Pular para o conteúdo

Por que é tão difícil combater a crença em fake news, segundo a psicologia social

Publicado na Política na Cabeça

Você já tentou desfazer a crença de alguém em uma fake news? Não foi nada fácil, não é mesmo? Meu palpite é que, em ao menos parte das vezes que tentou, principalmente quando a pessoa não era muito próxima, as reações com as quais se deparou foram no mínimo estranhas. E isso quando não simplesmente te ignoraram. Quando contrapomos fake news compartilhada por alguém, mesmo quando oferecemos a informação correta a partir de uma fonte com credibilidade, em geral, encontramos resistência da pessoa em admitir que está errada. Por que isso acontece? Esse traço do comportamento humano é conhecido há um bom tempo pela ciência e por trás dele está um fenômeno que a psicologia social chama de dissonância cognitiva.

Conhecendo o fenômeno e o conceito científico

Na primeira publicação da série sobre o tema aqui no blog (leia aqui), vimos que as pessoas acreditam em fake news porque, no fundo, há algo na informação falsa que já acreditavam previamente. Tendemos a buscar e a privilegiar informações condizentes com nossas crenças preexistentes. A esse fenômeno a psicologia social chama de viés de confirmação. Já quando provamos que determinada informação que uma pessoa acredita e compartilha é falsa, disparamos nela a dissonância cognitiva.

Nossas emoções influenciam nossa forma de pensar.

A dissonância cognitiva pode ser definida como o mal-estar psicológico que sentimos quando temos valores ou crenças em contradição. Essa tensão psicológica é disparada quando nos deparamos com evidências que contradizem qualquer crença preestabelecida. Um exemplo bastante claro disso é quando alguém que crê em uma fake news tem sua crença confrontada com a informação verdadeira. Quando isso acontece, a pessoa passa a ter duas cognições dissonantes em sua mente, a crença anterior e a nova informação, daí o fenômeno ter sido denominado “dissonância cognitiva” por seu criador, o psicólogo social Leon Festinger. A história da primeira observação científica desse fenômeno e a criação do conceito a ele relacionado é das mais curiosas.

E o disco voador não veio buscar os Seekers

Na década de 1950, em Chicago, havia uma seita chamada The Seekers que acreditava piamente que um dilúvio destruiria a Terra. A líder da seita alegava ter recebido uma mensagem do planeta Clarion de que um disco voador viria buscar o grupo antes da gigantesca inundação, prevista para acontecer antes do amanhecer do dia 21 de dezembro de 1954. Por isso, os seguidores da seita deixaram empregos, separam-se dos cônjuges e abriram mão de seus bens.

Fingindo serem adeptos da seita, Festinger e membros de sua equipe de pesquisadores conseguiram se infiltrar no grupo para estudá-lo. Em seu livro When Prophecy Fails [1], Festinger relata a reação do grupo quando, na madrugada do dia 21, enfim ficou claro, imagine só a leitora, que o disco voador não viria. Assim, a dissonância cognitiva se instalou com força na mente dos Seekers. Sua crença estava diante de uma poderosa evidência contrária: eles não seriam salvos, naquela noite, pelos (suponho que simpáticos) habitantes de Clarion.

Os Seekers bem que esperaram, mas a carona não veio.

Segundo Festinger, quando a dissonância ocorre, a pessoa adota alguma estratégia para reduzir o desconforto psicológico gerado [2]. Uma saída possível é alterar a crença inicial, sem dela abrir mão, para que a contradição com a nova evidência seja eliminada ou reduzida. E eis que então, às quase 5h da manhã, em uma espécie de psicografia, a líder dos Seekers recebe outra mensagem afirmando que o pequeno grupo ali reunido tinha emitido tanta luz que o Deus da Terra decidira salvar o mundo da eminente destruição.

Dissonância cognitiva e avanços da neurociência

O que o quinto psicólogo mais citado do século XX, Leon Festinger, não poderia imaginar é que, no século seguinte, cientistas começariam a desvendar o que ocorre no nosso cérebro durante a situação de dissonância cognitiva que ele e seu grupo de pesquisadores tão bem captaram no nível do comportamento humano. Com o avanço das técnicas de coleta de imagens das estruturas e funcionamento cerebrais, a neurociência cognitiva vem dando os primeiros passos no sentido de descobrir as bases neurais de diversos traços de comportamento.

Córtex cingulado anterior do hemisfério esquerdo do cérebro (em vermelho). Créditos: BodyParts3D / Anatomography.

Em um estudo de 2009, pesquisadores da Universidade da Califórnia induziram participantes ao estado de dissonância cognitiva enquanto seus cérebros eram escaneados por ressonância magnética funcional [3]. Por meio desse tipo de captura de imagens das estruturas cerebrais, é possível observar quais áreas estão mais ativas. Duas regiões neurais ativaram-se mais significativamente durante o experimento: o córtex cingulado anterior dorsal e a ínsula anterior.

A ativação do córtex cingulado anterior durante o experimento não chega a ser surpreendente, pois vários estudos prévios da neurociência já apontavam o papel dessa região em detectar e lidar com conflitos cognitivos em geral. Do ponto de vista evolutivo, trata-se de uma região mais recente do cérebro humano. Portanto, ao longo de milhares de anos, aparentemente nosso cérebro evoluiu para dar conta de processar cognições conflitantes como as que ocorrem na situação de dissonância.

