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A sociologia do conhecimento, por Robert Merton

Por Robert Merton
Publicado na obra “Ensaios em Sociologia da Ciência”

As duas últimas décadas testemunharam, em especial na Alemanha e na França, o surgimento de uma nova disciplina, a sociologia do conhecimento (Wissenssoziologie), com rápido aumento do número de estudantes e uma literatura crescente (mesmo uma “bibliografia seleta” incluiria muitas centenas de títulos). Como maior parte das investigações nesse campo concernem aos fatores socioculturais que influenciam o desenvolvimento de crenças e opiniões, mais do que do conhecimento positivo, o termo “Wissen” (conhecimento) deve ser interpretado de modo muito amplo, como referido às ideias e ao pensamento social em geral e não às ciências físicas, exceto quando expressamente indicado(1). Dito de modo sumário, a sociologia do conhecimento concerne primariamente à “dependência do conhecimento em relação à posição social(2). E, em um nível excessivo e estéril, às implicações epistemológicas de tal dependência. De fato, como veremos, existe uma tendência crescente de repúdio a esse último problema, na medida em que se torna cada vez mais aparente que a gênese social do pensamento não tem ligação necessária com sua validade ou falsidade.

Sustenta-se que o Seinsverbundenheit (pertencimento existencial) do pensamento está demonstrado quando se pode mostrar que, em certos domínios, o conhecimento não se desenvolve de acordo com as leis imanentes de crescimento (baseadas na observação e na lógica), mas que, em certas conjunturas, fatores extrateóricos de vários tipos, usualmente nomeados de Seinsfaktoren (fatores de existência), determinam a aparência, a forma e, em certos casos, inclusive o conteúdo e a estrutura lógica desse conhecimento. Esses fatores não teóricos podem interferir no pensamento de muitos modos: orientando a percepção do problema, determinando sua formulação teórica, fixando os pressupostos e valores que afetam em grau considerável a escolha dos materiais e dos problemas e sendo envolvidos no processo de verificação.

Esses fatores influenciam manifestamente o pensamento em certas esferas (por exemplo, as ciências sociais e o campo de opinião em geral) em uma extensão muito maior do que em outras (por exemplo, as ciências físicas e naturais). Desse modo, é muito compreensível que a maior parte dos estudantes de Wissenssoziologie tenham negligenciado a análise do desenvolvimento das disciplinas mais firmemente estabelecidas.

É manifesto que a sociologia do conhecimento concerne a problemas que têm uma longa pré-história. Isso é tão verdadeiro que a disciplina já encontrou seu primeiro historiador, Ernst Grünwald. Como ele indica com propriedade, algumas de suas concepções dominantes são simplesmente reafirmações mais sistemáticas e formuladas de modo mais claro de visões que encontraram expressão nos escritos de Francis Bacon (sua discussão dos Idola), para não ir além. Na mesma tradição, a doutrina da “mentira clerical” de Voltaire é marcada pelo otimismo intelectual do Iluminismo, ao assumir que o homem é capaz de adquirir conhecimento válido em relação a todos os problemas, mas não o faz, meramente por causa de “fatores perturbadores”. Essa visão, para a qual o homem pode saber a verdade, mas é levado à dissimulação consciente por seus interesses (econômicos, o desejo de poder etc.), não está muito afastada da doutrina segundo a qual as ideias são o resultado de interesses profundos que involuntariamente tingem e distorcem cada fase do pensamento humano. Nietzsche parte dessa base, mas acrescenta uma nova faceta: o fato de que um juízo é falso não impossibilita necessariamente sua utilidade. Essa distinção entre a verdade e a utilidade encontra expressão, mais tarde, nos trabalhos de Vaihinger, Sorel, Pareto e G. Adler.

