Traduzido por Julio Batista
Original de Emily Conover para o Science News Magazine
Dentro da Grande Pirâmide de Gizé, no Egito, encontra-se uma cavidade misteriosa, com um vazio invisível para qualquer ser humano vivo e uma superfície intocada pelas mãos modernas. Mas, felizmente, os cientistas não são mais limitados pelos sentidos humanos.
Para ver os contornos do interior inexplorado da pirâmide, os cientistas seguiram os caminhos de minúsculas partículas subatômicas chamadas múons. Essas partículas, nascidas no alto da atmosfera da Terra, foram lançadas em direção à superfície e atravessaram a pirâmide. Algumas das partículas imprimiram pistas do que encontraram em detectores sensíveis dentro e ao redor da pirâmide. Os caminhos das partículas revelaram a surpreendente presença da câmara oculta, anunciada em 2017.
Essa descoberta impressionante gerou planos entre os físicos de usar múons para explorar outras estruturas arqueológicas. E alguns pesquisadores estão usando a técnica, chamada muografia, para mapear e fazer varreduras de vulcões. “Você pode ver dentro do vulcão, realmente”, disse o geofísico Giovanni Leone, da Universidade de Atacama, em Copiapó, Chile. Essa visão interna pode dar aos cientistas mais informações sobre como e quando um vulcão provavelmente entrará em erupção.
Múons estão por toda parte na superfície da Terra. Eles são produzidos quando partículas de alta energia do espaço, conhecidas como raios cósmicos, colidem com a atmosfera da Terra. Múons chovem continuamente pela atmosfera em vários ângulos. Quando atingem a superfície da Terra, as partículas atravessam o interior de grandes estruturas como pirâmides. Eles também penetram em coisas menores: sua unha do polegar é perfurada por um múon cerca de uma vez por minuto. Medir quantas partículas são absorvidas à medida que passam por uma estrutura pode revelar a densidade de um objeto e expor quaisquer cavidades ocultas dentro dele.
A técnica lembra uma enorme imagem de raios-X, disse Mariaelena D’Errico, física de partículas do Instituto Nacional de Física Nuclear de Nápoles, Itália, que estuda o Monte Vesúvio com múons. Mas “em vez de raios-X, usamos… uma fonte natural de partículas”, o próprio suprimento inesgotável de múons da Terra.
Os físicos normalmente estudam os raios cósmicos para entender melhor o universo de onde eles vieram. Mas a muografia vai além dessa tradição, usando essas partículas cósmicas para aprender mais sobre partes anteriormente desconhecidas do nosso mundo. Na maioria das vezes, de acordo com o físico de partículas Hiroyuki Tanaka, da Universidade de Tóquio, “as partículas que chegam do universo não são usadas em aplicações comuns e terrenas”. Tanaka e outros estão tentando mudar isso.
Nenhuma partícula igual essa
Primos desajeitados dos elétrons, os múons podem parecer uma coisa esquisita desnecessária da física. Quando a identidade da partícula foi revelada pela primeira vez, os físicos se perguntaram por que a estranha partícula existia. Enquanto os elétrons desempenham um papel crucial nos átomos, os múons mais pesados não servem a esse propósito.
Mas os múons são ideais para fazer imagens do interior de grandes objetos. A massa de um múon é cerca de 207 vezes maior que a de um elétron. Esse volume extra significa que os múons podem atravessar centenas de metros de rocha ou mais. A diferença entre um elétron e um múon passando pela matéria é como a diferença entre uma bala de revólver e uma bala de canhão, disse a física de partículas Cristina Cârloganu. Uma parede pode parar uma bala de revólver, enquanto uma bala de canhão passa por ela.
Os múons são abundantes, então não há necessidade de criar feixes artificiais de radiação, como exigido para tirar imagens de raios-X de ossos quebrados no consultório médico, por exemplo. Os múons “vem de graça”, disse Cârloganu, do CNRS e do Instituto Nacional de Física Nuclear e de Partículas de Aubière, na França.
