Por André Julião
Publicado na Agência FAPESP
O soerguimento da Cordilheira dos Andes (entre 54 e 57 milhões de anos atrás) causou uma série de alterações ambientais e climáticas que possibilitaram uma verdadeira revolução entre as vespas. O sistema de castas em que apenas uma rainha põe os ovos, enquanto operárias estéreis realizam todas as outras tarefas da colônia, deu lugar a um sistema com maior paridade reprodutiva. Várias fêmeas tornaram-se férteis. Mas, em contrapartida, surgiu uma outra casta que passou a punir com violência as rainhas que produziam menos ovos, cortando suas asas e expulsando-as da colônia. Paralelamente, o ninho ganhou uma proteção externa contra os maiores inimigos desses insetos alados: as formigas. Surgia, assim, a tribo Epiponini, cujos integrantes são conhecidos como marimbondos ou cabas.
A conclusão é parte dos resultados de um amplo estudo publicado na revista Cladistics por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade de São Paulo (USP) e de dois museus de história natural dos Estados Unidos.
“Além da diferença nas castas, os marimbondos se destacam pela grande diversidade de arquitetura de ninhos, em que praticamente cada gênero tem um formato diferente. Nesse estudo filogenético, observamos que o ancestral comum aparentemente já construía o que chamamos de envelope, uma cobertura que provavelmente tornou-se uma vantagem evolutiva por ser um anteparo contra inimigos, principalmente formigas”, explica Fernando Noll, professor do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Unesp, em São José do Rio Preto, coordenador do estudo.
O trabalho integra o projeto “Filogenia molecular de Epiponini e a relação entre os gêneros basais (Hymenoptera, Vespidae)”, financiado pela FAPESP.
“Ter uma filogenia bem estabelecida é fundamental para entender os cenários evolutivos de um grupo. Nos últimos 20 anos, a filogenia vigente passou a não ser compatível com algumas observações que estávamos fazendo dos marimbondos”, diz Noll à Agência FAPESP.
Filogenias podem ser pensadas como hipóteses evolutivas que descrevem relações de parentesco entre seres vivos. O trabalho dos pesquisadores se debruçou sobre a subfamília Polistinae, especialmente a tribo Epiponini, endêmica da região neotropical (ocorre do Texas ao norte da Argentina) e de maior diversidade – cerca de 250 espécies em 19 gêneros. Os marimbondos integram a família Vespidae, que, por sua vez, forma com abelhas (Apoidea), formigas (Apocrita) e outros insetos genericamente tratados como vespas a ordem Hymenoptera, que representa a grande maioria dos insetos sociais.
Ditadura do proletariado
O termo “marimbondo” é originário da língua quimbundo, falada em Angola. Era inclusive usado pelos portugueses do período colonial de forma pejorativa para designar os brasileiros. No norte do Brasil, o inseto é conhecido ainda como caba, termo de origem tupi.
Por conta da sua agressividade e dos formatos dos ninhos, os marimbondos fazem parte do imaginário brasileiro. As espécies são conhecidas por nomes populares como marimbondo-sargento (Polybia liliaceae e P. jurinei), que tem listras no tórax semelhantes às insígnias da patente militar; vespa-tatu (Synoeca surinama), por conta do ninho assemelhado com o dorso do mamífero, marimbondo-chapéu (gênero Apoica), devido ao formato do seu ninho; marimbondo-prateleira (Agelaia vicina), pelas várias camadas presentes no ninho, entre outros.
Para o estudo, foram coletados marimbondos de várias partes do Brasil, além de exemplares de diferentes coleções cedidos por outras instituições. No total, foram analisados animais de 143 espécies, representando todas as tribos da subfamília Polistinae, além de outras vespas para comparação.
Amostras de DNA foram extraídas dos animais e, em seguida, os pesquisadores amplificaram um gene específico para a identificação de espécies, conhecido como COI, além de outros relacionados à morfologia e a comportamentos de construção do ninho. Ferramentas computacionais relacionaram as informações, resultando numa descrição da subfamília e da posição evolutiva de cada tribo e gênero.
“A imagem mais comum dos insetos sociais é a da abelha europeia (Apis mellifera), onde se tem uma rainha com grande potencialidade reprodutiva e distinção morfológica. Submetida a ela, uma casta de operárias estéreis que cuida das tarefas do ninho. No caso dos marimbondos, observamos que evolutivamente ocorreu o caminho inverso. Eles perderam essa característica em algum momento, com muitas fêmeas tornando-se férteis numa mesma colônia e, posteriormente, algumas linhagens readquiriram essa característica”, conta o pesquisador.
O trabalho permitiu identificar ainda que o ancestral comum dos marimbondos desenvolveu um método violento de seleção dos entes mais férteis, presente ainda hoje em grande parte das espécies. Mais ou menos 55 milhões de anos atrás, a chamada fêmea intolerante, a rainha que elimina com violência outras fêmeas férteis, foi substituída por várias fêmeas tolerantes, ou totipotentes, que permitem que mais de um indivíduo seja fértil e produza ovos – uma vantagem evolutiva para o grupo, pois permite a sobrevivência da colônia em períodos de enxameio, quando todos os indivíduos (ou uma fração deles) deixam o ninho para formar novas colônias. A violência, porém, continuou a permear as relações, com o surgimento de uma outra casta, que pune com agressividade as rainhas menos produtivas.
“Elas são uma polícia da reprodução. As rainhas que produzem menos ovos têm as asas cortadas e são expulsas do ninho. Existe até uma dança ritual. As rainhas que não a executam da maneira correta são eliminadas pelas operárias. Quando o ninho começa, há várias reprodutoras, mas com o tempo isso vai se afunilando até que ficam apenas as mais produtivas. Essa mudança drástica na sociedade permitiu a diversificação bastante ampla que existe hoje”, conta Noll. Como ocorre entre outros insetos sociais, os machos são removidos da colônia ou morrem naturalmente após o acasalamento.