Segundo Grünwald (1934), o dogma cristão do mal, que é o erro na esfera cognitiva, como um elemento necessário do inescrutável plano divino é a segunda principal raiz histórica da sociologia do conhecimento. Certos grupos, principalmente os de não crentes, foram tornados cegos por Deus, de modo que seus juízos não podem ser válidos. Assim, não é mais necessário analisar seus juízos individuais para certificar sua falsidade, isso está predeterminado por seu grupo de filiação. Nas mãos de Hegel, essa doutrina torna-se secularizada e sustenta-se que, até certo ponto, o pensamento necessariamente falacioso é um reflexo do Espírito absoluto, já que tal pensamento nada é senão um meio para a “List der Vernunft” (“a astúcia da razão”) atingir seus próprios fins. Esse historicismo idealista garante sua própria verdade sustentando que o filósofo, o próprio Hegel, está em aliança com o espírito do mundo; ele não é mais simplesmente um instrumento nas mãos do espírito absoluto, mas é, afinal, capaz de compreendê-lo. Marx substitui o espírito absoluto de Hegel pelas “relações de produção”: o determinante do pensamento e das atitudes de um indivíduo é encontrado em sua posição no processo produtivo. Assim como certas classes são inevitavelmente caracterizadas por pontos de vista inevitavelmente distorcidos (Falsches Bewusstsein) — daí que os motivos de seus membros não precisam ser impugnados —, assim também a classe é o expoente de um processo histórico imanente, a saber, o proletariado, tem assegurada a possibilidade, se não a certeza, do pensamento válido.

A racionalidade circular dessas doutrinas é clara. Assumindo premissas que envolvem um historicismo radical que implica a recusa da possibilidade do pensamento válido, elas buscam uniformemente defender, por mero fiat, seus próprios argumentos de que o processo histórico (determinado de modo transcendental ou imanente) é tal que exime de erro o escritor ou grupo ao qual é filiado.

Opondo-se a essas visões, Max Scheler (1924) não atribui o monopólio da verdade a nenhuma classe social. De um modo aforístico, que impediu que desenvolvesse seus vários insights, ele sugere que os Realfaktoren (fatores reais) — raça, Estado, economia — atuam como agências seletivas de ideias, retardando ou acelerando sua difusão, mas não afetando sua validade ou determinando seu conteúdo. Essa visão não impossibilita de início uma analise do desenvolvimento das ciências físicas e naturais, já que concerne principalmente ao estudo dos fatores não teóricos, no âmbito que eles determinam uma direção do interesse intelectual. Um historicismo extremo, por outro lado, precisamente porque mantém de modo injustificado que o condicionamento do pensamento pelos fatores socioculturais tem alcance significativo quanto a sua validade, é compelido a desconsiderar o estudo dessas ciências, sob pena de ser levado à desconfortável posição de repudiar o conjunto do conhecimento científico acumulado.

Scheler sugere que um desenvolvimento social importante que subjaz ao surgimento da ciência moderna foi a crescente separação entre Igreja e o Estado na Idade Média e a subsequente multiplicação das seitas religiosas. Isso significou uma garantia ainda maior para a liberdade da ciência, pois os cientistas puderam jogar as muitas autoridades uma contra a outra, com o resultado de que as restrições autoritárias à ciência tornaram-se cada vez menos sólidas. A “tolerância” não carece de relação com uma multiplicidade de pontos de vista sectários em conflito. Além disso, em  contraste com as classes dominantes feudais, que consistentemente exerciam controle sobre os homens, a nova burguesia estava preocupada principalmente em adquirir  a capacidade e o poder de transformar coisas em bens de valor. Essa mudança manifestou-se igualmente na supressão de técnicas “mágicas” de controle utilizadas por grupos e classes dominantes tradicionais e em uma nova estimativa positiva da possibilidade de controlar a natureza.

Não é a necessidade técnica que condiciona a nova ciência, não é a nova ciência que condiciona o progresso técnico, porém, no tipo da nova humanidade burguesa, de sua nova estrutura de pulsões e de seu novo éthos estão fundadas, igualmente, a transmutação original do sistema lógico da nova ciência, assim como o novo ímpeto, também originalmente técnico, de dominação da natureza. (scheler, 1924, p. 100)

Scheler sugere ainda que a democracia parlamentar (ou regimes de estrutura similar) esteve conectada com a ciência na era liberal através de um conjunto de pressuposições e demandas comuns. A primeira delas é a crença geral, incorporada em fortes sentimentos, de que a livre discussão, a troca dialética de ideias e teses poderia, em geral, conduzir na ciência, assim como na arena política, à verdade e à correlação política. “A liberdade os guiará para a verdade” é frontalmente oposto à doutrina autoritária: minha “verdade os fará livres”(3). A crença nas “verdades eternas da razão” é quebrada pelo relativismo da ciência positiva como pela democracia parlamentar. Em seu lugar surge a crença na discussão ilimitada como o meio de atingir a verdade. Isso, sugere Scheler — com sua doutrina poincariana do convencionalismo, do pragmatismo que testa as suposições por um simples apelo à conveniência —, tem como consequência um Zersplitterung (estilhaçamento) que chega perigosamente perto de um oportunismo dos interesses prevalecentes em qualquer momento. Assim — isso foi escrito em 1923 — chega-se, na esfera do conhecimento, a uma demanda por uma “verdade estabelecida” e, no domínio da política, ao movimento pela abolição de um parlamentarismo antiquado, à disposição para a ditadura, de direita ou de esquerda.

