Trecho publicado na Enciclopédia de Filosofia de Stanford
A Imunologia compreende uma agenda de pesquisas multifacetadas que tem se desenvolvido ao redor de desafios clínicos da defesa do hospedeiro, transplantes, auto-imunidade, imunologia de tumores e alergia. Os processos fisiológicos que mediam tais problemas clínicos designam o sistema imune, que, por sua vez, é entendido em termos do estabelecimento e da manutenção da identidade do organismo. Enquanto a imunologia como uma ciência é definida como a “ciência da discriminação eu/não-eu” (Golub e Green, 1991), de um ponto de vista filosófico, a imunologia é a ciência guiada aos mecanismos que definem a identidade de um organismo. Essa definição mais ampla permite conceber processos imunológicos em um contexto biológico maior, ou seja, em adição a processos defensivos e restauradores, o sistema imune também deve ser entendido como envolvido no processamento de informações e na cognição; trocas ativas com o ambiente para permitir relações sexuais benignas e; tolerância a relações simbióticas constitutivas de um organismo concebido como um complexo holobionte. Dessa forma, duas orientações gerais competem por dominância: (1) o conceito biomédico tradicional de defesa do hospedeiro enfatiza a insularidade do organismo e a imunidade em serviço a sua proteção e; (2) a imunidade em seu conceito ecológico completo – interno e externo – media a identidade da dinâmica do organismo em uma troca dialética com o ambiente. Em ambos os casos, a cognição – seus modelos, metáforas e organização – serve como um problema central pertinente para considerações filosóficas dos conceitos biológicos de identidade, individualidade, organismo e agente.
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A Imunologia, por seu conceito mais antigo, tem sido relacionado à identidade biológica – quanto a sua manutenção e estabelecimento. Três características-chave – individualidade, imunidade e identificação -, juntas, definem a identidade imunológica, de modo que, se uma noção muda o significado, assim o faz as outras. A noção de Individualidade sustenta a imunologia desde o seu início, pois a defesa contra patógenos era enquadrada por um paciente atacado (o indivíduo) enfrentando corpos estranhos (os invasores). Nesse cenário, fronteiras diferentes conferem a individualidade, e a imunidade é a resposta à violação de tais fronteiras. Assim, do ponto de vista das doenças infecciosas, o individual é “auto-contido”. Essa construção satisfaz tanto evidências clínicas quanto a história evolutiva de respostas imunes a patógenos. Certos microrganismos são reconhecidos como patológicos e são identificados por mecanismos imunes que iniciam respostas de defesa (Frank 2002). Essa é a configuração da imunidade pela qual a discriminação do eu e do não-eu domina a teoria imunológica, que é baseada em uma compreensão de que a identidade biológica, isto é, uma entidade, o eu, requer uma defesa.
Entretanto, a imunidade estende-se muito além do motivo de proteção, de modo a incluir a mediação de processos de troca com o ambiente, onde a tolerância ativa permite a assimilação nutricional e as relações simbióticas cooperativas. Para enfatizar a flexibilidade das fronteiras e as trocas dinâmicas no repertório imune como resultado de processos imunológicos ao longo da vida, Grignolio e seus colegas descreveram o perfil de identidade imune como “fluido” (Grignolio et al. 2014). Enfatizar a plasticidade do organismo explicita como a experiência de vida altera a resposta imunológica a oportunidades e desafios ambientes. Com esse entendimento ecologicamente informado da identidade biológica, a ideia de imunidade aumenta além da defesa de um indivíduo insular, destarte a incluir a mediação da economia interativa do indivíduo com o meio ambiente e a sua dependência dele. Isso inclui, também, o seu ambiente interno, na medida em que o microbioma, estabelecido a partir da tolerância imunológica, tem vindo a concentrar cada vez mais a atenção na prevalência da simbiose e na biologia caracterizada por relações cooperativas de vários tipos (Eberl 2010; Bilate e LaFaille, 2012), e, com isso, a ideia de imunidade é também afetada. Com esse quadro teórico expandido, o entendimento de “organismo” move-se de uma entidade autônoma para um consórcio complexo, um holobionte(eucarioto multicelular + colônia de simbiontes persistentes). Consequentemente, o conceito de “indivíduo” tem sido radicalmente alterado (Chiu e Gilbert 2015; Gilbert e Tauber, 2016). Partir ao foco quase exclusivo de respostas imunes agressivas para o estudo do balanço de reatividades em um gradiente de ativação imune alterou as noções básicas de imunidade. Suplementando um estado defensivo, a imunidade, em seu contexto ecológico complexo, deve ser, agora, como um processo em curso de estabelecimento e manutenção da identidade de um indivíduo, que requer uma coleção de processos fisiológicos com funções frequente ou facilmente mutáveis.
