A crença no criacionismo é uma questão séria nos EUA. E, no Brasil, o que não faltam são tentativas de tornar isso uma questão séria aqui também. Recentemente, Bill Nye aceitou fazer parte de um debate promovido por Ken Ham, criador do Museu Criacionista, lá nos EUA. Muita gente chiou, céticos como Richard Dawkins criticaram a decisão de Nye de debater sobre isso, alegando que aceitar o debate é validar algo que não tem validade, e por aí vai. Eu fiz duas análises sobre o debate (que você pode ler, se quiser, aqui e aqui) e, embora eu acredito que entenda especificamente os motivos pelos quais Bill Nye aceitou o debate, eu também entendo as críticas a ele. Afinal, debater sobre criacionismo X evolução é um absurdo maior do que é possível conter neste texto. Mas, para efeitos didáticos, espero conseguir ser claro nos pontos principais dos quais tratarei aqui. O texto vai ser longo, mas ainda assim é um resumo do que poderia ser dito a esse respeito.
Mas primeiro…
É importante esclarecer que, neste texto, quando falo sobre o debate criacionismo X evolução, estou me referindo à tentativa de incluir o criacionismo nas aulas de ciência das escolas como alternativa à evolução por seleção natural. Não estarei discutindo aqui a validade do criacionismo como explicação religiosa, teológica, artística ou filosófica. É preciso que isso fique bem claro para quem pretende ler o texto a partir daqui.
1. Ciência: conceitos, contextos e preceitos
Antes de falar sobre o assunto principal, vamos conceituar ciência. A palavra “ciência” vem do latim e significa “conhecimento”. Originalmente, não se referia apenas ao conhecimento científico, mas ao termo conhecimento de uma forma geral. No entanto, este não é mais o caso.
Atualmente, o termo ciência se refere a todo conhecimento adquirido através do método científico. Esta distinção é importante, porque não podemos usar o termo ciência, hoje em dia, da mesma forma que ele era usado há 300 anos atrás, ou corremos o risco de relativizar demais o termo e chegar a argumentos absurdos. Ninguém além de argumentadores que adoram sofismas vai ligar a palavra ciência ao seu conceito original hoje. Eu comento isso porque, naquele debate que citei no começo, Ken Ham alega que a palavra ciência foi “sequestrada” pelos cientistas (ou, como ele chama, pelos “Filósofos naturais”).
E, de certa forma, ele não está errado. Existem várias palavras que, ao longo do tempo são “sequestradas” culturalmente e adquirem outro sentido. Como a palavra DEMÔNIO, por exemplo. Originalmente, demônio vem de daimon, palavra grega que significa, na verdade, divindade/espírito (Uma palavra relacionada a essa é eudaimonia, que é traduzido como “felicidade”, mas etimologicamente significa “espírito bom”), que não possuía conotação intrinsecamente ruim. Mas ninguém em sã consciência diria para alguém, “que os bons demônios estejam com você” hoje em dia, porque soaria estranhíssimo.
Eu poderia dar centenas de outros exemplos, é claro (como “espírito”, que vem do latim que significa “sopro, respiração” e “magia”, que vem do persa e significa “sabedoria”). O que importa aqui é: quando se usa a palavra “ciência” nos dias de hoje é com apenas um significado: o tipo de conhecimento adquirido através do método científico.
O que me leva a dizer que…
2. Não existe ciência sem o método científico
Ciência é o método e o método é a ciência. Não há como por de forma mais simples que essa. Se não usa o método científico, não é ciência. É claro que o método científico não é tão rígido como se pensa, mas ele também não é tão flexível a ponto de perder sua identidade.
Dito isso, outra coisa que é importante esclarecer é: não existem objetos de estudo mais científicos ou menos científicos. Existe o que é ciência, e o que não é. Você pode argumentar sobre a validade da ciência, você pode argumentar sobre a confiabilidade de uma evidência, ou da forma como o método foi utilizado, mas não pode argumentar o FATO de que tem coisas que são ciência, outras que não são. Assim como você não pode argumentar que tem coisas que são pedra, e outras coisas que não são, não importa o juízo de valor que você faça da pedra.
Esclareço isso pelo seguinte motivo: não é porque a arqueologia (para dar um exemplo) investiga o passado que ela é menos científica. As evidências podem ser menos confiáveis e mais sujeitas à interpretação subjetiva por conta da natureza da investigação (investigar o passado é bem mais complicado que investigar o presente, acho que isso é óbvio), mas o método não está em discussão. Se questionarmos o método usado, por exemplo, em arqueologia, temos que questionar o método em todas as áreas de estudo, porque o método em geral é o mesmo.
E, olha só, o método é sim, questionado, pela própria ciência. Ao contrário do que se pensa, a ciência não nasceu pronta (se fosse o caso, ela não seria ciência, seria outra coisa): um dos seus principais aspectos é justamente estar sempre se aperfeiçoando. E o método científico também. No momento em que algum aspecto não funcionar, ou que um aspecto melhor for proposto, eventualmente o método mudará. O método científico não é engessado. Ele, no máximo, se mantém relativamente inalterado enquanto funciona.
Ao contrário do que os leigos muitas vezes sugerem, ciência não é dogma. O objetivo da ciência não é se manter inalterado, pelo contrário; é sempre estar descobrindo coisas novas e aperfeiçoando nossa interpretação da realidade.
