Hoje eu chorei, copiosa e dolorosamente. Não me lembro da última vez que lamuriei tanto, nem o motivo por tê-lo feito, mas hoje o fiz por luto. O falecimento em questão, porém, ocorreu há cerca de 20 anos no Fred Hutchinson Cancer Research Center [1], Seattle, dia 20 de dezembro de 1996 [2]. Apesar de estar vivo na época, eu era apenas uma criança angustiada pela iminência dos presentes de natal, sem saber que naquele dia estava contraindo uma dívida, a ser paga em lágrimas e com juros, duas décadas depois.
Tudo começou quando decidi folhear alguns livros já lidos (apesar da tenebrosa lista de leitura pendente) em busca de alguma inspiração, uma ideia, ou apenas na esperança de escapar das garras da procrastinação. Encontrei uma edição de “Bilhões e Bilhões” (reflexões sobre vida e morte na virada do milênio), lançada originalmente em 1997 pela Ballantine Publishing Group [3]. Passei por algumas páginas no começo, folheei distraído pelo meio, e acabei me detendo no último capítulo. Durante a leitura, percebi que já havia passeado por aqueles versos, senti as palavras criarem um filme, que agora se repetia de maneira familiar em minha mente.
O livro termina com o autor, Carl Edward Sagan, descrevendo o estado atual de sua luta contra a mielodisplasia, doença que afeta a medula óssea e, por consequência, o funcionamento adequado das células sanguíneas [4]. No último parágrafo, Sagan relata:
…o prognóstico é o melhor possível: todas as células da medula detectáveis são células da doadora, XX, células femininas, células de minha irmã. Nenhuma é XY, célula hospedeira, célula masculina, células que alimentaram a doença original. Há pessoas que sobrevivem anos até com uma pequena porcentagem de suas células hospedeiras. Mas não terei uma certeza razoável, enquanto alguns anos não se passarem. Até então, só posso esperar.
Bilhões e Bilhões, pg. 239.
Lembro-me da sensação tola que tive ao, pela primeira vez, ler esse trecho. Mesmo sabendo que Carl havia morrido anos antes de eu conhecer o livro, até mesmo antes de sua publicação original, senti uma pontada de esperança me atingir, como se a vida fosse algo emancipável do tempo, e ele ainda pudesse estar aqui. O que não li na primeira vez, seja por distração ou desinteresse, foi o epílogo, um trecho de poucas páginas que descrevem, agora na escrita de Ann Druyan, sua esposa, o motivo de minhas lágrimas debulhadas.
Iniciei a leitura do epílogo com um olhar atento e angustiado, precisava de fôlego para o que viria a seguir. Sem esperar, porém, Ann me atingiu em cheio:
Poucas semanas mais tarde, no início de dezembro, ele estava sentado à nossa mesa de jantar, considerando o prato predileto com um olhar de perplexidade. Não sentia vontade de comer. Em nossos melhores dias, a minha família tinha sempre se orgulhado do que chamamos “wodar”, um mecanismo interior que incessantemente perscruta o horizonte à procura dos primeiros sinais de possíveis desastres. Durante nossos dois anos no vale da sombra, o nosso wodar se mantivera num constante estado de alerta máximo. Nessa montanha russa de esperanças eliminadas, alimentadas e eliminadas de novo, até a mais leve variação num único elemento da condição física de Carl fazia soar as campainhas de alarme. Um olhar se passou entre nós. Eu imediatamente comecei a tecer uma hipótese benigna para explicar essa repentina falta de apetite. Como de costume, argumentava que poderia não ter nada a ver com a sua doença. Era apenas um desinteresse transitório pela refeição, que uma pessoa saudável nem sequer notaria. Carl conseguiu abrir um pequeno sorriso e disse apenas: “Talvez”. Mas daquele momento em diante teve de se forçar a comer, e suas forças diminuíram visivelmente. Apesar disso, insistiu em cumprir um antigo compromisso de dar duas conferências, no final daquela semana, na área da baía de San Francisco. Quando voltou a nosso hotel depois da segunda palestra, estava exausto. Telefonamos para Seattle. Os médicos nos mandaram voltar para o Hutch imediatamente.
Bilhões e Bilhões, pg. 240.
Naquele momento, os 20 anos de minha dívida inconsciente vieram abaixo em forma de lágrimas. Me senti impotente, queria me sentar a seu lado e incentivá-lo a comer, ouvir suas histórias sobre o universo, os planetas e as estrelas, abraçá-lo e dizer o quão importante ele foi para minha vida. Queria tanto, mas já não podia, e o pior de tudo era pensar que vivi o dia 20 de dezembro de 1996 [2] [5] alheio a sua partida, que se as coisas fossem um pouco diferentes eu estaria lá, em uma de suas duas últimas conferências em São Francisco, assistindo um homem que abriu mão da frágil noção de vida em prol do amor pelo conhecimento.
