Por Miguel Ángel Criado
Publicado na Materia
Os humanos já matavam a homens, mulheres e crianças de forma generalizada e indiscriminada há 13.400 anos. Essa é uma das conclusões de um estudo que aplicou as modernas técnicas forenses aos restos encontrados em uma cova do final do Paleolítico. A maioria dos ferimentos haviam sido provocadas por objetos atirados, o que sugere mais ataques de outros grupos do que violência dentro da comunidade. Os autores do estudo relatam também que os indivíduos ali enterrados não morreram em um único enfrentamento, e assim em sucessivos ataques.
Durante a construção da represa de Assuã para controlar as cheias do Nilo (Egito), na década de 1960, foi descoberto um cemitério com restos de 61 pessoas em Jebel Sahaba, no norte do Sudão. Conhecido como cemitério 117, seus restos foram levados ao Reino Unido antes que a água da represa os cobrisse. Muitos apresentavam marcas de violência. Há provas de violência coletiva contra outros grupos também na Ásia, Europa e na própria África, mas nenhuma tão antiga como esta. Os arqueólogos da época consideraram que esta cova era a primeira grande testemunha de uma guerra entre humanos modernos.
Agora, pesquisadores do Museu Britânico (onde os restos do cemitério 117 foram conservados) e das universidades francesas de Bordeaux e Toulouse voltaram a revisar os crânios e centenas de ossos em busca de qualquer sinal de violência. E encontraram muito mais do que se havia visto antes. Os resultados do seu trabalho forense, publicados na revista científica Scientific Reports, mostram que 67% dos indivíduos enterrados ali tinham ferimentos de origem violenta. Isso é o dobro do que havia sido detectado nos estudos dos anos sessenta. Além disso, encontraram uma centena de lesões não observadas com as técnicas da época. Em muitas, inclusive, ainda há lascas das pontas de pedra incrustadas no osso.
A principal autora do estudo, Isabelle Crevecoeur, paleoantropóloga da Universidade de Bordeaux e do CNRS (órgão oficial de pesquisa científica da França), confirma o elevado percentual de pessoas com lesões: “São 73,7% das mulheres e 75% dos homens. O que basicamente mostra que mulheres e homens eram atacados indistintamente”. E o percentual poderia ser ainda maior, já que nem todas as feridas mortais chegam até o osso ou atravessam o crânio.
Essa refinada análise dá pistas importantes de como era essa violência generalizada. “Quando se compara a localização das marcas de projéteis e sua frequência, a única diferença tem a ver com as fraturas. Nas mulheres, a maioria das cicatrizadas está relacionadas com lesões defensivas, enquanto que nos homens as fraturas se dão nos ossos da mão”, detalha Crevecoeur. A explicação para isso é que “esse é o tipo de lesão que se tem no combate corpo a corpo, e as diferenças podem refletir uma reação instintiva nesta situação, quando os homens seriam mais propensos a enfrentarem o agressor, enquanto as mulheres poderiam se proteger”.
Também metade dos menores do cemitério 117 têm a marca da violência em seus ossos. Embora em alguns casos as lesões ósseas pudessem se dever a golpes acidentais, na maioria se trata de ferimentos provocados por alguma arma. “Os traumatismos se apresentam principalmente em crianças pequenas (provavelmente menos aptas a se defenderem), e as marcas de projéteis são registradas majoritariamente no crânio (onde penetrariam mais facilmente que nos dos adultos, devido à grossura dos ossos cranianos)”, explica a cientista francesa.
Essa análise forense do passado mostra também que metade das lesões havia sido provocada por armas disparadas, como flechas e lanças. Isso reforça a ideia da agressão indiscriminada vinda de fora. Há anos, vários arqueólogos argumentavam que o ataque em Jebel Sahaba havia sido um único evento. Entretanto, Crevecoeur e seus colegas de pesquisa alegam que há suficientes provas de que aquela comunidade do Paleolítico tardio sofria emboscadas e incursões periódicas. Uma delas é que muitos dos enterrados apresentam lesões já cicatrizadas junto a outras que não. Ou seja, já tinham sofrido ataques antes da última lesão que viria a causar a sua morte.
