Por Kentaro Mori
Publicado no Sedentário
Mais de 21.000 metros cúbicos de pedra sólida, em blocos individuais com até seis toneladas de peso, constituindo uma massa total superior a 50.000 toneladas. Não é possível penetrar mesmo a lâmina de uma faca afiadíssima entre os blocos maciços. Tudo encaixado à perfeição, sem cimento ou concreto, contando com uma das forças fundamentais da natureza: a própria gravidade. Depois de milênios, o monumento alçando-se aos céus ainda preserva suas formas elegantes que seriam espelhadas ao redor de todo o planeta.
Parafraseando um antiquíssimo ditado, “o homem teme o tempo. Mas o tempo teme a Pont Du Gard”. Sim, porque o parágrafo acima não se refere à Grande Pirâmide de Gizé, e sim à ponte construída pelos romanos ao redor do início da era cristã.
Cleópatra
É bom que nos situemos um pouco no tempo, até porque este era um tempo especialmente dramático. Basta mencionar um nome: Cleópatra, a “última rainha do Egito”, e de fato, a última representante da linhagem dos faraós, o que é especialmente interessante já que ainda iremos falar das pirâmides.
Depois do assassinato de Júlio César, com quem teve um filho, a exuberante (ou nem tanto) rainha se envolveu com Marco Antônio, um dos membros do Triunvirato que controlava o Império. O romance não agradou em nada aos seus patrícios, principalmente a idéia de que o filho de Cleópatra e Júlio César fosse declarado imperador único e legítimo.
O Senado declarou guerra, e os romanos atacaram as forças egípcias em 31 A.C, na batalha de Áccio. Marco Antônio perdeu. Pouco depois as forças romanas invadiriam o Egito e o casal se suicidaria. Marco Antônio, Cleópatra e a víbora seriam imortalizados dramaticamente por um tal de Shakespeare.
Pois bem, por mais dramático que pareça, tudo isso aconteceu, são fatos históricos – ainda que a serpente de Cleópatra seja algo não muito certo. Fato é que seres humanos lutaram em tais batalhas. E os que sobreviveram, bem, eles queriam suas aposentadorias tranquilas. Muito humano. Uma de suas cidades favoritas se tornou Nimes (pronuncia-se “níím“, aos romanos era Nemausus), no que hoje é o sul da França. O emblema de Nimes era um crocodilo amarrado a uma palmeira – o crocodilo representava o Egito, a palmeira a vitória.
Nimes cresceu e se transformou em uma das maiores cidades do mundo à época. E sendo habitada pelos romanos, principalmente os abastados, uma coisa não poderia faltar: Água. Romanos se banhavam diariamente.
O aqueduto de Nimes
Situando-nos novamente, mais alguns anos se passaram e estamos já em meados do século I, pouco depois de um certo agitador chamado Jesus fazer das suas mais para leste. Foi nesta época que seria construída uma das mais fabulosas obras de engenharia antiga.
Com 50 quilômetros de extensão, o aqueduto de Nimes transportava 100 litros de água por segundo, em um desnível de apenas 34 centímetros por quilômetro! Isso se traduz em aproximadamente 20.000 metros cúbicos de água transportados diariamente em um desnível de apenas 17 metros ao longo de 50 km. Este sistema de água há dois mil anos era comparável ao de cidades modernas, e de fato superior a muitos recantos do Brasil ainda hoje.
A maior parte do aqueduto era subterrânea ou atravessava a superfície, mas em um trecho em especial temos aquilo que o tempo deve ter passado a temer. Cruzando um enorme desfiladeiro e o rio que é conhecido hoje como Gardon, ergueu-se a Pont du Gard.
Com 49 metros de altura e 275 metros de extensão total, a ponte é composta de três níveis de arcos, chegando a seis metros de espessura na base. Já mencionamos seu peso e volume totais, mas vale repetir que os blocos que a compõem pesam até seis toneladas, e tudo foi construído sem o uso de cimento ou concreto. Os blocos encaixam-se uns nos outros sem a menor fresta, garantindo a integridade estrutural pelo seu próprio peso. Quando muito há algumas travas de metal.