Assim, o cientificismo liberal e o democratismo parlamentarista lentamente se esgotaram nesse princípio comum, para ceder lugar a significativos gritos de desespero (ainda) literários — não políticos — com vistas à “decisão”, à ditadura e à autoridade. (scheler, 1924, p.138)

O trabalho recentemente traduzido(4) de Mannheim (1936) concerne primeiramente ao exame do pensamento humano em seu modo de operação na vida política “como um instrumento de ação coletiva”, e não como normativamente descrito nos livros-texto de lógica. Com base na suposição de que é a vontade dos membros dos grupos, de mudar ou manter os domínios da sociedade e da natureza, que guia a emergência de seus conceitos, problemas e modos de pensamento, Mannheim busca discriminar e isolar vários estilos de pensamento e relacioná-los aos grupos nos quais surgiram. O fato de que o pensamento seja tão enraizado em um meio social não precisa levar ao erro, mas pode proporcionar uma perspectiva para a observação de aspectos de um problema que, de outro modo, seriam ignorados. Contrariamente, uma dada posição social limita de tal modo um ponto de vista que pode obscurecer várias facetas de uma situação sob escrutínio. Essas concepções foram desenvolvidas por Mannheim em conexão com sua discussão de dois conceitos básicos, ideologia e utopia.

O conceito de “ideologia” é produto do conflito político no curso do qual parece “que os grupos dominantes podem, em seu pensamento, tornar-se tão intensamente ligados a uma situação por seus interesses que simplesmente não são mais capazes de ver certos fatos que podem enfraquecer seu senso de dominação” (Mannheim, 1936, p.36), Como resultado, os juízos sociais dos estratos dominantes constituem uma apologia da ordem existente. As ideologias são de dois tipos: particular e total. A versão particularista mantém que as visões de nosso oponente são tão vinculadas a sua posição de classe que ele é incapaz de admitir considerações que destroem suas alegações de dominância. Historicamente, o primeiro passo em direção à mudança da concepção particularista em concepção total foi realizado por Kant em seu desenvolvimento de uma filosofia da consciência, que sustentava que um mundo infinitamente variado é transformado em uma unidade pela unidade do sujeito da percepção, que desenvolve princípios de organização (categorias) para o entendimento desse mundo. O sujeito não é um indivíduo concreto, mas “a própria consciência”, a qual, vista por Hegel em perspectiva histórica como sujeita à transformação contínua, torna-se o espírito do povo (Volksgeist). Com Marx, o espírito do povo é fraturado na consciência de classe, e perspectivas unitárias tornam-se peculiares às classes antes que aos povos, épocas ou nações.

É possível dividir a concepção total em forma geral e forma específica. Específica, ao interpretar as visões dos oponentes como mera função de sua posição social; geral quando o analista submete todos os pontos de vista, incluindo o seu próprio, à analise ideológica. “Com a emergência da formulação geral da concepção total de ideologia, a teoria da ideologia simplesmente converte-se na sociologia do conhecimento” (Mannheim, 1936, p.69). Essa concepção total geral é, finalmente, dividida em um tipo valorativo, que concerne às bases epistemológicas das ideias, e um tipo não valorativo, que busca simplesmente estabelecer o modo como certas relações sociais fazem emergir interpretações particulares.

O segundo conceito no par básico de Mannheim é o de utopia. São utópicas aquelas concepções que, orientadas para um estado de coisas ainda inexistente, mas concretamente realizável, quando postas em ação rompem a ordem existente. Contrariamente às ideologias que são ilusórias, as utopias (tal como definidas) são verdadeiras. Manifestadamente, isso envolve um critério de verdade ex post facto, que já, de outro modo, é impossível estabelecer quais ideias serão traduzidas em situações reais.

