquisadores de universidades, do sistema de saúde e da prefeitura. A correção do atraso de notificação dos dados oficiais é resultado desse diálogo transdisciplinar, que vejo como um subsídio muito útil às políticas públicas porque é construído junto com gestores”, diz Prado.
Monitoramento preciso
Os pesquisadores entrevistados pela Agência FAPESP explicam que a ferramenta de nowcasting não corrige a subnotificação dos casos assintomáticos e dos infectados com sintomas leves, que atualmente não são testados no país.
O protocolo de vigilância epidemiológica da COVID-19 adotado pelo Brasil determina testar prioritariamente os pacientes que necessitam de internação hospitalar, profissionais de saúde e pessoas que morreram em decorrência de SRAG.
“Como não há testes suficientes para toda a população, parte-se do princípio de que o monitoramento dos casos graves pode dar uma noção do todo e indicar o ritmo de crescimento ou retração da epidemia”, explica Sudbrack.
Essa estratégia de vigilância, contudo, tem sido prejudicada pelo atraso nas notificações – principalmente na Região Metropolitana de São Paulo, que concentra a maioria dos infectados pelo novo coronavírus. Por limitações logísticas, o intervalo de tempo entre a chegada do paciente grave ao hospital e a confirmação do diagnóstico tem sido, em média, de 10 dias. Os dados oficiais sem a correção do nowcasting, portanto, indicam o índice de ocupação hospitalar por COVID-19 de 10 dias atrás.
“Até 20 de março, o número oficial de casos [1.231] no município é muito parecido com o apontado pela ferramenta de nowcasting [1.254]. A partir desse ponto as curvas no gráfico começam a divergir, indicando que o número de novos testes realizados havia ultrapassado a capacidade de processamento do sistema de saúde”, diz Sudbrack.
Para contornar o problema, os pesquisadores do Observatório COVID-19 BR usaram técnicas estatísticas que permitem corrigir o número oficial de casos de acordo com a distribuição média de atraso na notificação.
“Se eu tenho um amigo que sempre se atrasa 10 minutos para chegar a um compromisso, sei que posso chegar 10 minutos após o horário marcado. Assim, há grande chance de chegarmos juntos. Eu me adaptei com base em um comportamento médio. A lógica da ferramenta é mais ou menos a mesma”, explica Sudbrack.
Além de ajudar os gestores a preparar o sistema de saúde para atender os doentes, a ferramenta possibilita fazer outros tipos de cálculo com maior precisão.
“Sem a correção do nowcasting, por exemplo, o tempo estimado de duplicação dos casos graves de COVID-19 na cidade de São Paulo estava acima de 10 dias no começo de abril. Quando fizemos a correção percebemos que, na verdade, a quantidade de casos graves dobrava a cada sete dias. Antes da quarentena ser decretada, em 22 de março, os casos dobravam a cada quatro ou cinco dias. Esse ritmo se manteve até 24 de março e, a partir de então, o tempo começou a aumentar, sinal de que o distanciamento social está freando a disseminação do vírus”, diz.
Na avaliação de Sudbrack, porém, a situação atual ainda não permite pensar no relaxamento das medidas adotadas para conter o avanço da epidemia. “Ainda estamos em uma condição delicada. Se hoje temos em torno de 5 mil casos, teremos aproximadamente 10 mil em uma semana. E corremos o risco de jogar fora todo o trabalho já feito se a circulação de pessoas for liberada antes da hora. O tempo de duplicação dos casos na Itália, por exemplo, já ultrapassou 25 dias e só agora estão começando a relaxar lentamente as medidas de isolamento social”, conta.
No limite
Uma estimativa disponível na página do Observatório COVID-19 BR aponta que, se não tivessem sido adotadas medidas para conter a disseminação do novo coronavírus e para expandir a capacidade do sistema público de saúde, os leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) do município de São Paulo teriam alcançado 100% de ocupação no dia 2 de abril. Ou seja, a rede pública da capital já teria entrado em colapso.
Como destaca Prado, estima-se que um caso grave de COVID-19 permaneça internado, em média, por 11 dias. Portanto, mesmo com o aumento no tempo de duplicação dos casos da doença, os pacientes graves continuam a se acumular nos hospitais. “No momento, o GT COVID-19 Sampa projeta um aumento de pelo menos 20% na demanda por leitos de UTI a cada semana”, revela.