Originalmente, o caráter defensivo da imunidade conceitua anti-corpo como “antitoxina” e antígeno como a característica distintiva de um patógeno ou, de uma forma mais geral, uma substância perigosa. Nesse cenário de proteção, a “autoimunidade” seria uma imunidade mal-direcionada aos constituintes do hospedeiro e “alergia” resultaria de uma identificação desarranjada de uma substância inócua ou imunogênica. Entretanto, a vigilância imunológica (por exemplo, contra malignidades) foi apreciada como uma função imune importante, assim como a eliminação de células mortas, danificadas ou destruídas por processos imunológicos similares àqueles direcionados a patógenos sob a rubrica da necessidade de manutenção da integridade corpórea (Metchnikoff, 1905). O cenário discriminatório assume uma nova complexidade quando os chamados “anti-corpos naturais” foram descobertos (Avrameas, 1991; Varela et al., 1991). Esses foram encontrados para marcar componentes normais do corpo assim como um esboço seu conceituado como “homúnculo imune” (I. Cohen, 1992a; Madi et al., 2009), que seria uma representação da auto-imunidade normal (housekeeping) e das atividades sentinelas que monitoram o organismo e asseguram sua integridade. Com essa concepção mais ampla de imunidade, a auto-imunidade (tradicionalmente associada com a resposta de rejeição guiada para componentes normais) é recolocada como uma funções benéfica auto-regulatória. E, com essa compreensão estendida, atividades imunes são arranjadas em um gradiente funcional, onde vários tipos de reações são governados por diferentes critérios de identificação imune.
Nessa visão geral, os processos de identificação do sistema imune são entendidos não como determinados pelo reconhecimento da toxicidade per se, mas pelo contexto do encontro no qual o perigo em potencial é reconhecido. A classificação de “amigo” ou “inimigo” é determinada por múltiplos fatores que, juntos, criam a configuração da resposta imunológica (Matzinger, 1994). Então, em termos de compreensão da natureza da imunidade, essa orientação contextual desafia a concepção antiga da especificidade imune como decorrente de uma simples trava mecânica e combinação de chaves de anti-corpos específicos que se ligam a antígenos e propõe uma definição pela caracterização de uma resposta coletiva de diversos elementos que, juntos, determinam a extensão da resposta imunológica (Daëron, 2014). Assim, um espectro de perfis reativos determinam o caráter da imunidade.
Em suma, o desafio filosófico de definir a identidade imune é enquadrado na diferenciação de orientações, ou seja, individualidade autônoma vs conjunto coletivo. Cada versão escolhida, então, guia para respostas surpreendentemente diferentes a questões-chave da imunologia: 1) O que é a imunidade? 2) Quais são as características definidoras da individualidade como determinada imunologicamente? 3) Quais são as posições epistemológicas da identidade imunológica e os usos retóricos da agência em suas várias formas (literal, metafórica e idiomática)? 4) Como a metáfora cognitiva enquadrou processos imunológicos como sistemas de processamento de informação? e 5) Como modelar a causalidade biológica do sistema imunológico estudado como um todo? Cada uma dessas considerações pertencem ao escopo filosófico estrito à caracterização do organismo, às relações da parte com o todo, os princípios biológicos da organização e regulação, a construção de metáforas cognitivas e a habilidade de modelos para capturar funções orgânicas complexas. A literatura que aborda tais questões é vasta, mas, no que diz respeito ao estudo da imunologia, poucos comentários foram feitos.