A Pont du Gard foi construída ao redor de 40 D.C., em um projeto que levou em torno de quinze anos. Não há dúvida razoável de que foi construída pelos romanos. Seus diversos blocos conservam inscrições e muitos códigos e numerais (romanos!) indicando onde deviam ser colocados. Literalmente I, II, III, cima, baixo, etc., algo como blocos de montar.
Tais indicações do processo logístico de construção também são visíveis hoje nos blocos salientes espalhados pela estrutura. Suas marcas deixam evidente que foram neles que andaimes e estruturas de apoio temporárias foram apoiadas durante o processo de construção.
Nada de ETs ou Atlantes, enfim. Apenas romanos querendo tomar banho depois de conquistar o Egito. Completamente mundano, terrestre, mas nada disso deve diminuir a beleza e a engenhosidade que a Pont Du Gard representa. É um patrimônio mundial reconhecido pela UNESCO, e quem visitar o sul da França não pode deixar de visitar – e quem sabe pular no rio.
Infelizmente, a obra parece desconhecida por muitos que duvidam que estas unidades de carbono com polegar opositor tão propensas às mais tresloucadas fantasias sejam capazes de obras megalíticas gigantescas. O que nos leva finalmente às pirâmides. Acredite, elas são o tema principal deste texto.
As pirâmides e o Nilo
A imagem acima não é uma montagem ou um truque de perspectiva. É a fotografia de uma das cheias do Nilo, tomada em outubro de 1937 – veja o original aqui, da Tufts University.
Embora praticamente todos tenham aprendido na escola que um dos alicerces da antiga civilização egípcia eram as cheias anuais do rio Nilo, o significado disto parece não chegar às mentes das pessoas, talvez por um simples motivo. As cheias anuais do Nilo já não ocorrem como antigamente.
Em 1970, com apoio da União Soviética, o governo nacionalista egípcio completou a versão mais ambiciosa da represa Aswan, uma das maiores do mundo, o que fez com que o Nilo fosse finalmente controlado.
Foi nessa ocasião que vários templos antigos foram movidos, como o de Abu Simbel, recortado e remontado em apenas quatro anos para ficar 65 metros mais alto, pela barganha de 40 milhões de dólares. O Bolsa Família no mesmo período de quatro anos custa mais de novecentas vezes tal valor. E ainda dizem que nossa tecnologia seria incapaz de erigir pirâmides – a própria represa Aswan é uma obra de engenharia maior e mais complexa que a Grande Pirâmide.
Onde antes as águas do segundo maior rio do mundo podiam chegar quase todo o ano até as margens do planalto de Gizé, a pouca distância das famosas pirâmides, hoje vemos cidades densamente povoadas, construídas em algumas décadas e que não lembram ao turista que toda aquela área era periodicamente inundada. Daí a estranheza da fotografia acima: é uma paisagem que não é vista há décadas.
As cheias do Nilo e a posição das pirâmides são um detalhe muito importante para entender melhor como os antigos egípcios conseguiram transportar blocos de toneladas das pedreiras até as pirâmides. Como se vê na fotografia por satélite acima, as pirâmides estão nas margens do planalto de Gizé. As cheias ligavam pela água as pedreiras até o local onde as pirâmides foram construídas, principalmente com a ajuda de canais construídos para tal. O próprio Heródoto, que viveu 2.000 anos depois da construção das pirâmides, mencionou o uso de tais canais pelos egípcios.
A localização das pirâmides não é assim nenhum mistério. Praticamente todas as teorias excêntricas vendidas por aí, indo de alinhamentos estelares ou planetários a campos de energia e cristais, ignoram este simples fato. Repetindo: as pirâmides foram construídas às margens do Nilo, próximo de seu fértil delta e na margem oposta de uma pedreira. Antes de olhar para as estrelas, olhe para a frente, e nas pirâmides, você verá o Nilo. E a posição do Nilo é completamente natural.