Política, eleições e dissonância cognitiva 

Principalmente durante o último período eleitoral, algumas fake news nada menos que bizarras foram compartilhadas à exaustão. Um exemplo já clássico é o de que o Partido dos Trabalhadores estaria distribuindo mamadeiras eróticas em creches, informação falsa cujo vídeo foi compartilhado mais de 90 mil vezes na internet [4]. Outro exemplo, no campo ideológico oposto, foi a foto de Flávio Bolsonaro vestindo camiseta com pesadas ofensas aos nordestinos [5].

Já ficou bem claro que o compartilhamento de fakes tem tido impacto expressivo e negativo nos processos políticos no país, levantando uma nuvem de poeira sobre a jovem democracia brasileira. Durante a semana  de definição do processo de impeachment de Dilma Rousseff, por exemplo, das cinco notícias mais compartilhadas no Facebook, três eram falsas [6]. É importante combatê-las, pois vêm claramente minando o processo democrático. No entanto, as pessoas tendem a entrar em dissonância cognitiva quando comprovamos que a notícia que compartilharam é falsa. Esperamos que ajam de forma sensata e racional, mas quase invariavelmente, não é bem o que acontece.

Reduzindo o desconforto mental

Para diminuir a tensão psicológica gerada pela informação que contradiz suas crenças, as pessoas se valem de algumas estratégias possíveis. Uma das mais comuns é simplesmente banalizar a contradição. Conto aqui um causo pessoal como exemplo. Nas eleições, um amigo compartilhou foto da candidata Manuela D’Ávila vestindo camiseta com os dizeres “Jesus é travesti”. Quando apontei, com link de checagem de fatos [7], que era fake news, em vez de ao menos admitir, ouvi apenas algo como: “tudo bem, a turma dela pensa assim mesmo”. É possível que a leitora já tenha passado por algo semelhante. Esse é aquele momento em que você pensa que a pessoa tem algum problema cognitivo ou surtou. Na verdade, cientificamente falando, é apenas o cérebro dela buscando diminuir o mal-estar gerado pela dissonância da maneira mais simples: banalizando a contradição entre sua crença em algo fake e a informação correta.

Outra estratégia comum para se reduzir a dor gerada pela dissonância é o raciocínio motivado. Nesse caso, buscando invalidá-la, parte-se para o exame crítico da nova informação que confronta a crença preestabelecida. Quanto mais intelectualmente sofisticado for seu interlocutor, mais a leitora observará esse fenômeno em seu comportamento. Para se combater as fake news com alguma eficácia, é muito importante conhecer também esse conceito da psicologia social. É o que faremos na nossa próxima e última publicação da série aqui no site.

Referências

  1. FESTINGER, Leon; RIECKEN, Henry W.; SCHACHTER, Stanley. When Prophecy Fails: A Social and Psychological Study of a Modern Group that Predicted the Destruction of the World. University of Minnesota Press, 1956.
  2. FESTINGER, Leon. A theory of cognitive dissonance. Stanford University Press, 1957.
  3. VEEN, Vicent v.; KRUG, Marie K.; SCHOOLER, Jonathan W.; CARTER, Cameron S. Neural activity predicts attitude change in cognitive dissonance. Nature Neuroscience, 16 de set. de 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1038/nn.2413>. Acesso em: 4 de jan. de 2020.
  4. SCHULTZ, Adriane. É fake imagem que mostra Flávio Bolsonaro com camiseta com ofensas a nordestinos. G1, 05 de out. de 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/10/05/e-fake-imagem-que-mostra-flavio-bolsonaro-com-camiseta-com-ofensas-a-nordestinos.ghtml>. Acesso em: 4 de jan. de 2020.
  5. ‘Mamadeiras eróticas’ não foram distribuídas em creches pelo PT. Aos Fatos, 28 de set. de 2018. Disponível em: <https://aosfatos.org/noticias/mamadeiras-eroticas-nao-foram-distribuidas-em-creches-pelo-pt/>. Acesso em: 4 de jan. de 2020.
  6. SENRA, Ricardo. Na semana do impeachment, 3 das 5 notícias mais compartilhadas no Facebook são falsas. BBC, 17 de abr. de 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160417_noticias_falsas_redes_brasil_fd>. Acesso em: 4 de jan. de 2020.
  7. LOPES, Gilmar. Manuela D’Ávila apareceu usando camiseta com os dizeres “Jesus é Travesti”? E-farsas, 03 de out. de 2018. Disponível em: <http://www.e-farsas.com/manuela-davila-apareceu-usando-camiseta-com-os-dizeres-jesus-e-travesti.html>. Acesso em 4 de jan. de 2020.
Davi Carvalho

Davi Carvalho

Cientista social e doutorando em Ciência Política na Unicamp, com estágio doutoral no Center for Brain, Biology and Behavior (CB3) da Universidade de Nebraska-Lincoln, EUA. Acha que os sapiens precisam estudar a si mesmos mais a fundo, pois se compreendem muito mal. Adora cachorros, mas acha os felinos os bichos mais majestosos da Terra.