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O veneno da cobra cuspideira não evoluiu para matar

Por Mike McRae
Publicado na ScienceAlert

Como papai costumava dizer: se você vê-la se contorcer e mostrar o dentes, saia da frente. Os humanos transmitem sabedorias semelhantes desde que nos conhecemos por gente, dando-nos um motivo saudável (e, às vezes, pouco saudável) para nos afastarmos das cobras.

No entanto, o fato das picadas de cobra machucarem é geralmente um acidente da natureza – virtualmente todas as espécies de cobra desenvolveram a capacidade de injetar veneno para capturar a presa, em vez de servir de mecanismo de defesa. Mas há exceções à regra – novas pesquisas mostram que algumas cobras realmente desenvolveram seu veneno especificamente para afastar predadores em potencial, incluindo nós. E é terrivelmente doloroso por um bom motivo.

O estudo de uma equipe internacional de cientistas demonstra um tipo único de estratégia de envenenamento que evoluiu em, pelo menos, três ocasiões diferentes.

Cobras cuspideiras e hemachatus haemachatus são serpentes intimamente relacionadas e capazes de esguichar seu veneno longe o suficiente para um ser humano desavisado sair de perto.

Os efeitos não são agradáveis. Produtos químicos no veneno da cobra cuspideira corrói a córnea, causando dor intensa e – em doses altas o suficiente – cegueira.

Presas que são como pistolas d’água e um veneno cegante não são exatamente adequados para conseguir uma refeição rápida, então os pesquisadores viram isso como uma oportunidade perfeita para investigar a história evolutiva dessa característica particularmente incomum.

As cobras desenvolveram a capacidade de injetar veneno entre 60 e 80 milhões de anos atrás. Desde então, milhares de espécies da superfamília Colubroidea ajustaram a receita original e modificaram suas doses para atender às suas necessidades dietéticas.

Usando fósseis como calibração, os pesquisadores usaram técnicas de datação molecular nos genomas de uma série de cobras cuspideiras verdadeiras (espécies Naja), najas cuspideiras (Hemachatus haemachatus) e parentes não cuspideiros (Walterinnesia aegyptia e Aspidelaps scutatus).

Os resultados sugerem que as cobras-cuspideiras-africanas desenvolveram o hábito de esguichar água nos olhos de possíveis ameaças entre 6,7 e 10,7 milhões de anos atrás. Seus parentes asiáticos seguiram o exemplo 4 milhões de anos depois.

Najas cuspideiras eram difíceis de definir, mas devem ter desenvolvido sua habilidade desde que se separaram de outras najas cuspideiras, há mais de 17 milhões de anos.

Uma análise de seus venenos revelou que sua composição tinha mais em comum do que parentes que não cuspiam, com exceção da receita mais neurotóxica pertencente a Naja philippinensis.

Os efeitos agonizantes da química do veneno também foram testados usando tecido vivo e amostras de nervos.

“Testamos como os componentes do veneno afetavam os nervos sensíveis à dor e mostramos que o veneno da cobra cuspideira é mais eficaz em causar dor do que os venenos das que não cospem”, disse a neurofarmacologista Irina Vetter da Universidade de Queensland, na Austrália.

Somados, os resultados implicam que cobras cuspideiras e najas cuspidiras reaproveitam seu veneno e presas de forma independente, transformando-se em mecanismos de defesa capazes de afastar grandes predadores.

E quem eram esses grandes predadores em cada caso? Podemos apenas supor, mas os pesquisadores argumentam que existem algumas boas razões para pensar que nossos ancestrais se encaixam no padrão, citando evidências de cobras influenciando a neurobiologia e o comportamento dos primatas.

Os humanos e os chimpanzés divergiram mais ou menos na mesma época em que as cobras-cuspideiras-africanas desenvolveram a característica. Também podemos identificar cobras potencialmente venenosas e atacar de uma curta distância, dando vantagem a cuspida como um meio adequado de distribuição de veneno.

Claro, tudo é especulação baseada em evidências vagamente circunstanciais neste ponto, mas as ideias justificam uma exploração mais profunda.

“É intrigante pensar que nossos ancestrais podem ter influenciado a origem dessa arma química defensiva em cobras”, disse o especialista em veneno de cobra Nick Casewell da Universidade de Liverpool, Reino Unido.

Ironicamente, ao compreender a relação evolutiva entre as toxinas e nossos próprios corpos, estamos melhor posicionados para identificar mecanismos potenciais para novas classes de medicamentos.

As propriedades analgésicas do veneno de cascavel, por exemplo, podem trazer alívio a milhões de pessoas que vivem com dores neuropáticas.

“Toxinas causadoras de dor provindas de venenos animais podem ser ferramentas úteis para nos ajudar a entender a sinalização da dor em um nível molecular e estão nos ajudando a identificar novos alvos para analgésicos futuros”, disse o biólogo molecular Sam Robinson da Universidade de Queensland.

É hora de darmos uma trégua com a cobra cuspideira. Manteremos distância e apreciaremos suas habilidades à distância.

Esta pesquisa foi publicada na Science.

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.