Por José Tadeu Arantes
Publicado na Agência FAPESP
A má informação, a desinformação e a informação falsificada assolam o mundo contemporâneo, dominado pelas mídias digitais, pelas redes sociais e pela circulação de notícias em escala global e em tempo real.
O território da ciência, supostamente protegido pelo apuro na realização das pesquisas e pelo rigor em sua difusão, não está imune. As fake news invadiram o noticiário científico em uma época em que hipóteses como a do movimento geocêntrico dos planetas ou a da criação de espécies biológicas imutáveis, refutadas por séculos de estudos criteriosos e bem fundamentados, voltaram a circular na web com sabor de novidade.
“As fake news na ciência” foram tema e título do primeiro evento do Ciclo ILP-FAPESP de Ciência e Inovação de 2019. Resultado de parceria entre o Instituto do Legislativo Paulista (ILP) e a FAPESP, o debate foi coordenado pelo professor Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da Fundação.
Participaram do evento o jornalista Francisco Belda, vice-coordenador do programa de pós-graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp); a médica Helena Sato, diretora técnica da Divisão de Imunização do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde; a bióloga Natália Pasternak, uma das fundadoras do Instituto Questão de Ciência; e o físico Peter Schulz, professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (FCA-Unicamp).
Apresentando uma espécie de tipologia do fenômeno – que vai das reportagens malfeitas pela mídia sobre assuntos científicos, passando pelos erros grosseiros, mas inocentes, que circulam pela internet, até as notícias falsas deliberadamente fabricadas – Francisco Belda chegou ao que chamou de “notícias falsas profundas” (deep fake news). E citou, como exemplo, o caso no qual, por meio de aplicativo sofisticado, foram colocadas falas falsas em um vídeo do ex-presidente norte-americano Barack Obama.
“Nas deep fake news, a manipulação não se dá apenas no nível do texto ou da imagem, mas no próprio audiovisual, com técnicas de edição de áudio e de vídeo que fazem com que um interlocutor pareça estar falando algo que ele nunca disse”, disse Belda à Agência FAPESP.
“A informação sempre foi uma arma política, uma arma de disputa pelo poder. Não é novo na história da humanidade o uso da informação e da comunicação como instrumento de disputa. Muitas vezes, há um investimento, caro inclusive, na produção de verdadeiras fazendas de robôs, com servidores instalados no exterior, e equipes profissionais que se dedicam diariamente à produção de conteúdo mal-intencionado”, prosseguiu.
Diante da invasão do território da ciência pelas fake news, Pasternak ressaltou a importância de que as políticas públicas sejam baseadas em evidências científicas. “É dever do Estado garantir que o dinheiro que sai do bolso dos contribuintes seja usado com técnicas que tenham sua eficácia comprovada pela ciência”, disse a bióloga à Agência FAPESP. E acrescentou que, sem o recurso das evidências científicas, a sociedade corre o risco de que os parlamentares “passem a legislar baseados em ideologias e achismos”.
O papel deletério que a falsificação da verdade sob o rótulo de ciência pode exercer sobre uma sociedade foi bem exemplificado por Peter Schulz por meio de um caso histórico famoso: o Projeto Huemul, conduzido na Argentina de 1948 a 1952, durante o primeiro mandato presidencial de Juan Domingo Perón (1895-1974).
Militar de formação e político populista, Perón teria desestruturado a comunidade científica argentina depois de assumir a Presidência em 1946. Logo, passou a ser influenciado por Ronald Richter (1909-1991), um autoproclamado cientista, alemão nascido na Áustria, que emigrou para a Argentina depois da derrota do nazismo em 1945. Segundo Schulz, Richter tornou-se uma espécie de guru do presidente, convencendo-o a implementar um “projeto de controle da fusão nuclear para a produção de energia barata, sem resíduos radioativos, que transformaria a Argentina na primeira potência a dominar uma tecnologia que todos começavam a perseguir”.