Considerando que Mannheim delimitou severamente, se não eliminou, o domínio do pensamento válido, ele é compelido, como o foram seus predecessores, a justificar suas próprias observações como verdadeiras e não simplesmente como ideológicas. Ele se esforça para sustentar isso indicando que existe um “estrato desenraizado, relativamente fora das classes, a intelligentsia socialmente desvinculada” (sozialfreischwebende Intelligenz),  que pode, em virtude de sua desvinculação, transcender as perspectivas de classe e alcançar o pensamento válido que integra os diversos pontos de vista parciais. E, por inferência necessária, é nesse estrato que Mannheim encontra seu lugar. Mais uma vez, as bases da validade não são encontradas em cânones objetivos de verdade, mas nas características de um grupo especificamente definido. E em quais bases se pode estabelecer essa premissa?

No curso de sua discussão invariavelmente estimulante, Mannheim sustenta um conjunto de teoremas que devem ser construídos, de modo mais prudente, como hipóteses sugestivas. É apenas em uma sociedade altamente diferenciada, caracterizada por alta mobilidade social e democratização, que a confrontação de universos de discurso incompatíveis e mutuamente ininteligíveis leva ao relativismo. A própria sociologia do conhecimento somente poderia surgir em uma sociedade como essa, na qual, com a emergência de novos valores básicos e a destruição dos antigos, são desafiadas as próprias fundações que sustentam crenças oponentes entre si.(5)

Mannheim propõe, então, a tese segundo a qual “mesmo as categorias que subsumem, compõe e ordenam as experiências variam de acordo com a posição social do observador” (Mannheim, 1936, p.130). Um grupo organicamente integrado concebe a história como um movimento contínuo em direção à realização de seus próprios fins, grupos sem enraizamento e francamente integrados esposam um intuicionismo a-histórico que enfatiza o fortuito e o imponderável. A mentalidade conservadora bem ajustada é avessa à teoria histórica, pois a ordem social, vista como “natural”, não apresenta problemas. Somente o questionamento do status quo por classes que lhe são opostas leva os conservadores a reflexões filosóficas e históricas defensivas sobre si mesmos e o mundo social. Além disso, o conservadorismo tende a ver a história em termos de categorias morfológicas que enfatizam o caráter singular das configurações sociais, enquanto os advogados da mudança adotam um enfoque analítico para chegar às unidades que podem ser recombinadas, por integração causal ou funcional, em novos todos. A primeira visão enfatiza a estabilidade inerente à estrutura social como ela é, e a segunda enfatiza a mutabilidade, abstraindo os elementos componentes dessas estruturas rearranjado-os novamente.

Na medida em que Mannheim alega relevância epistemológica , sua discussão foi objeto da crítica do doutor Von Schelting, 1934 (6), que esclarece vários temas controversos nela envolvidos. Suas principais objeções podem ser sucintamente sumariadas.