O Nilo fornecia assim não apenas alimento, como transporte. Como se não fosse o bastante, suas cheias determinavam um período do ano ocioso aos agricultores, que tinham suas terras inundadas. Este período de cheias podia ser previsto por estudiosos que observassem os astros e criassem um calendário, e a ociosidade também implicava na necessidade de gerenciar a produção e armazenamento de alimentos. As cheias também incentivaram a demarcação precisa de terrenos para os agricultores e assim, o desenvolvimento da geometria.
Que os antigos egípcios tenham criado uma sociedade altamente organizada, que durante os períodos de inundação tinha um grande contingente de trabalhadores livres que passaram a se dedicar voluntariamente a obras literalmente faraônicas aplicando conceitos avançados de geometria, não é algo que pareça fazer algum sentido?
Não só faz sentido, como há farta evidência de que tudo ocorreu mesmo assim. E entre todas, há uma evidência simples e definitiva, acima de qualquer dúvida razoável.
Uma assinatura na grande pirâmide
Como é bem sabido, nenhuma pirâmide antiga contém qualquer inscrição. E isto incluiria a Grande Pirâmide. Uma situação um pouco desconfortável, especialmente para um ambicioso arqueólogo amador chamado Howard Vyse.
Este coronel do exército inglês tentou resolver o enigma dos construtores das pirâmides no século 19 usando força bruta. O domínio do império inglês sobre o que restava do egípcio ajudou. Vyse dinamitou um buraco no lado oeste da Grande Pirâmide, porque pensou haver uma segunda entrada, e cavou um túnel diretamente pelo centro da pirâmide de Miquerinos. Ambas as campanhas foram malsucedidas e não trouxeram nenhum resultado. Além dos próprios buracos, claro.
Contudo, em 1837 ele dinamitou mais um duto vertical sobre uma câmara nova descoberta acima da câmara do rei na Grande Pirâmide – e enfim teve sucesso. Já era hora. Os métodos nada louváveis ao menos produziram um resultado espetacular. Vyse descobriu quatro câmaras novas jamais visitadas por nenhum ser vivo desde que a pirâmide havia sido construída.
E no interior de uma dessas câmaras, surpresa. Havia inscrições com o nome do faraó que construiu a Grande Pirâmide. O bom e velho Quéops. A idéia de que nenhuma pirâmide antiga possui inscrições é em verdade um mito.
Havíamos dito que tal inscrição está acima de dúvida razoável, mas há todo tipo de pessoas irrazoáveis. Entre elas está o autor Zecharia Sitchin, que vende livros sobre um décimo segundo planeta. Para Sitchin, a inscrição com o nome de Quéops seria uma fraude de Vyse. Acusação grave.
Sitchin mostra em seus livros como a inscrição que Vyse encontrou teria o nome do faraó escrito de forma incorreta, refletindo o conhecimento incompleto da egiptologia no século 19. Mas como o alemão Frank Doerneburg descobriu, o forjador parece ser o próprio Sitchin. A inscrição nos blocos e a cópia que Vyse fez está correta e plenamente coerente. Só os livros de Sitchin apresentam um desenho incorreto. Isto é, o erro não existe.
De fato, as inscrições que podem ser vistas ainda hoje no interior da Grande Pirâmide são mais corretas e coerentes do que a egiptologia do século 19 permitia saber. Esta é uma evidência real vinda diretamente do reinado de Quéops, localizada em uma câmara interna e fechada no coração da Grande Pirâmide, acessível apenas através de dinamite.
Graham Hancock, outro autor que defende todo tipo de teorias sobre construções antigas, reconheceu a autenticidade da “assinatura” de Quéops:
“Tive amplo tempo para examinar os hieróglifos de perto, sob fortes luzes. Rachaduras em algumas junções revelam que os hieróglifos se estendem para o interior dos blocos de pedra. Nenhum ‘forjador’ poderia ter alcançado tais pontos depois que os blocos foram colocados em seu lugar — blocos, devo adicionar, que pesam dezenas de toneladas cada e que estão fixamente interligados uns com os outros. A única conclusão racional é aquela que egiptólogos ortodoxos têm mantido há muito — isto é, que os hieróglifos são inscrições genuínas do Reino Antigo e que foram feitas nos blocos antes que a construção começasse“.