Outra vantagem crucial dos múons: “Eles também são muito fáceis de detectar”, disse o físico nuclear Richard Kouzes do Laboratório Nacional do Noroeste Pacífico em Richland, Washington, EUA. Um detector simples feito de tiras de plástico e sensores de luz já basta. Outros detectores de múons requerem pouco mais do que uma versão especializada de filme fotográfico. Não há nenhuma outra partícula como esta, disse Kouzes.
Os múons têm uma carga elétrica negativa, como um elétron. Suas antipartículas, antimúons, que também caem na Terra, têm carga positiva. Os detectores de múon capturam rastros de variedades carregadas negativamente e positivamente. Quando essas partículas atravessam o material, elas perdem energia de várias maneiras, por exemplo, colidindo com elétrons e soltando-os de seus átomos.
Com essa perda de energia, os múons desaceleram, às vezes o suficiente para parar. Quanto mais denso o material, menos múons passarão por um detector colocado embaixo ou ao lado do material. Objetos tão grandes e densos, como vulcões ou pirâmides, projetam uma sombra de múon. E quaisquer lacunas dentro dessas estruturas aparecerão como pontos brilhantes dentro dessa sombra, porque mais múons podem passar. Interpretar essas sombras brilhantes pode possibilitar uma visão para mundos ocultos.
Sondando pirâmides
A muografia provou-se útil e sondar pirâmides. Um dos primeiros usos da técnica foi na década de 1960, quando o físico Luis Alvarez e seus colegas procuraram câmaras escondidas na pirâmide de Quéfren em Gizé, um vizinho um pouco menor da Grande Pirâmide. Os detectores não encontraram indícios de salas inesperadas, mas provaram que a técnica funcionava.
Ainda assim, a ideia demorou para decolar, porque os detectores de múons da época tendiam a ser volumosos e funcionavam melhor em condições de laboratório bem controladas. Para identificar os múons, a equipe de Alvarez usou detectores chamados de câmaras de ignição. As câmaras de ignição são preenchidas com gás e placas de metal sob alta tensão, de modo que as partículas carregadas que passam criam rastros de ignição.
Agora, graças aos avanços nas tecnologias de física de partículas, as câmaras de ignição foram amplamente substituídas. “Podemos fazer detectores muito compactos e robustos”, disse o físico nuclear Edmundo Garcia-Solis, da Universidade Estadual de Chicago, EUA. Esses detectores podem ser projetados para funcionar fora de um laboratório cuidadosamente controlado.
Um tipo de detector resiliente é construído com plástico contendo uma substância química chamada cintilador, que libera luz quando um múon ou outra partícula carregada passa por ele. A luz é então captada e medida por aparelhos eletrônicos. No final deste ano, os físicos usarão esses detectores para dar outra olhada na pirâmide de Quéfren, relataram Kouzes e colegas em 23 de fevereiro no Journal for Advanced Instrumentation in Science. Compacto o suficiente para caber em dois grandes estojos de transporte, o detector “pode ser transportado para a pirâmide e depois operado com um laptop e isso é tudo”, disse Kouzes.
Um tipo de detector diferente, mas de baixa manutenção, chamado de filme de emulsão nuclear, foi crucial para descobrir o vazio oculto da Grande Pirâmide em 2017. As emulsões nucleares registram rastros de partículas em um tipo especial de filme fotográfico. Os detectores são deixados no local por um período de tempo e depois levados de volta a um laboratório para análise dos rastros impressos neles.
O físico de partículas Kunihiro Morishima, da Universidade de Nagoya, no Japão, ajudou a descobrir a câmara secreta por meio do trabalho em um projeto internacional chamado ScanPyramids. “As emulsões nucleares são leves, compactas e não requerem fonte de alimentação”, explicou. Isso significava que vários detectores poderiam ser colocados em locais privilegiados de visualização em uma das salas da pirâmide, a Câmara da Rainha e um pequeno local próximo a ela. As medições dos detectores foram complementadas com detectores de cintiladores de plástico dentro da Câmara da Rainha e detectores à base de gás fora da pirâmide.
