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Todo bebê conhece o método científico?

Há muito tempo, circula nas redes sociais uma imagem onde afirma-se que “todo bebê conhece o método científico” (versão em português). Em seguida, oferecem-nos exemplos que visam corroborar com esse ponto de vista, das quais, agora, irei brevemente criticá-los:

  1. Fazer uma observação

Isto é falso por várias razões. Em primeiro, porque existem ciências que lidam com aspectos inobserváveis à experiência sensível, tais como a cosmologia, que elabora hipóteses sobre a origem e a evolução do universo, a mecânica quântica, que lida com coisas menores que átomos, como, por exemplo, partículas elementares, e até mesmo a história, que trabalha a partir de acontecimentos do passado e tenta reconstruí-los através de modelos teóricos a partir de evidências. Em segundo, porque uma observação de um evento (a relação envolvendo coisas) ou fenômeno não é critério suficiente para iniciar uma investigação científica, pois, antes de tudo, é preciso um fundo de conhecimento anterior (Bunge 1967) para estar ciente dos problemas atuais a respeito do evento. Além disso, pode ser necessário ter conhecimentos prévios de ferramentas formais, tais como a lógica e matemática, e técnicas que podem ajudar na investigação científica. Caso contrário, o “pesquisador” poderia estar construindo uma hipótese, ainda que não seja científica, sobre um evento que já possui explicação (teoria científica), e, assim, estar com a sua hipótese em desacordo com a maior parte do conhecimento da época, que é uma das características da pseudociência. Em terceiro, supondo que o bebê faça a observação de um evento, qual a garantia que o bebê terá a capacidade de conhecer e elaborar uma hipótese científica, ainda mais sabendo que para adentrar-se no terreno científico são necessários estudos que podem durar uma vida toda? Em resumo, desta primeira afirmação podemos tirar duas conclusões: (1) o método científico não começa com a observação; (2) e se os bebês realmente conhecessem o método científico, as suas aptidões e conhecimentos iriam se desenvolver logo nos primeiros meses de vida, o que não acontece, já que o cérebro de um bebê ainda está em desenvolvimento (Conel 1940) e se desenvolve junto com a experiência (Hubel 1962).

  1. Formular uma hipótese

Um experimento mostrou que ratos fazem hipóteses e as checam enquanto exploram o seu meio ambiente (Kreshevsky 1932). O problema seria extrapolar, como fazem alguns intuicionistas, de que as hipóteses seriam científicas e que as checagens acontecem sob as mesmas circunstâncias de uma investigação científica. O que se pode tirar de certos padrões presentes no comportamento dos bebês são que eles percebem apenas coisas fenomenais (doce, cheiro ou molhado) a partir das experiências que adquirem ao longo da vida, e que essas experiências, ainda que intuitivas, nos ligam que o choro do bebê pode estar relacionado com a sua fome ou fralda suja.

3. Realizar um experimento, analisar os dados, reportar as descobertas e convidar terceiros para replicar os resultados

Como disse Mario Bunge (2006), “um experimento não é apenas qualquer velho processo de tentativa e erro, porém um processo cuidadosamente projetado e controlado”, como, por exemplo, a submissão de amostras de bactérias ou vírus para experimentos com animais em ambientes controlados, o que significa que o ambiente em questão deverá estar de acordo com um específico protocolo de segurança a fim de evitar contaminação da amostra e vazamento de produtos químicos que poderiam prejudicar o experimento, ou, até mesmo, os pesquisadores, e, como todo o processo de investigação científica, essa tarefa envolve um código de conduta que assegura a prática do ethos da comunidade científica (Merton 1973), tais como a divulgação de seus resultados, a crítica aberta e o ceticismo organizado, que são tarefas que, além de exigir domínio da linguagem científica, são impossíveis de serem realizadas por bebês.

Referências

  1. Bunge, Mario. La Investigación Científica: Su Estrategia y Su Filosofía. Siglo XXI, 2000.
  2. J. L. Conel, The Post-Natal Development of the Human Cerebral Cortex.
  3. Receptive Fields, Binocular Vision, and Functional Arquitecture in the Cat’s Visual Cortex, Journal of Physicology, n. 160, p. 106-154.
  4. “Hypotheses” versus “Chance” in the Pre-Solution Period in Sensory Discrimination Learning, University of California Publications in Psychology, v. 6, n. 3.
  5. Bunge, Mario. Chasing Reality: Strife Over Realism. University of Toronto Press, 2006.
  6. Merton, Robert. The Sociology of Science: Theoretical and Empirical Investigations. University of Chicago Press.
Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Consultor em Segurança da Informação e Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking e Full Stack Java Developer. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.