O amigo de Sedentário Marcelo Del Debbio foi outro a reconhecer que tais inscrições são autênticas. Mas a ele indicariam apenas que os egípcios reformaram a Grande Pirâmide, sete mil anos depois de sua construção pelos atlantes.
Veja o diagrama abaixo e note o volume de blocos que teria que ter sido movido para a “reforma” referida. Os hieróglifos com o nome de Quéops (ou Khufu) estão em câmaras logo acima da câmara do Rei.
Se os egípcios eram capazes de reformar pirâmides dessa forma, o mistério de por que não teriam construído suas próprias pirâmides seria ainda maior. E completamente desnecessário.
Gorilas invisíveis
Na última parte da série de colunas anteriores, abordamos o fenômeno dos gorilas invisíveis. Detalhes que podem estar literalmente debaixo de nossos narizes, mas passam despercebidos até que alguém chame atenção a eles.
A Pont du Gard não está escondida, pelo contrário, é uma atração turística europeia de destaque. É uma das maiores obras do Império Romano que sobreviveram até os dias atuais. Por certo não é a única. O famosíssimo Coliseu foi construído pouco depois, e é outra obra primorosa de engenharia. Também há o belo Panteão, e mesmo um outro templo que alguns atribuem a ETs – entre eles um tal de Sitchin de que falamos -, mas sabemos ter sido construído por romanos, o terraço de Baalbek.
Talvez por devermos tanto de nossa cultura aos romanos, com seus arcos e estilos, suas obras literalmente colossais nos passam despercebidas. Mas foram erigidas há milênios, com força bruta e simples engenhosidade.
É raro ver alguém defendendo que os romanos mantinham contatos com alienígenas ou eram uma civilização iniciada por sobreviventes da Atlântida. Eles não conheciam o zero, não conheciam o valor do pi com a precisão que qualquer aluno ginasial hoje deve conhecer. Jamais se destacaram muito em ciências. E, no entanto, temos a Pont du Gard. Alguns de seus feitos de engenharia não foram superados mesmo hoje – como sua rede de estradas pavimentadas por toda a Europa, mais extensas que qualquer Autobahn. Muitas delas são usadas até hoje.
O Nilo, por sua parte, de certa forma se escondeu realmente depois da construção da represa Aswan. Mas a própria represa monumental que domou o Nilo é ignorada por quase todos fora do Egito. Maravilham-se com as pirâmides – com toda a razão – mas ignoram a represa.
E se o Nilo já não é mais tão evidente, todos nós aprendemos na escola – ou deveríamos ter aprendido – como o rio era essencial aos antigos egípcios. Também sempre ouvimos falar do planalto de Gizé. Mas o fato de que as pirâmides ficavam periodicamente às margens do Nilo durante suas cheias acaba ignorado.
Assim como as inscrições no interior da Grande Pirâmide, ou os hieróglifos que descrevem cenas em que os egípcios transportavam enormes blocos, obeliscos ou estátuas com milhares de toneladas.
Tudo isso é comum, tudo isso é “ortodoxo”, é algo das “otoridades”. Tudo isso, tão elementar, torna-se invisível. E, omitidos, elementos simples como os que vimos aqui acabam dando margem a ideias fantasiosas e atraentes, mas comprovadamente falsas.
Há muitos mistérios verdadeiros a desvendar. Não sabemos exatamente como as pirâmides foram construídas. É uma questão aberta. Por outro lado, não sabemos exatamente mesmo como a Pont du Gard foi construída. Isso não a torna subitamente misteriosa. Temos várias pistas e teorias, muito terrestres.
Assim, da próxima vez que você ler a frase “quem construiu as pirâmides”, não aceite jamais que seja um questionamento. Nós sabemos quem construiu as pirâmides. Nós aprendemos na escola quem construiu as pirâmides. Não é preciso ser egiptólogo ou historiador para conhecer a resposta. Se você completou o ensino médio, já deve ter elementos mais do que suficientes para saber, ou estar apto a saber, quem construiu as pirâmides.
Foram mesmo os antigos egípcios. Reprove quem disser o contrário.