Há algum tempo, foi passada, no local em que estudo, uma interpretação de um texto baseado no aforisma “Curar Algumas Vezes, Aliviar Quase Sempre, Consolar Sempre”, princípio para a prática da medicina, de forma a relacioná-la a minha vida de médico. O texto, que pode ser encontrado aqui, faz uma abordagem histórica da sentença; no entanto, ao lê-lo completamente, percebi que, da forma que estaria, permitir-se-ia a presença de brechas no discurso, dando margem a atitudes anti-éticas ou desumanas, e foi com base nisso que se estruturou minha resposta.
Gostaria de compartilhar meu texto com vocês, leitores, pois, como envolve a ética e a crítica a determinado princípio, achei que os interessaria.
Curar Algumas Vezes, Aliviar Quase Sempre, Consolar Sempre”. O aforisma referido é, como muitas tradições (tal qual o “Parabéns para você”), de origem e criador indefinidos. No entanto, sua repetição é observada por muito tempo (o que faz pensarmos mais profundamente sobre quem iniciou o pensamento) como o princípio-motriz da relação entre médico-paciente. As repetições são bastante variadas; porém, em uma análise minuciosa de todas as frases, podemos chegar a um consenso que englobe o verdadeiro compromisso de um médico para com seu paciente, e que, ao longo de minha carreira, serão essenciais para todos os procedimentos que eu venha a realizar como profissional: “curar, aliviar, cuidar, consolar e confortar na medida do possível, independentemente de quem esteja a precisar de ajuda”.
A frase de consenso de todos os princípios é, aparentemente, mais realista e rigorosa na fundamentação de seus termos, preenchendo lacunas que, antes, poderiam ser usadas para ir contra o próprio princípio. Uma das tais lacunas é a variação “Curar algumas vezes/às vezes”. O médico não deve curar apenas algumas vezes. Ele deve tentar de todos os métodos a seu alcance para tentar curar todas as vezes, sendo indiferente a quem ele esteja a ajudar. O médico deve esforçar-se para curar um assassino em série na mesma medida que se esforçaria para curar um ganhador do Prêmio Nobel da Paz. O médico não é nenhum justiceiro, mas sim um mantenedor da saúde.
Outra variação nas citações é “Aliviar muitas vezes/outras vezes/frequentemente”, que também pode servir de brecha para atitudes dilemáticas. Por exemplo, uma das questões discutidas pela parte da Filosofia Moral e Ética é a eutanásia. Se meu paciente sente uma dor insuportável, eu tenho de aliviá-la na medida do possível. Entretanto, algumas pessoas com alguns tipos de alterações patológicas (tal qual o câncer terminal) podem sentir dores tão insuportáveis que alegam que o único alívio é a própria morte. Particularmente, tenho a eutanásia como um procedimento que deveria ser liberado em favor da autonomia do paciente. No entanto, não posso deixar minhas cosmovisões intervirem em minha atividade profissional. Tanto a lei não permite quanto a medicina possui um princípio que me impede de causar, propositalmente, a morte do paciente. Então, por mais que eu saiba que haja uma concordância entre médico e paciente acerca de seu destino, a eutanásia é inviável. Sendo assim, devo tentar aliviar a dor do paciente da medida do possível (ou do que me é permitido).
Entretanto, por mais que o médico se esforce, muitas vezes, suas atitudes não conseguem sobrepor uma modificação drástica na saúde de um indivíduo. Assim, notícias não muito agradáveis surgem, e precisam ser comunicadas de uma forma eufêmica ou pouco trágica. E é aí que surge a parte do princípio que fala em “consolar e confortar na medida do possível”, que é a única alteração que não foge muito das variações principais (“consolar/confortar sempre”), já que essas não permitem brechas tais quais as citadas anteriormente. Um médico deve ter uma formação psicológica suficientemente boa para comunicar fatos desagradáveis a um paciente e consolá-los com seu conhecimento e experiência do que foi comunicado.
Por fim, em resumo, estabeleço que o médico responsável é aquele que age conforme conhecimentos pré-estabelecidos para promover a melhora ou o empecilho à piora do paciente; e quando, em algumas conjunturas, não lhe for permitida a alternativa que ache mais coerente, seu esforço deve ser consideravelmente grande para sobrepor a racionalidade e o profissionalismo a suas convicções.