De fato, os experimentos de Richter não levaram a fusão nenhuma. Porém, muito dinheiro público e muito esforço governamental foram despendidos nesse projeto secreto, até que a fraude fosse desmascarada por um cientista de verdade, José Antonio Balseiro (1919-1962).
“Há outros casos, em que se tem um presidente populista, quando não autoritário, e alguém que apresenta uma solução que agrada entra na visão desse líder. Isso aconteceu na Alemanha de Hitler. Aconteceu na União Soviética de Stálin. E, nesta segunda década do século 21, acontece com a negação do aquecimento global, com a negação de todo um consenso científico. Isso bloqueia investimentos, bloqueia a atenção, modifica a legislação e constitui um perigo terrível”, afirmou Schulz.
Exemplos do papel prejudicial das fake news já ocorreram no país, prejudicando iniciativas sérias, como o Programa de Vacinação do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. “Hoje, o calendário básico para as crianças é constituído por 14 vacinas. E há fake news do tipo ‘quem toma vacina contra meningite vai ter meningite’, ou ‘a vacina contra sarampo pode dar reação adversa’. Isso não é real: as vacinas são extremamente seguras e com uma excelente eficácia”, disse Helena Sato.
Um caso concreto, resultante não do achismo leigo que circula na internet, mas de notícia mal apurada pela mídia, resultou em queda expressiva na vacinação contra o vírus do papiloma humano (HPV), de enorme importância na prevenção do câncer de colo de útero. A vacina é ministrada em duas doses e, no período 2014–2018, na faixa etária de 9 a 14 anos, a cobertura vacinal caiu de 60,8% na primeira dose para 44,2% na segunda. Isso se deveu, em grande parte, à notícia de que três meninas do município de Bertioga, no litoral paulista, tinham tomado a vacina na escola e haviam sido acometidas de paralisia nas pernas.
“Fizemos várias avaliações clínicas dessas meninas e constatamos que elas não tinham nada. O diagnóstico psicológico foi de ‘reação de ansiedade pós-vacina’. Ou seja, elas ficaram tão estressadas pelo medo da vacina que isso causou o episódio temporário de paralisia. O problema foi que a notícia se disseminou e foi objeto de reportagens em veículos de grande influência. E isso resultou em uma queda importante na cobertura vacinal, que não foi inteiramente revertida até agora”, informou Sato.
Encerrando o evento, Pacheco ressaltou que, se é preciso defender a ciência das notícias falsas, é preciso também evitar transformar o discurso científico em um discurso monolítico de autoridade. “O conhecimento científico ajuda muito a melhorar a qualidade de vida, mas ajuda também a melhorar a compreensão do mundo em que vivemos. Por isso, a FAPESP financia diversos tipos de pesquisa, umas até mesmo em contradição com outras, para ampliar o espaço do conhecimento”, disse.
“O conhecimento é muito antigo, se pensarmos, por exemplo, na filosofia, na matemática, na astronomia dos antigos gregos. Mas o método científico é bem mais recente, remontando a Francis Bacon (1561-1626). E uma ideia central do método científico é a da reprodutibilidade daquilo que é observado. Isso é fundamental. Mesmo que mudem os paradigmas científicos, a ideia de que é possível testar e reproduzir o que foi feito por outro cientista, e avançar no conhecimento a partir dessa reprodução, se mantém como um elemento fundamental da ciência, um elemento constitutivo do método científico”, continuou.
Pacheco lembrou que o Código de Boas Práticas Científicas da FAPESP visa evitar a reprodução de material científico de baixa qualidade.
“Muitas vezes não se trata de algo intencionalmente errado, mas de algo produzido sem a devida checagem, sem o devido cuidado. Essas boas práticas mostram que, também no campo da ciência, é preciso que tenhamos o cuidado de não usar da autoridade que o conhecimento confere para encobrir os problemas. Não tenho dúvidas de que muito do que discutimos aqui tem a ver com mediações da vida em sociedade. E o palco para discutir isso é o da política. Embora tenha se tornado uma palavra horrorosa nos tempos em que vivemos, a política, desde a Grécia antiga, é o exercício que possibilita mediar as diferentes visões”, disse.