Por Domingos Zaparolli
Publicado na Pesquisa FAPESP
O uso intensivo de tecnologias digitais está proporcionando novas perspectivas para a investigação científica em arqueologia. Em novembro de 2016, o uso da técnica de escaneamento a laser permitiu a obtenção de um modelo tridimensional em alta resolução de um dos altos-fornos da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, erguida em Iperó, interior paulista, a partir de 1810. A tecnologia também tem sido empregada como apoio à pesquisa sobre as atividades de povos primitivos em três sítios arqueológicos paulistas. Um polo de ciberarqueologia no Brasil, como é chamada a interação entre a computação e a arqueologia, é o Centro Interdisciplinar em Tecnologias Interativas (Citi), núcleo de apoio à pesquisa da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), coordenado pelo engenheiro Marcelo Zuffo. “A ciberarqueologia tem sido utilizada no mundo de forma crescente desde o começo deste século para reconstituir monumentos com o intuito de divulgação científica. Mas ainda são raras as aplicações da tecnologia digital de forma analítica, como apoio à investigação arqueológica”, explica o professor Astolfo Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.
O projeto é uma parceria entre o Citi e o MAE com o objetivo de estabelecer o uso de tecnologias digitais como ferramentas de apoio à investigação arqueológica em que também foi incorporado um terceiro parceiro, a Duke Immersive Virtual Environment (DiVE), na Universidade Duke, dos Estados Unidos, um dos principais centros tecnológicos de realidade virtual do mundo. Segundo Zuffo, a parceria permitiu à sua equipe entender as demandas dos arqueólogos e direcionar o uso das ferramentas de computação para esse fim.
A Fábrica de Ferro de Ipanema foi um dos primeiros locais onde foram utilizadas as técnicas de escaneamento digital. O antigo parque industrial já conta com um rico acervo iconográfico sobre a evolução de sua estrutura e dos processos produtivos em suas duas fases de operação. A primeira até 1895 e a segunda quando foi reativada durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1919). Esse material é estudado desde 2009 pelos pesquisadores de arqueometalurgia do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Poli-USP, sob a liderança do engenheiro Fernando Landgraf, que é também diretor-presidente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Landgraf conta que o escaneamento a laser trouxe informações inéditas sobre a estrutura interna do alto-forno e seu princípio de funcionamento. O forno é o reator no qual o minério de ferro é transformado em ferro metálico. A configuração da estrutura interna, denominada vazio interior, é um dos principais parâmetros da qualidade de operação do forno.
Ipanema conta com três altos-fornos, cada um com mais de 8 metros de altura (ver Pesquisa FAPESP nºs 173 e 202). Dois, o Norte e o Sul, fazem parte do projeto original da fábrica e foram escaneados em 2015 por pesquisadores da Universidade de Ferrara, da Itália. No ano passado, a equipe do Citi utilizou drones para escanear toda a área externa dos fornos e o interior do terceiro alto-forno, construído posteriormente e conhecido como forno de Mursa. “O escaneamento mostrou que o perfil do vazio interior dos altos-fornos Norte e Sul era alterado com frequência, sempre para aumentar a produtividade. O forno de Mursa, construído entre 1878 e 1885, nunca chegou a operar e praticamente não mudou”, diz Landgraf.
Para o engenheiro, a análise do material coletado demonstrou que os perfis dos altos-fornos da fábrica de Ipanema eram compatíveis com as melhores técnicas siderúrgicas utilizadas no mundo e que, no aspecto geral, o perfil do vazio interior dos altos-fornos continua a ser projetado da mesma forma até hoje. A pesquisa constatou que o conhecimento técnico dos engenheiros alemães e brasileiros que construíram e operaram a fábrica era muito maior que o imaginado inicialmente pelos pesquisadores. “A qualidade da produção era igual ou superior à europeia na mesma época”, diz Landgraf, embora a produção nunca tenha alcançado a meta inicial prevista de 600 toneladas por ano.
O Laboratório de Topografia e Geodésia, da Poli-USP, em conjunto com a equipe do Citi também escaneou outra construção histórica em 2016 com o apoio de drones, o Monumento Nacional Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos, construído em 1534 na divisa entre Santos e São Vicente, litoral de São Paulo. Nesse caso, a reconstituição em 3D da estrutura teve objetivo educativo: proporcionar aos interessados uma visita virtual ao engenho.
Lasers e alta definição
Os trabalhos na fábrica de Ipanema e no engenho dos Erasmos são desdobramentos de um projeto inscrito em 2014 no Programa FAPESP de Pesquisa em eScience, que busca integrar modelagem computacional, infraestrutura de dados e pesquisas em outras áreas do conhecimento. Para a pesquisa de campo em sítios arqueológicos, a equipe do Citi optou pelo uso combinado de três técnicas de escaneamento 3D de alta definição. A primeira é por meio do scanner Light Detection And Ranging (Lidar, em inglês), uma tecnologia óptica que usa varredura por laser para medir propriedades da luz refletida e obter informações a respeito de objetos distantes. A segunda são fotografias e vídeos de alta definição em 360°, e a última é a estereofotogrametria, um processo de reconstrução tridimensional por meio de imagens capturadas por uma câmera fotográfica ou filmagem. Na sequência, o computador realiza um processamento visual de diversas imagens e pontos de vista de um objeto de interesse. Por meio da localização de pontos em comum entre duas ou mais imagens, é possível estabelecer a posição espacial de cada ponto detectado pela triangulação.