Desde a descoberta do vazio, Morishima e seus colegas fizeram medições adicionais para esboçar melhor suas propriedades. A equipe colocou detectores de emulsão em 20 locais da pirâmide, bem como detectores de gás em vários pontos diferentes. Usando sua nova gama de instrumentos, os pesquisadores determinaram que o vazio tem mais de 40 metros de comprimento. Sua finalidade ainda é desconhecida.
Uma pesquisa mais extensa da Grande Pirâmide, colocando detectores muito maiores fora da pirâmide, está sendo planejada por outra equipe de pesquisadores. Os detectores serão movidos periodicamente para medir múons de vários ângulos, informou a equipe em 6 de março no Journal for Advanced Instrumentation in Science. O resultado, disse o coautor e físico de partículas Alan Bross do Fermilab em Batavia, Illinois, EUA, oferecerá uma visão 3D do que está dentro.
Pirâmides em outras partes do mundo também estão recebendo uma análise mais minuciosa. Garcia-Solis e seus colegas estão planejando a muografia da pirâmide maia conhecida como El Castillo em Chichén Itzá, no México. Morishima e seus colegas também estão planejando trabalhar com pirâmides maias.
Os cientistas esperam que tais estudos possam revelar novas câmaras, ou características não visíveis com outras técnicas para espiar dentro de objetos. Ultrassom, radar de penetração no solo ou raios-X, por exemplo, só podem penetrar a uma curta distância da superfície, explicou Bross. Os múons, por outro lado, fornecem uma imagem detalhada. Para estudar pirâmides, disse Bross, “múons são realmente ideais”.
Olhando dentro de um vulcão
O Vesúvio é uma ameaça conhecida em Nápoles e nos municípios vizinhos que se aninham ao redor do vulcão. Infame por destruir a antiga cidade de Pompeia em 79 d.C., o vulcão está inativo desde 1944, quando uma grande erupção destruiu várias aldeias próximas. Mas se ele entrasse em erupção, colocaria em risco a vida de cerca de 600.000 pessoas que vivem perto dele e muitas outras nas proximidades.
“O Vesúvio sempre me assustou”, disse D’Errico. “Eu nasci e vivo sob este vulcão.” Agora, como parte do experimento Radiografia de Múons de Vesúvio, ou MURAVES, ela busca entender melhor o vulcão e seus perigos.
Usando detectores de múons a 1,5 km da cratera do vulcão, a equipe está mapeando as densidades de múons – e, portanto, as densidades das rochas – no topo do domo do Vesúvio. Em um paperpublicado em 24 de fevereiro no arXiv.org, os pesquisadores apresentaram indícios preliminares de diferenças de densidade entre as metades noroeste e sudeste do vulcão. O MURAVES ainda está coletando dados; observações futuras devem ajudar os cientistas a entender detalhes mais precisos da estrutura interna do vulcão, que se acredita ter camadas devido a erupções repetidas.
As informações sobre a estrutura de um vulcão podem ajudar os cientistas a prever quais riscos esperar em uma eventual erupção, como onde podem ocorrer deslizamentos de terra. E isso pode ajudar os cientistas a saber quais medidas tomar para reduzir os riscos para as pessoas que vivem nas proximidades, disse Cârloganu, que estudou o vulcão adormecido Puy de Dôme perto de Clermont-Ferrand, na França, com muografia e agora está trabalhando para obter imagens da ilha apropriadamente chamada de Vulcano, na Itália.
Quando o Monte St. Helens em Washington entrou em erupção em 1980, por exemplo, uma lateral inteira do vulcão desabou. O desastre matou 57 pessoas e causou danos generalizados. Saber onde estão as fraquezas estruturais de um vulcão pode ajudar os cientistas a prever melhor como uma erupção pode acontecer e quais áreas ficam dentro da zona de perigo, disse Cârloganu.
