Por Pablo G. Pérez González e Patricia Sánchez Blázquez
Publicado no El País
“As estrelas regem nossa condição”. Com essa citação do Rei Lear de Shakespeare, a astrônoma britânica Margaret Burbidge, que faleceu em 5 de abril de 2020 aos 100 anos de idade, iniciava um dos artigos científicos mais relevantes do século passado, na qual ela deu uma resposta astrofísica à eterna questão filosófica: de onde viemos?
Se perguntássemos a um médico ou um biólogo, eles nos diriam que o corpo humano é composto de água, proteínas, lipídios, DNA, RNA… já para uma física como Eleanor Margaret Burbidge, é mais interessante falar sobre entidades mais básicas e perguntar sobre os átomos que compõem o corpo humano e o Universo. Os pulmões, o coração, os músculos, os ossos… tudo é basicamente uma combinação de 4 elementos, embora não exatamente os da filosofia grega. O que domina é o oxigênio, que responde por 65% da nossa massa, seguido pelo carbono, que contribui com 18%, hidrogênio 10%, nitrogênio 3% e, em seguida, até quase vinte outros elementos considerados essenciais para a nossa vida, além de muitos outros que, em princípio, não precisamos. Se esses elementos fossem rearranjados em diferentes partes do corpo, a cabeça e o tronco seriam oxigênio, as pernas seriam carbono, os braços seriam hidrogênio e todos os outros elementos teriam uma massa um pouco maior que as mãos e os pés. Curiosamente, se não olharmos para a massa, mas para o número de átomos, o hidrogênio é o fator dominante, assim como no Universo em geral, que representa quase 2 dos 3 átomos em nosso corpo (no Universo, 90% são átomos de hidrogênio).
De onde vêm todos esses elementos? De onde viemos? Fazemos essa pergunta há milênios e, há mais de 70 anos, houve um grande debate científico sobre o assunto, paralelamente ao desenvolvimento da Teoria do Big Bang e aos grandes avanços na física atômica e nuclear, tristemente ligados ao desenvolvimento bélico. A publicação liderada por Margaret Burbidge, conhecida como artigo B2FH pelas iniciais de seus autores, apresentou, em 108 páginas, uma compilação de avanços no estudo dos mais de 1.000 núcleos dos 102 elementos conhecidos até aquele momento (hoje temos 118 elementos e mais de 3.300 “nuclídeos”). Somando o pouco que se sabia sobre como as supernovas se formam e quanto progresso havia sido feito na determinação da abundância de isótopos como os de urânio (utilizados em bombas; o artigo menciona, por exemplo, resultados de testes com armas nucleares nas Ilhas Bikini, dessa vez utilizadas para fins pacíficos), Margaret Burbidge e seus colaboradores apresentaram as bases da teoria da origem dos elementos e da história da matéria atualmente aceitas.
Voltando à composição do corpo humano, hoje sabemos que nossa origem é dupla. A maioria de nossos átomos, que são hidrogênio, formaram-se no início dos tempos, logo após o Big Bang, na chamada nucleossíntese primordial, estudada em detalhes por outros 2 autores do artigo B2FH, William Fowler (que ganhou um Prêmio Nobel por seu trabalho sobre reações nucleares em estrelas) e Fred Hoyle (famoso por criar o nome de Big Bang, embora tenha feito isso de maneira depreciativa). Alguns desses átomos de hidrogênio podem ter sido parte de estrelas, mas é pouco provável, por isso é realmente fascinante pensar que mais de 60% dos átomos que compõem nosso corpo foram criados nos primeiros minutos após o Big Bang. Não é menos impressionante saber, graças a Margaret Burbidge, onde, a que velocidade e quando os elementos e isótopos que compõem tudo o que vemos ao redor foram formados. A origem é a fusão dentro das estrelas e processos muito mais enérgicos e rápidos em explosões de supernovas ou mesmo no espaço quase vazio entre estrelas e galáxias.
Ainda hoje, o estudo da formação de elementos é um dos principais assuntos da astrofísica. Por exemplo, muito recentemente, detectamos com o radiotelescópio ALMA os primeiros átomos de oxigênio formados no Universo, que já existiam 13,3 bilhões de anos atrás. Ou seja, uma fração não desprezível da água que compõe nosso corpo pode ser formada a partir de hidrogênio e oxigênio primordiais criados nos primeiros 5% da vida do Universo.
Margaret Burbidge tem sido uma das figuras mais proeminentes da astrofísica, pelo artigo mencionado e também por medir como as estrelas se movem dentro das galáxias (o que comprova a existência de matéria escura) ou para o estudo de quasares, além de construir um instrumento para o Telescópio Espacial Hubble. Por tudo isso, ela teve que lutar contra regulamentações machistas, como a que a impedia de obter tempo de observação em telescópios profissionais, que ela teve que acessar com pedidos assinados por seu marido, também físico. Em uma ocasião, na década de 1970, ela devolveu um prêmio criado especificamente para as mulheres por ser discriminatório e perguntou “quantas vezes as mulheres haviam sido rejeitadas para a ocupação de cargos de ensino”. Sua vocação e seu legado para todos estão resumidos no que ela disse ao receber a Medalha Nacional de Ciência nos Estados Unidos: “O Universo sempre nos trará surpresas”, “estou ciente de que precisamos esperar o inesperado”.