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Novas descobertas sobre a origem da vida e o mito da argila

No final de 2013, a revista Scientific Reports publicou um estudo sobre como a vida poderia ter surgido no planeta. Tal estudo, intitulado “Enhanced transcription and translation in clay hydrogel and implications for early life evolution” (1), foi divulgado em páginas religiosas com o intuito de corroborar alegações “sagradas” (2).

Porém, o que diz o estudo e há alguma relação dele com textos sagrados?

Crédito: Pixabay.

Para um melhor entendimento, temos que falar sobre essa hipótese de origem da vida na Terra (3), mas não vamos nos ater a ela, pois é assunto para outra postagem.

Em 1951, J. D. Bernal propôs que a argila pode adsorver moléculas orgânicas, o que facilitaria o seu encontro no “caldo primordial” (3,5) e, assim, ela teria uma grande influência sobre a evolução química (4,5), desempenhando um papel de catalizador de reações de polímeros, além de proteger das moléculas da radiação, que seria fatal para tais (5).

Ponnamperuma et al. (1982) citam os estágios da evolução química na Terra primitiva, retirados da hipótese de Bernal (1951), e que seguem uma sequência:

  1. Minerais de argila catalisam as reações de síntese de biomonômeros gasosos constituintes da atmosfera primitiva.
  2. Os minerais de argila adsorvem biomonômeros em sua superfície, provendo um sistema altamente concentrado no qual os monômeros tem uma orientação
  3. Minerais de argila facilitam as reações de condensação entre monômeros adsorvidos os quais formam biopolímeros. Em adição a isso, a superfície dos minerais de argila podem ter servido de moldes para a adsorção específica e replicação de moléculas orgânicas. (retirado na íntegra de Ponnamperuma et al. (1982))

Por conseguinte, Cains-Smith (1982) sugeriu que a argila pode armazenar e reproduzir defeitos estruturais, além de possuir características distintas (ver referências 4 e 5).

Já em 2013, Yang e colaboradores mostram que, além das características mostradas anteriormente na literatura, a argila protege os ácidos nucleicos das enzimas DNase e RNase, porém não inibem a transcrição e nem a tradução (1).

Em palavras dos autores:

“In turn, this couldimply that the clay hydrogel provided a favorable environment forpre-cellular evolution in an ‘‘RNA world’’.” (Yang et al., 2013)

“In other word, clay selectively protected molecules that were conducive to the RNA and protein synthesis, such as DNA, RNA, transcriptional and translational machinery.” (Yang et al., 2013)

Tendo visto isso, agora, qual a relação com textos “sagrados” da criação?

Diversas culturas afirmam que a criação do homem foi feita através do barro. Entre as crenças citadas temos:

Crédito: Pixabay.
  • Tupi-Guarani:

Tupã desceu à Terra e criou o homem do barro.

  • Yorubá:

Oxalá e Nanã criaram o homem a partir da argila e barro.

  • Abraâmicas:

Javé criou o homem a partir do barro.

Entre diversas outras mitologias, que contam o mesmo, um criador pegou barro e moldou a vida. Diferentemente do que temos visto até agora, onde a argila apenas funcionou como um adsorvente, catalizador e protetor e da reação orgânica. Não há evidências de que a argila foi moldada ou de que um criador desceu à ao nosso planeta e disse “Faça uma espécie de hominídeos!”.

Algumas crenças vêm tentado confundir muita gente, dizendo que tais descobertas afirmam a criação e, logo, um criador, sem ao menos os seus divulgadores terem lido o paper ou procurado algo a respeito, levando, assim, às pessoas informações tendenciosas e muitas vezes desonestas e mentirosas. 

Crer em algo é cultural. Mas que este algo, não entrave a ciência e nem tente distorcer os fatos.

Referências

  1. YANG, Dayong et al. Enhanced transcription and translation in clay hydrogel and implications for early life evolution. Scientific reports, v. 3, 2013. [Link]
  2. Notícia: Chagas, T. Novo estudo científico confirma o Gênesis: a vida humana teve origem no barro. Entenda.
  3. Notícia: Mullen, L. Life’s Cristal Code
  4. HASHIZUME, Hideo. Role of Clay Minerals in Chemical Evolution and the Origins of Life. 2012. [Link]
  5. PONNAMPERUMA, Cyril; SHIMOYAMA, Akira; FRIEBELE, Elaine. Clay and the origin of life. Origins of Life and Evolution of Biospheres, v. 12, n. 1, p. 9-40, 1982. [Link]

Material complementar

  1. Choi, C. Q. (2011). 7 Theories on the Origin of Life
  2. Goulart, M. (2012). 10 mitos de criação da vida e humana
  3. EFE. (2003). Origem da vida pode estar no barro, diz estudo
  4. HANCZYC, Martin M.; FUJIKAWA, Shelly M.; SZOSTAK, Jack W. Experimental models of primitive cellular compartments: encapsulation, growth, and division. Science, v. 302, n. 5645, p. 618-622, 2003. [Link]
Diego Assis

Diego Assis

Bacharel em Ciência Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas, Mestre em Entomologia pela UFV, e doutorando pela USP - Ribeirão Preto. Apaixonado por jogos de RPG, FPS e plataforma. Gosta de livros, filmes antigos e rock clássico. Trabalha com formigas, gosta de formigas e acha elas mais legais que outros insetos sociais. E não sabe porque cargas d'água está escrevendo em terceira pessoa.