Além das feridas cicatrizadas, Crevecoeur dá outros dois argumentos em favor de sua tese. Por um lado, várias covas individuais foram reabertas para enterrar outra pessoa anos depois. Tampouco não se encaixa com o conjunto do cemitério 117. “Quando você tem uma cova relacionada com um único evento (um massacre, uma epidemia…), a parte da população que morre não é a normal que você encontraria em qualquer outro cemitério”, diz, em referência às camadas da sociedade que tendem a morrer mais nas guerras, como os jovens e os adultos. “Observamos o perfil demográfico do cemitério e não coincide com o de um enterro de um único evento, de uma crise de mortalidade. O perfil do Jebel Sahaba é o de um cemitério normal”.
E por que eram mortos os membros desta sociedade extrativista e de caçadores do vale do Nilo? O responsável pelo acervo dos restos de Jebel Sahaba no Museu Britânico, Daniel Antoine, aposta na mudança climática que coincidiu em parte com a passagem do Pleistoceno ao Holoceno, o período atual. Em uma nota do museu, ele diz que “a competição pelos recursos devido a uma mudança no clima foi com grande probabilidade por causa destes conflitos recorrentes”.
José Manuel Maíllo, especialista em pré-história da Universidade Nacional de Educação à Distância da Espanha, investigou outros enterros pré-históricos de origem violenta, como o de Nataruk, no Quênia. Para ele, a casualidade climática da violência vista no cemitério 117 não está fundamentada. “Eles dão a explicação, um tanto surrada, de que é por causa do clima que limita a obtenção de recursos”, diz. Na opinião de Maíllo, deveriam ser exploradas as chaves que poderiam levar a “um conflito entre grupos extrativistas sedentários ou semissedentários em um momento de instabilidade climática”.
A outra grande objeção que faz a um estudo que considera interessante é sobre se o cemitério seria de uma guerra ou se foi se enchendo com sucessivos ataques. “Para demonstrar que é uma ação dilatada no tempo é necessário datar uma amostra significativa dos restos humanos ou as tumbas. As datações radiométricas realizadas até o momento na necrópole de Jebel Sahaba são insuficientes para respaldar esta hipótese”, afirma Maíllo. De fato, a datação por radiocarbono não permite determinar a data exata da morte de cada um dos enterrados no cemitério 117.
Como recorda Maíllo, “a maioria das evidências empíricas sobre violência intergrupal é do final do Pleistoceno e início do Holoceno”. Jebel Sahaba e Nataruk são exemplos deste tipo de violência entre grupos extrativistas. A chave poderia estar em que as duas comunidades já não eram nômades e tinham acesso estável a recursos: “Ambos os grupos [eram] de caráter semissedentário ou sedentário, e possivelmente com territórios mais delimitados que os grupos precedentes”.
Juan José Ibáñez, arqueólogo da Instituição Milá y Fontanals-CSIC, da Espanha, também aponta essa vinculação com o entorno. “Jebel Sahaba é um cemitério, o lugar de sepultamento de uma comunidade. A existência de cemitérios no final do Pleistoceno e início do Holoceno é um fenômeno conhecido na Europa, Oriente Médio ou África em comunidades que ainda eram caçadoras e coletoras. Isso se relacionou com um novo fenômeno de uma vinculação mais estreita dos grupos humanos com o território”, diz. Para Ibáñez, que estudou a violência no oeste da Ásia, “talvez este sentimento de pertencimento a um território tenha podido fomentar o conflito intergrupal, como o que vemos em Jebel Sahaba”.
Mas o arqueólogo também argumenta que “não deve ter sido a única causa da violência detectada, pois em cemitérios da mesma época no Oriente Médio não se detecta tal agressividade”. A mudança climática ou a superpopulação poderiam ser outros dos fatores, mas, como conclui Ibáñez, “o contraste entre os pacíficos cemitérios do Oriente Médio e o caso de Jebel Sahaba sugere que tal grau de conflito não era inevitável”.