  1. A imputação de caráter ideológico ao pensamento de um oponente é um recurso teórico que, como fenômeno social que é, pode ser estudado proveitosamente pela ciência social, mas é duvidoso que estejamos justificados em adotar a ideologia como um conceito central.
  2. Na versão total do conceito de ideologia, toda a estrutura do pensamento de um indivíduo está envolvida. Daí que só possa existir pensamento ideológico e mesmo a ciência, especialmente a ciência social, torna-se ligada à posição social e é, consequentemente inválida. Como pode então Mannheim reivindicar validade para seu próprio pensamento? Entretando, se Mannheim foi realmente levado a esse familiar empasse relativista é um ponto de disputa que não permite uma solução rápida. Algumas vezes, Mannheim mantém que a determinação do pensamento pela posição social não é necessariamente uma fonte de erro, e podemuitas vezes abrir uma oportunidade para insights de outro modo impossíveis (1936, cf., por exemplo, p.42,72,111,124,153,254). Em outros contextos, ele afirma que tal determinação destrói a possibilidade de pensamento válido (1936, cf., por exemplo, p.61-62,175-6,184). Parece que essas contradições repousam sobre uma dupla confusão. Em primeiro lugar, temos a tese defensável de uma probabilidade muito grande de distorção e erro, quando o interesse e o sentimento não apenas motivam, mas também permeiam o próprio ato de cognição. Essa é a equação pessoal e social familiar. Mas isso é confundido com a necessidade do viés significante em todas as situações envolvendo “interesse vital”. Em segundo lugar, o fato de que um interesse a consequente definição e limitação do problema são relacionados à filiação de classe é, por vezes, suposto implicar que os juízos contidos nessa esfera limitada são necessariamente incorretos. Essas são proposições essencialmente distintas: as bases da escolha de um problema implica acerca do estatuto de sua solução.(7)
  3. Schelting (1934) indica com propriedade a séria confusão feita por Mannheim entre esferas essencialmente diferentes. Normas éticas e estéticas, crenças políticas e religiosas (preconceitos e convicções) e juízos científicos são todos reunidos sob a rubrica “Wissen” (cf. Mannheim, 1936, p.22,72,84) e considerações que são aplicáveis a alguns desses fenômenos são tacitamente estendidas para todos. Em que bases se pode atribuir ou recusar “validade” a normas éticas!
  4. O critério múltiplo de “verdade” de Mannheim — uma realização da ideia de função, eficácia ativa etc. — são bases não cognitivas, não teóricas, para avaliar ideias. Além disso, elas supõe o próprio conceito de validade objetiva que pretendem suplantar.
  5. Se uma validade superparticular é concedida à “Intelligentsia socialmente descomprometida”, como alguém pode alcançar essa generalização válidasenão por um decreto epistemológico? E, em segundo lugar, como se pode estabelecer objetivamente o fato de que um indivíduo específico é “socialmente descomprometido”?
  6. Mannheim concede livremente que a “gênese psicológica” das ideias é irrelevante para o problema de sua validade. Ainda assim, ele mantém a “gênese social” do pensamento envolve tal relevância por que é uma “gênese significativa”. Isso é aparentemente convincente. O argumento baseia-se na confusão entre a teoria da irrelevância da gênese para o significado de um juízo (o que ninguém nega) e a doutrina da irrelevância da gênese para a validade de um juízo. Somente esta última é sustentada pela epistemologia.
  7. Finalmente, a tese da mudança histórica das categorias de pensamento não foi demonstrada. No curso de tais “demonstrações” nominais, as comparações são caracteristicamente feitas não entre as categorias envolvidas no pensamento positivo de vários povos, mas entre elas e as categorias básicas das concepções religiosas ou mágicas. Essa falácia, que é partilhada por Mannheim e Scheler, é especialmente conspícua no trabalho de Lévy-Bruhl, Jerusalem e seus discípulos. Em oposição a essa tese, pode-se mostrar (a) que, em outros domínios que não aquele do pensamento positivo, a negação dos princípios de identidade e contradição é prevalecente mesmo em nossos dias e (b) que, em grupos primitivos, além das esferas nas quais domina a “pré-logicidade”, existe um corpo de conhecimento técnico que pressupõe os cânones da lógica e da verificação básicos ao pensamento positivo.

Uma vez que deixamos de lado esse problema geral da relevância epistemológica da sociologia do conhecimento, o desacordo dá amplo espaço ao consenso. Se, essa disciplina vai render frutos, se ela proporciona insight e entendimento das complexas inter-relações entre pensante e sociedade, seria aconselhável que suas investigações se restringissem a problemas que permitem testes de fato. Em seu prefácio ao trabalho de Mannheim, o professor Wirth descreve alguns desses problemas fundamentais:

  1. Determinação das mudanças de foco do interesse intelectual que estão associadas com as mudanças na estrutura social (mudanças de diferenciação, estratificação etc.).
  2. Análise da mentalidade de um estrato social, com a devida consideração dos fatores que determinam a aceitação ou rejeição de ideias particulares por certos grupos.
  3. Estudos da avaliação social de tipos de conhecimento e dos fatores determinantes da proporção de recursos sociais conferidos a cada um desses tipos.
  4. Estudos das condições sob as quais novos problemas e disciplinas surgem e declinam.
  5. Exame sistemático da organização social da vida intelectual, incluindo normas que orientam tal atividade, fontes de apoio, direção e foco de interesses envolvidos nessa organização.
  6. Estudo das agências que facilitam, impedem ou dirigem a transmissão e difusão de ideias e conhecimento.
  7. Estudos dos intelectuais: suas origens sociais, meios de seleção social, grau de mudança ou substituição das lealdades de classe, incentivos para objetivos particulares, interesses associados.
  8. Análise das consequências sociais do avanço científico e, em especial, tecnológico.