Cârloganu acha que os múons serão úteis para apontar fraquezas estruturais, mas não para avisar quando o vulcão vai entrar em erupção. Outros pesquisadores estão mais otimistas sobre a capacidade dos múons de dar alertas oportunos.
A muografia está pronta para ser incluída nos sistemas de alerta precoce de vulcões, Leone, Tanaka e colegas escreveram em novembro passado na Proceedings of the Royal Society A. Mas mais trabalho precisa ser feito para integrar a muografia com outros métodos estabelecidos que ajudam a alertar sobre uma erupção futura, disse Leone. Esses métodos incluem medições sísmicas, bem como observações de deformação do solo e emissões de gases vulcânicos.
Tanaka e seus colegas estão estudando Sakurajima, um dos vulcões mais ativos do mundo, perto de Kagoshima, no Japão. Uma das crateras do vulcão, a cratera Showa, entrou em erupção com frequência até 2017, quando a atividade mudou abruptamente para outra cratera, Minamidake. A comparação dos dados muográficos obtidos antes e depois dessa mudança revelou que uma nova e densa região se formou abaixo da cratera Showa, relataram Tanaka e colegas em 2019 na Geophysical Research Letters. Isso indica o motivo pelo qual as erupções de Showa pararam: estava entupido com um denso tampão de magma solidificado, disse Tanaka.
Esses resultados sugerem que os cientistas podem usar a muografia para ajudar a prever erupções vulcânicas, disse Tanaka. De fato, usando técnicas de aprendizado profundo nos dados muográficos de Sakurajima, Tanaka e seus colegas relataram no Scientific Reports em 2020 que foram capazes de prever se o vulcão entraria em erupção no dia seguinte, analisando os dados da semana anterior. A técnica previu corretamente os dias de erupção do vulcão em mais de 72% das vezes e previu corretamente os dias sem erupção em mais de 85% das vezes.
Assim como a descoberta dos raios-X revelou uma maneira totalmente nova de ver o mundo, aproveitar os múons pode mudar nossa perspectiva sobre o que nos cerca. Atitudes em relação a uma partícula antes considerada desnecessária – indesejada e não amada pelos físicos – foram transformadas. Um dia, talvez, os múons possam salvar vidas.
Conteúdo extra: contrabando revelado
A visão de raios-X do Super-Homem era impressionante. Mas alguns cientistas podem preferir a visão de múons. Por exemplo, os múons podem ajudar as autoridades a espiar dentro de contêineres fechados “para ver se há algo suspeito lá dentro”, disse o físico de partículas Andrea Giammanco, da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Um projeto financiado pela União Europeia chamado Silent Border visa desenvolver um método para descobrir contrabando perigoso em postos alfandegários sem ter que abrir fisicamente e inspecionar todos os contêineres que passam.
A chave para essa técnica é medir como os múons se espalham. Quando os múons passam por um material, alguns são absorvidos e outros se espalham, mudando de direção. Usando detectores acima e abaixo de um objeto, os cientistas podem observar como a trajetória de um múon muda à medida que passa pelo objeto. Como os múons tendem a se espalhar em ângulos maiores em materiais feitos de elementos mais pesados, essa técnica pode revelar substâncias como o urânio.
Medições de espalhamento de múons também podem ser úteis para examinar recipientes de armazenamento de lixo nuclear para verificar o que há dentro, descartando qualquer roubo de substâncias perigosas ou outras coisas ilegais.
Separadamente, Giammanco e seus colegas estão estudando a dispersão de múons para medir campos magnéticos fortes, o que pode ser útil para monitorar certas tecnologias que dependem desse poder magnético. Isso inclui reatores experimentais de fusão nuclear que os cientistas esperam poder um dia abastecer o planeta.