Escrevo o presente texto em anonimato por dois motivos: primeiro, não desejo me referir apenas às Instituições com as quais tive vínculo, mas discursar sobre um fenômeno que atinge (quase) todo o sistema de ensino privado no Brasil; segundo, o faço em respeito a colegas que ainda se encontram vinculados a alguma IES, e com receio de que possam ser submetidos a algum tipo de retaliação.
Tive, como muitos docentes que hoje atuam em universidades privadas no Brasil, educação majoritariamente pública (graduação, mestrado e doutorado). Na universidade, conheci a infraestrutura deficiente das salas de aula, a falta de recursos para a pesquisa e a constante dependência da “boa vontade” dos governos federal e estadual. Em contraposição, era pungente o esforço que meus professores faziam para ensinar o valor do tripé que sustentava a nossa educação (ensino, pesquisa e extensão).
Na universidade, aprendi que a construção de um profissional demanda muito mais do que o aprendizado de técnicas, procedimentos, atribuições e fundamentos da profissão. Ser formado por uma IES pública significava atuar com introspecção, questionar a própria prática e sempre medir seu impacto na diminuição das desigualdades sociais. O indivíduo formado por uma Instituição pública torna-se, em poucas palavras, um agente público.
Inadvertidamente, decidi aventurar-me na docência em IES privadas, com a esperança de que lá seria eu também um instrumento de transformação na vida de muitos, assim replicando o trabalho de meus mestres. Logo cedo, fiquei surpreso ao descobrir que minha trajetória pelos corredores da educação privada não espelhava o mundo que vivi na universidade pública.
O primeiro monstro criado por essas Instituições é um distorcido tripé educacional, que se mantém oculto por volumosos investimentos em propaganda. No ensino, a Pedagogia é maquiada de “metodologia ativa” para diminuir a necessidade de docentes especializados; tudo é simplificado e roteirizado, não pelo bem do entendimento, mas de maneira a facilitar a demissão de professores que eventualmente se especializam e passam a custar mais caro para a empresa. Basta emprestar seu ouvido a uma sala de professores ao final de cada semestre para perceber o receio compartilhado: começa a temporada de demissões; mais antigos e especializados (Doutores e Mestres) primeiro, depois aqueles que não souberam obedecer a um modelo pedagógico desonesto, criado para facilitar a aprovação de alunos não qualificados e diminuir a evasão escolar.
Na extensão, os investimentos são mínimos e os projetos desenvolvidos por professores cansados, que chegam a trabalhar 60 horas por semana (40 delas em sala de aula) apenas para atender às demandas de suas 8 a 10 turmas semestrais (500-600 alunos). A regra é gastar o mínimo necessário e extrair o máximo de visibilidade positiva para a Instituição. Não exagero quando digo que 50% das atividades desenvolvidas pelos docentes nas IES privadas não são remuneradas. Muitas das tarefas sem remuneração são obrigatórias (planejamento de aulas, aplicação e correção de provas, testes, atividades, projetos…), mas também existem aquelas de caráter “voluntário” (cursos, reuniões, eventos…). Nas voluntárias, “só vai se quiser”, isso se você não se preocupa em perder o emprego por “baixa produtividade”. A ideia é, como em qualquer negócio, gerar o maior “bang for the buck” possível. No dicionário da universidade privada, lucrar vem antes de educar.
A situação da pesquisa é ainda mais frágil, nada é investido. Docentes não possuem carga horária disponível para desenvolver projetos científicos, participar de congressos ou mesmo orientar. Essa realidade é flagrante também para os alunos, sabe-se que pesquisa “é feita na pública”. Uma forma de disfarçar esse problema são os incentivos pagos aos professores que, por esforço próprio, desenvolvem pesquisas em colaboração com as IES públicas. O sistema funciona basicamente assim: a Universidade paga uma certa quantia em dinheiro por artigo científico publicado em revistas de boa reputação, desde que o nome da Instituição privada seja inserido na lista de afiliações do docente. Parece uma boa ideia, mas não se esqueça que a IES não pagou ao professor por horas trabalhadas em sua pesquisa ou sequer contribuiu com recursos para seu desenvolvimento. No fim das contas, “compra-se carne a preço de banana”.
Deixo claro que não estou “apontando o dedo” para todas as IES privadas, afinal, não tenho tantos dedos assim. Existem bons exemplos de Universidades que se esforçam para gerar um ambiente sustentável e um nível satisfatório de excelência acadêmica, mas é improvável que sobrevivam por muito ao modelo predatório dos grupos educacionais, que massificam a educação enquanto diluem a qualidade. Frequentemente, argumenta-se que o aumento no número de pessoas com acesso ao ensino superior democratiza a participação no mercado de trabalho especializado. Essa é, de fato, uma premissa sonora, uma que não se sustenta frente a escancarada escassez de vagas, ou frente ao crescimento logarítmico da informalidade no país.
Educar-se é um processo de destruição dos preconceitos e construção de paradigmas, é aprender a viver uma vida examinada. A educação tem seu próprio tempo, e não deve ser apressada pela ganância.