É provável que a ênfase nas implicações metafísicas e epistemológicas da sociologia do conhecimento possa ter origem, em parte, no fato de que os primeiros proponentes da disciplina eram provenientes em grande parte dos círculos filosóficos, mais do que de círculos científicos. A responsabilidade da pesquisa futura é abandonar essa mistura de opinião conflituosa por investigações empíricas que possam estabelecer, como detalhes adequados, as uniformidades relativas ao surgimento, aceitação e difusão ou rejeição e repressão ao desenvolvimento e às consequências do conhecimento e suas ideias.

Notas

(1) Este breve apanhado geral sobre o tema é primeiramente, mas não exclusivamente, baseado nos seguintes livros: Grünwald, 1934; Scheler, 1924; Schelting, 1934. Mannheim, 1936.

(2) “Seinsverbundenheit des Wissens” (o pertencimento existencial do conhecimento), uma frase que está rapidamente tornando-se um clichê.

(3) Pode-se sugerir que as implicações relevantes da frase bíblica tornaram-se totalmente manifestas pela primeira vez quando lidas no contexto do verso anterior: “Então disse Jesus aos judeus que acreditavam nele, se vocês continuarem com a minha palavra, então vocês são meus discípulos; e vocês conhecerão a verdade, e a verdade os fará livres” (João 8:31-3).

(4) Devemos aos professores Louis Wirth e a Edward Shills uma tradução lúcida de um trabalho particularmente difícil. Esse volume combina o amplamente divulgado Ideologie und utopie, publicado originalmente em 1929, com o artigo “Wissenssociologie”, publicado em 1931 no Handwörterbuch der Soziologie, editado por Alfred Vierkandt, e uma introdução escrita para a edição inglesa.

(5) O uso do termo “oponente” ou “adversário” reflete a fonte política do pensamento de Mannheim e sua inaplicabilidade geral aos desenvolvimentos científicos. A função da controvérsia política, em contraste com a crítica e a discussão científicas, é o favorecimento pessoal ou partidário, às expensas de pessoas ou partidos “opostos” e “competidores”. Daí o objetivo de desacreditar o oponente a qualquer preço. Na ciência, o “oponente”, se for permitido apelar ao antropoformismo para encontrar um paralelo, é a “ignorância” ou a “resistência da natureza à descoberta de seus segredos”. Certamente, por causa de fatores sociais que são estranhos à atividade da ciência, os mesmos elementos de favorecimento e lealdade pessoais a uma “escola” ou facção podem imiscuir-se nas atividades científicas. Mas eles são considerados como desvios descuidados em relação à norma vigente da impessoalidade, não expedientes táticos do fim específico em vista. De fato, é função essencial dessa norma de impessoalidade impedir esses envolvimentos emocionais dos cientistas com algumas de “suas” teorias, de modo a deixá-los dispostos e prontos a abandoná-las quando novos fatos demonstrarem sua inadequação. O sentimento básico para a ciência adere à ideia dominante de “busca da verdade” e a intrusão de outros sentimentos (glória pessoal, status econômico, político etc.) pode perturbar essa busca sem preferência da verdade. Daí também a ciumenta reação dos cientistas quando lealdades e outras instituições, por exemplo, o Estado, são dele demandadas qua cientista, já que elas interferem no funcionamento institucionalizado da pesquisa científica, como no caso da denúncia feita por Phillip Lenard da “física judia” de Einstein.

(6) Estamos aqui considerando estritamente aquela seção do livro de Shelting (principalmente p.73-177, em especial p.117-67) que trata diretamente da sociologia do conhecimento. Pode-se dizer de passagem que o trabalho como um todo contribui muito para o nosso entendimento da metodologia de Max Weber e demonstra claramente sua importância para a pesquisa atual em ciências sociais. (cf. também Schelting, 1936).

(7) Em seu ensaio “A Sociologia do Conhecimento”, Mannheim tempera suas visões e garante a possibilidade de validade particularizada a diferentes observadores na mesma posição de classe, que, “com base na identidade de seus aparatos conceituais e categorias e através do universo comum de discurso assim criado, chegam a resultados similares” (1936a, p.270). Mas Mannheim não concede a possibilidade de juízos objetivos que transcendam a posição de classe.

Douglas Ferrari

Douglas Ferrari

Graduado em Sociologia, Docente de Sociologia e Filosofia, desenvolve atividades de Divulgação e Educação Científica. Membro do Universo Racionalista, Presidente/Fundador do Grupo de Astronomia e Física Concórdia-SC.