Por David Grimm
Publicado na Science
Cães e gatos jazem como se estivessem dormindo, em túmulos individuais. Muitos usavam coleiras ou outros adornos, e foram cuidados durante ferimentos e velhice, como os animais de estimação de hoje. Mas a última pessoa a enterrar um amado companheiro animal nesta árida terra egípcia da costa do Mar Vermelho fez isso há quase 2.000 anos.
O sítio arqueológico, localizado no antigo porto romano de Berenice, foi descoberto há 10 anos, mas seu propósito era misterioso. Agora, uma escavação detalhada desenterrou os túmulos de quase 600 cães e gatos, junto com a evidência mais forte de que esses animais eram de estimação. Isso tornaria o local o mais antigo cemitério de animais de estimação conhecido, argumentam os autores, sugerindo que o conceito moderno de animais de estimação não era estranho ao mundo antigo.
“Nunca encontrei um cemitério como este”, disse Michael MacKinnon, um zooarqueólogo da Universidade de Winnipeg, no Canadá, que estudou o papel dos animais no Mediterrâneo na antiguidade, mas não estava envolvido com o novo trabalho. “A ideia de animais de estimação como parte da família é difícil de encontrar na antiguidade, mas acho que eles eram [membros de famílias] aqui”.
A arqueozoóloga Marta Osypinska e seus colegas da Academia de Ciências da Polônia descobriram o cemitério ao redor dos muros da cidade, sob um depósito de lixo romano, em 2011. O cemitério parece ter sido usado entre os séculos I e II d.C., quando Berenice era um agitado porto romano que comercializava marfim, tecidos e outros produtos de luxo da Índia, Arábia e Europa.
Em 2017, a equipe de Osypinska relatou desenterrar os restos mortais de cerca de 100 animais – principalmente gatos – que parecem ter sido tratados como animais de estimação. Mas a natureza exata do local não estava clara. Salima Ikram, especialista em animais egípcios antigos da Universidade Americana do Cairo, disse na época que os ossos podem ter sido descartados no lixo.
Osypinska e seus colegas escavaram os restos mortais de 585 animais do local e analisaram os ossos em detalhes. Um veterinário ajudou a equipe a determinar a saúde, a dieta e a causa da morte.
Os animais parecem ter sido colocados suavemente em covas bem preparadas. Muitos estavam cobertos com tecidos ou pedaços de cerâmica, “que formavam uma espécie de sarcófago”, disse Osypinska. Mais de 90% eram gatos, muitos usando colares de ferro ou feitos com vidro e conchas. Um felino foi colocado na asa de um grande pássaro.
A equipe não encontrou evidências de mumificação, sacrifício ou outras práticas rituais vistas em locais de sepultamento de animais antigos, como o sítio arqueológico de Ashkelon, em Israel. Em Berenice, a maioria dos animais parece ter morrido de ferimentos ou doenças. Alguns gatos têm as pernas fraturadas ou outras fraturas que podem ter sido causadas por quedas ou por serem chutados por um cavalo. Outros morreram jovens, possivelmente de doenças infecciosas que se espalharam rapidamente na cidade populosa.
Os cães, que representam apenas cerca de 5% dos túmulos (o resto são macacos), tendiam a ser mais velhos na hora da morte. Muitos haviam perdido a maioria dos dentes ou sofrido doença periodontal e degeneração articular.
“Temos indivíduos com mobilidade muito limitada”, disse Osypinska. Mesmo assim, muitos viveram uma vida longa e seus ferimentos foram curados. “Esses animais tinham que ser alimentados para sobreviver”, disse ela, “às vezes com alimentos especiais no caso dos animais quase desdentados”.
O fato de que os humanos cuidaram tão bem dos animais, especialmente em uma região acidentada onde quase todos os recursos tiveram que ser importados – e que eles tiveram tanto cuidado em enterrá-los, assim como muitos proprietários modernos fazem – sugere o povo de Berenice tinha um forte vínculo emocional com seus cães e gatos, concluiu a equipe no mês passado na World Archaeology. “Eles não estavam fazendo isso pelos deuses ou por qualquer benefício utilitário”, disse Osypinska. Em vez disso, ela argumenta que a relação entre as pessoas e seus animais de estimação era “surpreendentemente próxima” daquela que vemos hoje.
Ikram está convencido. “Este é um cemitério”, disse ela. “E lança uma perspectiva interessante sobre os habitantes de Berenice e suas relações com seus animais”.
O arqueólogo Wim Van Neer também concorda. “Nunca vi um gato com coleira” tão antigo, disse Van Neer, do Instituto Real Belga de Ciências Naturais, que estudou a relação entre pessoas e animais no mundo antigo, inclusive em Berenice.
Ainda assim, ele diz que é possível que o povo de Berenice valorizasse seus cães e gatos por razões não sentimentais. Um porto marítimo estaria repleto de ratos, observa ele, tornando os gatos um animal de trabalho valorizado. E embora alguns dos cães no local fossem cães pequenos semelhantes às raças de colo de hoje – e, portanto, provavelmente tinham pouca utilidade, exceto como cães de colo -, caninos maiores poderiam ter protegido casas e consumido restos de alimentos. “Não acredito que tenha sido apenas um relacionamento familiar”.
Osypinska espera que o novo trabalho convença outros arqueólogos de que vale a pena estudar animais de estimação. “No início, alguns arqueólogos muito experientes me desencorajaram dessa pesquisa”, argumentando que os animais de estimação eram irrelevantes para a compreensão da vida dos povos antigos, disse ela. “Espero que os resultados dos nossos estudos provem que vale a pena”.