Prossegui lendo, confiante de que suportaria o inevitável. O “golpe final” de Ann não demorou, mas dessa vez senti mais que apenas tristeza, eu compreendi a profundidade daquele momento para Ann e Carl:
Carl me disse calmamente. “Vou morrer.” “Não”, protestei. “Você vai vencer desta vez, assim como já venceu antes, quando tudo parecia sem esperança.” Ele se virou para mim com aquele mesmo olhar que eu tinha visto inúmeras vezes nos debates e brigas de nossos vinte anos de trabalhos em conjunto e amor apaixonado. Com uma mistura de fino bom humor e ceticismo, mas como sempre, sem nenhum vestígio de autopiedade, disse ironicamente: “Bem, vamos ver quem tem razão desta vez”. Sam, então com cinco anos, veio ver seu pai pela última vez. Embora estivesse com dificuldade para respirar e falar, Carl conseguiu se recompor para não assustar seu filhinho. “Eu te amo, Sam” foi só o que conseguiu dizer. “Eu também te amo, papai”, disse Sam solenemente. Ao contrário das fantasias dos fundamentalistas, não houve conversão no leito de morte, nenhum refúgio de última hora numa visão consoladora do céu ou de uma vida após a morte. Para Carl, o que mais importava era a verdade, e não apenas aquilo que poderia fazer com que nos sentíssemos melhor. Mesmo nessa hora, quando qualquer um seria perdoado por se afastar da realidade de nossa situação, Carl foi inabalável. Quando olhamos profundamente nos olhos um do outro, foi com a convicção partilhada de que a nossa maravilhosa vida em conjunto estava terminando para sempre.
Bilhões e Bilhões, pg. 240.
É preciso muita força para não recorrer aos instintos primais da superstição, que ainda navegam por nosso cérebro em constante plasticidade. Carl foi bem-humorado com sua esposa, declarou amor ao filho, e partiu. Não houveram promessas, ilusões ou desespero, Carl se foi sem medo, pois percebeu que a melhor realidade é aquela vista pelas lentes da razão.
Apesar do duro golpe que foi perdê-lo 20 anos depois, Ann mostra que nunca estive só:
Estou cercada por pacotes do correio, cartas de pessoas de todo o planeta que lamentam a perda de Carl. Muitos lhe dão o crédito por tê-los despertado. Alguns dizem que o exemplo de Carl os inspirou a trabalhar pela ciência e pela razão contra as forças da superstição e do fundamentalismo. Esses pensamentos me consolam e me resgatam de minha dor. Permitem que eu sinta, sem recorrer ao sobrenatural, que Carl vive.
Bilhões e Bilhões, pg. 245-46.
Carl Edward Sagan nasceu no Brooklyn, em 9 de novembro de 1934. Foi concebido no ápice da Grande Depressão e menos de 5 anos antes do início da Segunda Guerra Mundial. Seu pai, Samuel Sagan, era um operário ucraniano, enquanto que sua mãe, Rachel Molly Gruber Sagan, era dona de casa. Carl estudou em escolas públicas até receber bolsa integral da Universidade de Chicago, onde posteriormente concluiu seu Ph.D. em Astronomia [6]. Dentre os prêmios recebidos em sua carreira, estão: prêmio Pulitzer de não ficção geral [7]; prêmio Klumpke-Roberts [8]; medalha Rittenhouse [9]; medalha Oersted [10]; prêmio Gerard P. Kuiper [11] e outros.
Sagan é um símbolo de amor à ciência e da constante luta para difundi-la. Através dele, eu e milhares de outros cientistas, artistas e pensadores fomos inspirados a cultivar nas gerações seguintes a semente da curiosidade. Seria perverso não fazê-lo, quando se está apaixonado, você quer contar ao mundo. Agora minhas lágrimas se transformam paulatinamente em um sorriso, pois diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo, foi um imenso prazer para mim dividir um planeta e uma época com ele. Carl vive.
Referências
- Fred Hutchinson Cancer Research Center. Fred Hutch: cures start here. Disponível em: https://www.fredhutch.org/en.html Acesso em: 23/08/2016.
- Sagan C. Bilhões e Bilhões – Reflexões Sobre Vida e Morte na Virada do Milênio. Companhia De Bolso, Ed. de bolso, 288 pgs, ISBN 9788535911947, 2008.
- Sagan C. Billions and Billions: Thoughts on Life and Death at the Brink of the Millennium. Random House, First Edition, 1997.
- MDS Foundation. Understanding Myelodysplastic Syndromes (MDS). Disponível em: http://www.mds-foundation.org/what-is-mds/ Acesso em: 23/08/2016.
- Cornell Chronicle. Carl Sagan, Cornell astronomer, dies today (Dec. 20) in Seattle. Disponível em: http://www.news.cornell.edu/stories/1996/12/carl-sagan-cornell-astronomer-dies-today-dec-20-seattle Acesso em: 23/08/2016.
- National Academy of Sciences. Carl Sagan: Biographical Memoirs. Disponível em: http://www.nasonline.org/publications/biographical-memoirs/memoir-pdfs/sagan-carl.pdf Acesso em: 23/08/2016.
- The Pulitzer Prizes. Prize Winners. Disponível em: http://www.pulitzer.org/prize-winners-by-year/2016 Acesso em: 23/08/2016.
- Astronomical Society of the Pacific. Klumpke-Roberts Award of The Astronomical Society of the Pacific. Disponível em: https://astrosociety.org/membership/awards/klumpke.html Acesso em: 23/08/2016.
- Rittenhouse Astronomical Society. Rittenhouse Medal Award. Disponível em: http://www.rittenhouseastronomicalsociety.org/Pages/rasmedalrecipients.htm Acesso em: 23/08/2016.
- American Association of Physics Teachers. Oersted Medal. Disponível em: http://www.aapt.org/programs/awards/oersted.cfm Acesso em: 23/08/2016.
- American Astronomical Society. Gerard P. Kuiper Prize in Planetary Sciences. Disponível em: https://dps.aas.org/prizes/kuiper Acesso em: 23/08/2016.
Figura do artigo
- Wide HD Carl Sagan Wallpaper. Disponível em: http://feelgrafix.com/927708-carl-sagan.html Acesso em: 23/08/2016.