Publicado em The Guardian
Autores: Marcus Munafo e George Davey Smith
Traduzido por Elan Marinho
“… a pior parte da filosofia é a filosofia da ciência; as únicas pessoas, tanto quanto posso dizer, que leem trabalhos de filósofos da ciência são outros filósofos da ciência”.
Essa é a visão do físico da Universidade do Estado do Arizona, Lawrence Krauss, autor do livro A Universe from Nothing de 2012. Ele, certamente, não é o único físico que critica a filosofia da ciência. Richard Feynman, que compartilhou o prêmio Nobel de 1965 em física por seu trabalho em teoria quântica de campos, afirmou que a “filosofia da ciência é tão útil para os cientistas quanto a ornitologia é para os pássaros”. É uma postura e tanto. Em um recente comentário na Nature, nós descrevemos como um melhor entendimento de um aspecto da filosofia da ciência, chamado de inferência causal [causal inference], pode nos ajudar a sermos cientistas melhores.
O que é a inferência causal? Simplificando muito, significa entender se X causa Y. Por exemplo, a maioria das pessoas que desenvolvem câncer de pulmão são fumantes, mas isso significa que fumar causa câncer de pulmão? Na década de 1950, essa era uma questão de pesquisa legítima: outras diferenças entre fumantes e não fumantes poderiam dar conta da associação, ou um terceiro fator poderia influenciar ambos? A relação causal entre o ato de fumar e o câncer de pulmão agora é clara, mas ela demorou anos para se estabelecer e se tornar um fato familiar. A razão disso é que determinar causalidade é notoriamente difícil, e a epidemiologia tem o talento de regurgitar supostas conexões entre, por exemplo, comportamento e saúde, que não vêm a refletir relações de causa e efeito.
Na ciência atual, há um grande interesse na replicação de resultados, provocado por evidências um tanto contestadas de que uma vasta proporção de resultados de publicações científicas podem estar errados ou, ao menos, que induzem ao erro. Caso nós tomássemos mais cuidado ao repetir nossos estudos, ao checar se conseguimos resultados amplamente similares a cada momento, então certamente nossas descobertas viriam a ser mais robustas. Talvez. Mas uma descoberta robusta ainda pode estar errada: X e Y podem ter uma correlação bastante confiável, mas é possível que isso não reflita relação de causa e efeito. Esse foco na replicação decorre de uma generalizada – mas, em nossa visão, incompleta – noção de falseamento [falsification] (defendida pelo filósofo da ciência Karl Popper) no coração da iniciativa científica. Na verdade, os cientistas raramente trabalham assim na prática.
Muitos pesquisadores podem se referir a Popper quando pressionados a explicar a base de suas inferências, mas o falseamento não é tudo. Uma outra abordagem relativa à investigação das associações potencialmente causais é a inferência da melhor explicação. Peter Lipton, o recém-falecido filósofo da ciência da Universidade de Cambridge, descreveu isso como uma busca pelo “maior entendimento” [loveliest] – e não simplesmente pela explicação “provável” [likeliest] – caracterizado por “escopo, precisão, mecanismo, unificação e simplicidade”.
Esse processo de chegar à explicação mais simples e provável por meio de uma observação se transforma na capacidade de enfrentar a mesma questão de diferentes perspectivas. Cada abordagem poderá ter seus próprios vieses e limitações; mas, se cada um der a mesma resposta, nós poderemos estar mais confiantes do resultado. Conhecida como triangulação [triangulation], essa é uma abordagem que, efetivamente, complementa o falseamento tradicional.
No debate em torno da replicabilidade, bem pouco é dito sobre a necessidade da triangulação. Os cientistas recebem treinamento extensivo em uma gama completa de métodos e habilidades, mas muito pouco em abordagem sobre inferência. Nós podemos fazer melhor do que isso ao enfatizar a necessidade da triangulação e da multidisciplinaridade – abordando uma mesma questão de pesquisa a partir de múltiplas perspectivas metodológicas, com cada uma tendo seus próprios pontos fortes e fracos. Se não fizermos isso, poderemos nos encontrar em meio a descobertas robustas que são, em última análise, inúteis se nosso objetivo é identificar fatores de risco causais que possam ser modificados em favor do melhoramento da saúde (como é caso da nossa própria pesquisa). Por exemplo, ter dedos amarelos preveria o risco de câncer de pulmão de uma pessoa, e essa descoberta se replicaria de forma robusta em diferentes estudos. Isso poderia até nos ajudar a prever quem possui câncer de pulmão. Mas, a menos que também utilizemos essa informação junto a outras evidências que sirvam ao fator básico de risco (fumar cigarro) e testemos isso diretamente, aquela informação isolada poderá vir a ser de pouco uso no entendimento de quais são as causas do câncer de pulmão.
O que a triangulação representa na prática? Gostaríamos de ver equipes de pesquisa de diferentes campos da ciência trabalhando em uma única questão básica de maneira coordenada. Ao abordar tal questão a partir de diferentes perspectivas elas poderiam determinar se seus resultados coincidem ou não. Essas equipes funcionam melhor quando entendem a base formal da abordagem, e isso vem diretamente da filosofia da ciência. Essa compreensão também poderia nos ajudar na proteção contra a tentação de escolher a dedo as descobertas de uma gama de abordagens e apresentar somente aquelas que funcionam melhor. A pesquisa já se move nessa direção, com uma ênfase renovada na “ciência de equipe”. Mas a abordagem colaborativa pode não ser suficiente por si própria. Precisamos entender os fundamentos intelectuais da inferência causal para chegarmos a um progresso real. Os cientistas não podem simplesmente absorver esse tipo de estrutura por osmose. Precisamos de um treinamento formal em alguns aspectos da filosofia da ciência para reconhecer sua importância em nosso trabalho.
Marcus Munafo é professor de psicologia biológica [biological psychology] na Universidade de Bristol. Ele pesquisa as influências genéticas e cognitivas sobre o comportamento vicioso [addictive behaviour].
George Davey Smith é diretor da MRC Integrative Epidemiology Unit, da Universidade de Bristol, onde sua pesquisa foca no uso da informação genética para o aprimoramento da inferência causal nos estudos observacionais.