Há casos em que o mundo dos videogames não se baseia propriamente em um mundo fictício com enredo e personagens envolventes. Pode haver até um aspecto científico do mundo real. Esse é o caso de um dos jogos mais bem avaliados e famosos dos últimos anos: The Last of Us. O jogo foi lançado em 2013 pela distribuidora Naughty Dog, sendo este formado por uma atmosfera de survival horror. A história é fundamentada em um cenário pós-apocalíptico em que a raça humana fora abalada pela infestação de um fungo, o Cordyceps, sendo a tentativa de resistência e sobrevivência sobre as condições em que o Planeta ficará após a invasão e consumação da população mundial, a principal trama.
O mais interessante da trama é na fundamentação inicial dela: o fungo. Segundo os desenvolvedores do jogo, Neil Druckmann e Bruce Straley, a história só teve início após o conhecimento deles por um documentário da BBC, chamado “Planet Earth” (2006), onde em um dos episódios há a documentação de um gênero muito instigante de fungo: Ophiocordyceps. No respectivo episódio, é narrada a vida de uma das operárias de uma colônia de formigas, estando ela infectada por uma espécie desse fungo. O mais interessante é a mudança de comportamento que o hospedeiro apresenta na presença fúngica: literalmente, porta-se como zumbi. Pois é, esse fato mórbido acabou gerando ideias para o desenvolvimento de The Last of Us… não é à toa que levou o título da postagem.
O fungo: características gerais
No jogo – como dito anteriormente – o espécime transforma os seres humanos em zumbis, ou se preferir “seres errantes”, esperando por vítimas saudáveis para infectá-las e assim possuir novos hospedeiros que no futuro irão dispersar mais esporos e infectar mais humanos. De um ponto de vista geral, não há zumbis, mas um ser parasitário usando você como fantoche para sobrevivência, dispersão e locomoção da espécie. A propósito, locomover-se para um fungo deve ser estranho, levando em consideração que não tem meios para caminhar – a não ser através dos esporos ou se alguém fazer isso!
Como já especificado, o fungo do jogo é inspirado em uma espécie real. Seu nome é longo e estranho: Ophiocordyceps unilateralis. Esse fungo pertence à ordem Ascomycota (aqueles que têm uma microscópica estrutura sexual que produzem esporos dentro de um asco), e foi descoberto pela primeira vez pelo naturalista britânico Alfred R. Wallace em 1859.
Ele é bastante conhecido por ser capaz de alterar os comportamentos de certas espécies de formigas, remetendo-se realmente ao termo “zumbi”. Após um determinado ciclo, o hospedeiro morre e um corpo de frutificação cresce liberando esporos.
Basicamente, ele é uma espécie de fungo entomopatogênico, ou seja, é um parasita de insetos capaz de matá-los ou mudar seu comportamento. Atualmente, é um espécime encontrado em florestas tropicais (Tailândia e algumas florestas brasileiras), sendo naturalmente um parasita comum de formigas do gênero C. leonardi apesar dele também infectar outras espécies. O mais intrigante é o que ocorre com os indivíduos parasitados.
Ciclo de vida
O “fungo zumbi”, como é conhecido, tem um ciclo básico:
- infecta com seus esporos uma determinada formiga;
- após a infecção, o fungo se anexa ao exoesqueleto através de enzimas e pressões mecânicas com o crescimento de suas hifas. A sua condição natural, em seguida, é consumir e apoderar-se da grande parte interna do organismo, liberando uma espécie de composto químico capaz de manipular seus padrões comportamentais;
- uma vez infectada, a formiga-zumbi agora sob o comando do fungo é forçada a subir sobre o caule de alguma planta e lá se fixar com suas mandíbulas em um local preciso. Segundo pesquisas recentes, o paradeiro delas quase sempre é encontrado sobre as condições:
“O posicionamento da mordida sempre ao norte da folha; cerca de 25 centímetros de altura do solo; seleção de uma folha com pelo menos 94-95% de umidade e uma variação de temperatura da região entre 20 e 30 graus Celsius”.
- de uma forma mórbida e extraordinária, o fungo consegue controlar o sistema nervoso da formiga, impedindo que esta abra suas mandíbulas e permanecendo-a “agarrada” à região específica até que, por fim, ele mata a hospedeira.
- as hifas continuam a crescer até destruir o exoesqueleto, brotando de dentro para fora um corpo de frutificação – a partir da cabeça da formiga. Esse estágio se dá de 4-10 dias; só então os esporos são liberados.
Pesquisadores chamam esse momento da esporulação como “campo de infecção da morte”, isso porque os locais precisos em que essas formigas são forçadas a ir, geralmente, situam-se bem acima de um formigueiro! A necessidade final do fungo é infectar novas vítimas para que o seu ciclo de vida recomece.
A real natureza do “fungo-zumbi”
Para nós o comportamento do O. unilateralis é interessante ou até mesmo bizarro, porém, há realmente sentidos naturais para que isso ocorra. Primeiramente, o fungo-zumbi precisa de um método de locomoção para procurar áreas úmidas e prósperas para sua sobrevivência. Não obstante, fazer isso apenas pela esporulação não é cem por cento eficiente quando há a possibilidade de alguém fazer o serviço todo. No caso, as formigas. Após a infecção e o apoderamento do seu sistema nervoso, fica fácil controlar seus hospedeiros e utilizá-los para o que quiser. Há maldade nisso?
Em uma metáfora eficiente: a formiga é o automóvel e o fungo o condutor. O pesquisador David Hughes da Universidade do Estado da Pensilvânia, afirma que o O. unilateralis é um dos exemplos mais complexos de parasitas capazes de controlar o comportamento animal.
Não obstante, biólogos também concordam que essa interação não é tão negativa, isso se levarmos em consideração o controle de população das colônias… uma espécie de fator homeostático a fim de evitar quaisquer descontrole populacional das formigas. Em um ponto de vista distinto, ambos podem sair ganhando nisso tudo.
Ophiocordyceps não é o único gênero de fungo capaz de manusear a mente, há muitos outros gêneros e famílias do reino Fungi com o mesmo potencial (ou parecido). O que nos resta compreender é o quanto podemos aprender através dessa capacidade de “controle cerebral” e o que é possível retirar disso.
Em The Last of Us, os seres humanos são as formigas. Por hora, agradecemos que a natureza do Cordyceps se restrinja aos artrópodes e que a ficção permaneça onde está.
Já no mundo da ficção científica de The Last of Us, o Ophiocordyceps é capaz de assimilar o seu ciclo de vida com os seres humanos. Será que isso é realmente possível? Confira aqui.
Veja também uma parte crucial do episódio da “Planet Earth” da BBC, que inspirou os desenvolvedores de The Last of Us:
Confira um pouco mais sobre o fungo de The Last of Us e o dito Cordyceps com o vídeo do Átila Iamarino no Canal Nerdologia, clicando aqui.
Referências
- Fungus makes zombie ants do all the work, Scientific American. [Link]
- The zombie-ant fungus is under attack, PennState Science. [Link]
- Zombie fungus enslaves only its favorite ant brains, Live Science. [Link]
- The zombie ant and the fungus that controls its mind, Wired. [Link]
- Hidden Diversity Behind the Zombie-Ant Fungus Ophiocordyceps unilateralis: Four New Species Described from Carpenter Ants in Minas Gerais, Brazil; Harry C. Evans, Simon L. Elliot, David P. Hughes. 2010.