Por Fahad Zuberi
Publicado no Outlook
“Nunca seja um espectador da injustiça ou estupidez. O túmulo fornecerá muito tempo para o silêncio”. E tendo vivido fiel ao que disse por sessenta e dois anos, Christopher Eric Hitchens permaneceu fazendo de tudo, menos ser um espectador silencioso. Não seria exagero afirmar que uma voz tão forte e polêmica como a de Hitchens não se manifestou ao mundo desde sua morte em 2011. Neste ano¹, em 13 de abril, marcou o 70º aniversário de nascimento deste célebre ensaísta e crítico de nosso tempo – Hitch, como era carinhosamente chamado.
A brilhante combinação de incredulidade e integridade, de racionalidade e prosa, e de conhecimento e força na escrita que Hitch possuía é algo raro nas arenas da crítica política e cultural de hoje.
Hitch era um autoproclamado antiteísta – não simplesmente alguém que não acreditava em Deus, mas também que se opunha a esse conceito totalitário. Era um cruzado da racionalidade como Thomas Paine, Bertrand Russell, Demócrito, Omar Khayyam e Lucrécio – seus heróis. O trabalho de Hitch contribuiu para um legado de descrença e ceticismo, alcançando seu apogeu no livro “Deus não é grande – Como a religião envenena tudo”.
Foi membro ativo dos Socialistas Internacionais nos seus dias de estudante em Oxford – uma época que ele, enquanto descrevia sua juventude, chamava de “notória”. Seu desligamento com as organizações de esquerda começou nos anos 90, depois que ele criticou ferozmente a esquerda por sua posição contra Salman Rushdie durante a polêmica dos “Versos Satânicos”.
Ele se opôs à doutrina do Islã sem apologia – chamando-a de “violenta e perversa” e categorizando-a como uma das ameaças mais perigosas ao século XXI, uma vez que faz afirmações amplas e excludentes de si mesma como sendo a última e única religião verdadeira, rejeitando o pluralismo e sendo intolerante a qualquer crítica ou sátira. Ele opinou que, embora um muçulmano devoto tenha todo o direito de aderir rigorosamente à doutrina, sua reivindicação de direito de fazer os outros aderirem “oferece o aviso mais claro possível e prova de uma intenção agressiva”.
Embora se opusesse ao Islã radical por terrorismo, ele também defendeu os direitos dos muçulmanos bósnios durante um dos piores genocídios da comunidade na história da humanidade. Os princípios, para Hitch, era supremo, e ele nos ensinou que era possível acreditar em uma ideologia sem aderir aos binários políticos de esquerda e direita.
Como sua escrita era histórica e filosoficamente referenciada, Hitch foi implacável em suas opiniões. Para ele, a crítica aos supersticiosos não exigia nenhum véu de respeito. Dentre os incontáveis ataques à teocracia, destaca-se seu debate contra o movimento “A Igreja Católica é uma Força do Bem no Mundo”.
Ele fez a Igreja lembrar de seu genocídio em Ruanda e levantou questões abertamente sobre o cardeal Bernard Francis Law – o arcebispo de Boston responsável por proteger estupradores de crianças. Hitchens em seu humor supremo, afirmou que a Igreja Católica não deixa pedra sobre pedra para provar que estão enraizados em seu lema de “não deixar nenhum filho para trás” e que os filhos “já tiveram o ‘cuidado sacerdotal’” e agora devem ser mantidos longe da Igreja. Envolvida em tragédia e consequentemente em humor negro, essa provocação que desprende a oposição de todo respeito e liberta o crítico de qualquer apologia, é algo raro, hoje, em nosso discurso.
No entanto, esse crítico livre também costumava ser um camarada solitário. Hitchens foi provavelmente o homem mais desprezado depois de escrever “A Posição Missionária: Madre Teresa em Teoria e Prática”. O livro, por mais espirituoso que fosse com seu título, foi igualmente brutal com sua crítica, como Hitchens colocou: “provavelmente o ser humano menos criticado de todos os tempos”.
Ele passou a servir como Advocatus Diaboli (Advogado do Diabo) e testemunhar contra a canonização de Madre Teresa no Vaticano. Outras figuras públicas que entraram na mira de suas críticas incluem George W. Bush, Ronald Reagan, Henry Kissinger, Bal Thackeray e a muito celebrada princesa inglesa Diana. Os ataques de Hitch a essas figuras públicas resumem uma cultura de refutação dos cultos à personalidade e resistem à criação de outros mais novos – algo de que o mundo atual precisa seriamente. Hitch escreveu não para ser querido ou amado, mas para provocar e criticar, e para abalar e questionar.
Hitch relatou alguns dos momentos mais importantes da história do século XX. Seja a queda do ditador romeno Nicolae Ceauşescu, a Revolução de Veludo de Praga ou a ascensão de Bhagwan Rajneesh em Pune. Hitch estava presente e escrevendo sobre esses eventos no próprio local – entre os revolucionários na Romênia, com os rebeldes clandestinos em Praga, e disfarçado de membro do Ashram em Pune.
Escrevendo para a revista Vanity Fair de Amritsar (cidade da Índia), em agosto de 1997, Hitch chamou pela televisão a destruição da Babri Masjid (mesquita), em Ayodhya, de “uma desgraça suprema”. Ele apontou para a ameaça crescente do movimento “quase fascista” e “semicriminoso” do nacionalismo hindu na Índia. Com experiência tão orgânica e horizontes tão amplos, ele poderia citar referências, como fez, começando apenas com a letra ‘B’ de todo o mundo – de Beirute a Bombaim a Belfast e Bielo-Rússia.
Em uma era de crítica política, quando o juramento de lealdade a uma determinada ideologia política, grupo ou partido – uma desgraça que reduz um crítico a um porta-voz de realizações e um apologista de delitos – ainda é comum e bastante aceita, Hitch permaneceu enraizado na causa – ficando do outro lado do palco entre amigos, família e fraternidades. Ele defendeu a libertação da Palestina com a mesma intensidade que fez contra o antissemitismo. Ele acusou os EUA de crimes de guerra com a mesma repulsa e tristeza com que tratou o regime de Saddam Hussein no Iraque. Hitchens defendeu a independência dos curdos assim como defendeu os direitos dos índios do Norte durante os ataques xenófobos a eles em Bombaim (cidade da Índia).
Hitchens é importante porque a lealdade é uma anátema (maldição) para a crítica, e a crítica política precisa do abandono de lealdades. Ele é importante porque a superstição precisa ser evitada, os direitos humanos precisam ser defendidos de maneira impenitente, os perpetradores – aquele que comete crime ou delito – precisam ser levados à justiça e os cultos à personalidade precisam ser profanados. Na voz de Hitchens, encontra-se o verdadeiro espírito de um opositor – um escritor prolífico e um orador voraz, sempre investido na busca da verdade e da justiça.
No mundo contemporâneo de Trumps e Bolsonaros, uma voz como a dele faz muita falta. Refutando a si mesmo sobre o silêncio na sepultura, Hitchens surge como uma voz de resistência que ecoa através do século XXI.
Sua figura é importante, hoje, porque o totalitarismo criou raízes na política mundial, e novas ideias totalitárias estão em ascensão. Os ataques violentos aos direitos humanos, o declínio acentuado dos valores no discurso político e a desintegração dos princípios secularistas exigem uma voz implacável. Hitchens é crucial porque sua obra resume a expressão latina “Fiat justitia ruat caelum” (Faça-se justiça, ainda que os céus caiam).
Nota
[1] O texto foi publicado em 2019. Na época, o Christopher Hitchens completava 70 anos.