Muito menos ciência pode ser comparada com religião, o que me faz lembrar de dizer…
3. Esqueça religião e fé! Esta discussão não tem NADA a ver com nenhuma delas
Vamos aos fatos:
– O cracionismo, seja em sua forma original, na sua forma de criacionismo “científico”, seu derivado Design Inteligente (sim, eu sei que não é “a mesma coisa”, mas sabemos de onde o DI veio) ou outras variantes, possui a mesma base, declarada ou não: A Bíblia. E nenhum deles é confirmado INDEPENTENTEMENTE (guardem esta característica, pois ela é importante). Não há evidências físicas respeitáveis que sustentem as principais alegações (entre elas a de que o mundo tem apenas 6 mil anos). Ou seja, não passa nos testes requeridos para uma hipótese ser considerada cientificamente válida.
– A evolução pela seleção natural, normalmente simplificada grosseiramente por “teoria da evolução”, diferente do que se pensa não é uma “teoria do Darwin”. Bem, pelo menos não é mais SÓ dele. Muito foi agregado por diversos outros cientistas ao longo do tempo (entre eles Richard Dawkins, que em O Gene Egoísta, propôs uma explicação sobre como o mecanismo da seleção natural funciona em nível genético) e, desde então, os principais pontos a respeito da evolução foram confirmados por uma série de meios diferentes, de registros fósseis a análises de DNA. Diversos testes INDEPENDENTES confirmaram os principais aspectos da seleção natural, que foram os aspectos da teoria que continuam sendo mantidos. Podemos ter uma prova definitiva da seleção natural entendendo o por quê as crianças precisam tomar vacinas contra os mesmos vírus todos os anos.
Quando falamos de criacionismo “contra” a evolução, não estamos falando de religião. Pode ser que os criacionistas estejam falando de religião, mas não os cientistas. E nesse ponto reside uma diferença fundamental nessa questão.
Você pode ver o criacionismo de duas formas:
A primeira, religiosa: Você é cristão e acredita no criacionismo porque acredita na literalidade da Bíblia. Neste caso, o criacionismo e a evolução são duas coisas paralelas e que não podem ser comparadas: um é religião, outro é ciência, e um não se mete na vida do outro. Fim da discussão.
A outra forma de ver é pensar que o criacionismo é cientificamente válido, o suficiente para rivalizar com a seleção natural e ser ensinado nas aulas de ciências. Neste caso, o criacionismo NÃO É religião; é pseudociência, uma vez que ele não passa no escrutínio do método científico.
Esta diferença é fundamental porque, quando os cientistas combatem o criacionismo, eles estão na verdade combatendo o criacionismo pseudocientífico, ou seja, o criacionismo que quer se achar ciência; O criacionismo religioso, aquele que pode ser ensinado nas igrejas (se é que ele ainda existe), está fora do domínio da ciência.
Esta distinção é importante porque muitos defensores do criacionismo “científico” levianamente fazem parecer frequentemente que este é um embate religião X ciência. NÃO É. É um embate ciência X pseudociência.
Bem, estes argumentos por si só já deveriam ser o bastante, mas já que chegamos até aqui e eu tive todo o trabalho de dar explicações paralelas primeiro, acho que posso completar dizendo que…
4. O debate entre Criacionismo X Evolução é absurdo porque são coisas que NÃO PODEM SER COMPARADAS
Você compararia um micro-ondas com um par de chinelos? Um chuveiro com um computador? Um martelo com um guarda-chuva? Se você está achando estas comparações bizarras, saiba que é basicamente isso que as pessoas fazem quando querem comparar o criacionismo e a seleção natural. Eis o porquê:
– O criacionismo, em sua forma mais básica, é uma tentativa de explicar as origens do planeta e da vida na terra.
– A seleção natural é a explicação sobre como as espécies mudam como tempo e vão se diversificando. Embora a conclusão a que se chega a partir dela é a de que todas as espécies existentes hoje, dos humanos às bactérias, possuem um mesmo e único ancestral em comum em algum ponto do passado remoto, a seleção natural serve para explicar porque existem tantas espécies diferentes de seres vivos. A teoria não se propõe a explicar nem a origem do mundo, muito menos a origem dos seres vivos. Isso é assunto para outras áreas de estudo da ciência.
Ou seja, quando você compara o criacionismo com a seleção natural, você está comparando conceitos que se propõem a explicar COISAS DIFERENTES. Por isso é absurdo querer colocar o criacionismo como uma “alternativa” da evolução, já que elas não são comparáveis entre si, MESMO que o criacionismo fosse válido cientificamente.
Eu sei que, para muitas pessoas, falar sobre este tema por si só já é um absurdo e não deveria ser constantemente revisitado. E eu concordo em partes. Mas há muita agenda fundamentalista por trás desta discussão, e as ferramentas destes fundamentalistas são principalmente a distorção de questões relacionadas à ciência, a relativização de termos, a confusão proposital dos conceitos e a subversão do debate para um debate “contra a religião”.
O que está longe de ser o caso, tanto é que existem diversos cientistas que são, de fato, cristãos, praticantes inclusive (o que prova que não é preciso ser ateu para entender porque a seleção natural é um fato científico), e não têm problema nenhum em ver porque é um absurdo querer ensinar o criacionismo nas aulas de ciência. Porque eles sabem que não existe debate entre ciência e religião, e sim entre ciência e pseudociência.
Por estas razões, achei que valia falar sobre o assunto mais uma vez, se não de forma definitiva, pelo menos da forma mais didática que eu consegui. Se você leu tudo até aqui, espero que eu tenha sido claro em minha exposição.