“A combinação dessas técnicas permite a reconstituição digital em resolução submilimétrica do objeto estudado”, explica Marcelo Zuffo. Um importante resultado obtido é a possibilidade de detectar elementos imperceptíveis a olho nu. Outra vantagem é a redução do impacto da investigação. As metodologias convencionais de arqueologia, principalmente quando envolvem escavações, comprometem o ambiente estudado, por mais cuidadosos que sejam os pesquisadores. Uma análise prévia do local a partir da coleta de informações com os recursos digitais pode tornar o processo exploratório mais objetivo e consequentemente menos agressivo.
A tecnologia também pode ser uma ferramenta útil para a reconstituição espacial dos objetos retirados do sítio para a análise em laboratório. “É praticamente impossível estabelecer com base na memória e anotações a exata disposição original de inúmeros artefatos. O processamento computacional tem a capacidade de montar o quebra-cabeça e permitir novas interpretações do material coletado”, diz Araújo.
Espiral inédita
As pesquisas conjuntas do MAE e do Citi ocorrem, até aqui, em três sítios arqueológicos. No Abrigo de Itapeva e no Abrigo da Santa, ambos no município de Itapeva (SP), e no sítio Bastos, em Dourado (SP), onde foram localizados os vestígios da presença humana mais antiga de São Paulo, datada em 12.600 anos, em um trabalho científico recém-publicado (ver reportagem).
O Abrigo de Itapeva é um sítio descoberto em 1887 e escavado desde os anos 1970. Nele já foram identificadas pinturas rupestres com idade estimada em 4 mil anos, além de gravuras e artefatos com idade aproximada de 800 anos. Os arqueólogos estimam que as gravuras e os artefatos estejam relacionados com indígenas do grupo linguístico Jê e as pinturas a grupos anteriores de caçadores-coletores.
Em 2016, o processamento de dados capturados com os sensores digitais permitiu detectar uma inscrição na forma de espiral não perceptível a olho nu e até então não identificada no sítio de Itapeva. Em outubro, os pesquisadores foram a campo e confirmaram a descoberta.
A pesquisa no Abrigo de Itapeva se dá em um ambiente inóspito e de difícil acesso. Muitas das evidências de artes rupestres estão em um paredão com altura estimada entre 20 e 30 metros, em pontos, às vezes, inacessíveis. A equipe do Citi utilizou drones para capturar imagens de alta definição em 423 megapixels e vídeos em 4K (quatro vezes a definição atual de transmissão de TV digital). O sítio também foi escaneado com o sensor Lidar e estereofotogrametria em alta resolução.
Nos últimos dois anos, a equipe do Citi dedicou-se a desenvolver uma ferramenta virtual com aplicação de visualização imersiva e interativa, que permite ao usuário navegar e explorar as bases de dados digitais do Abrigo de Itapeva com o auxílio de óculos de realidade virtual, dando a sensação ao usuário de estar no local de exploração. A ferramenta foi denominada de Archeo VR e já se encontra em sua terceira versão, que inclui recursos de anotação e processamento local de imagens em 2D e 3D. Uma conexão de internet de 10 Gigabits (Gbps) entre os laboratórios de realidade virtual da USP e Duke foi estabelecida em dezembro de 2016 para dar suporte à ferramenta, que poderá ser acessada remotamente de forma interativa e colaborativa.
“É um instrumento colaborativo inédito que permitirá a especialistas e arqueólogos do mundo todo contribuir para a análise do sítio e descobertas arqueológicas”, afirma o cientista da computação Regis Kopper, brasileiro e diretor do DiVE na Universidade Duke. Araújo lembra também que a ferramenta poderá ser útil na sala de aula, permitindo aos alunos uma maior interação com o material estudado.
Preservação do tempo
O Abrigo de Itapeva encontra-se em uma escarpa, denominada de Cânion de Itanguá, onde se supõe existir outros sítios ainda não identificados. Em novembro, a equipe do Citi rastreou uma área aproximada de 4 km2 com o auxílio de um drone, utilizando a técnica de estereovideogrametria. Os dados coletados ainda estão sendo analisados.
A ciberarqueologia também pode ser utilizada na preservação, para gerações futuras, de informações sobre sítios arqueológicos que sofrem ameaças provenientes da exposição a intempéries climáticas ou da ação humana. Nas imediações do Abrigo de Itapeva está localizado o Abrigo da Santa, onde também foram detectadas gravuras rupestres. Porém, o local encontra-se degradado. Ainda em novembro de 2016, as equipes do Citi e MAE foram a campo para a aquisição de dados por meio de sensores de altíssima resolução e sensibilidade, no caso uma câmera de 43,4 megapixels com o objetivo de reconstituir digitalmente o ambiente e também preservá-lo.
“Existe a hipótese arqueológica de que a população ocupante do Abrigo da Santa tinha o mesmo componente cultural dos habitantes do Abrigo de Itapeva. Entre as possíveis respostas estão a proximidade geográfica e a similaridade das inscrições rupestres. Tentaremos comprovar essa hipótese a partir do processamento 3D dos dados adquiridos”, diz Marcelo Zuffo.