Traduzido por Julio Batista
Original de Clare Watson para o ScienceAlert
Quase 40 anos atrás, o pior desastre nuclear do mundo transformou a cidade ucraniana de Pripyat e sua usina vizinha, Chernobyl, em uma zona radioativa perigosa – e surpreendentemente, décadas depois, um paraíso para a vida selvagem.
Lobos, cavalos selvagens, pássaros, bisões, alces, sapos e cães vagam entre os edifícios de concreto decadentes e as florestas circundantes do que hoje é essencialmente uma das maiores reservas naturais da Europa. Onde os humanos abandonaram, as plantas tomaram conta.
Uma nova análise genética conduzida por uma equipe internacional de pesquisadores sobre os caninos da região pode fornecer uma base para aprender como a contaminação que permeia a paisagem pode ter afetado seu DNA ao longo das gerações.
Os cientistas há muito tempo se perguntam quais efeitos décadas de exposição à radiação de baixa dose podem ter tido na vida selvagem da área.
Alguns estudos apontaram declínios acentuados nas populações de pássaros e um aumento nas mutações genéticas entre certas espécies em locais com níveis de radiação mais altos. Mas outras investigações encontraram poucas evidências de tais efeitos de radiação.
Uma questão não resolvida que contribui para a confusão é se os animais estão absorvendo pequenas quantidades de radiação persistente em níveis pouco prejudiciais ou herdando diferenças observadas de gerações anteriores que experimentaram os efeitos diretos da explosão. Ou ambos.
Considerando o fato de que os animais provavelmente entraram e saíram da zona contaminada ao longo dos anos, é claramente um experimento natural confuso – mas que ainda pode ser extremamente útil para melhorar nossa compreensão dos efeitos que a radiação tem na biologia.
Ao caracterizar populações distintas de cães que vivem em Chernobyl e arredores, este último estudo genético fornece uma base melhor para comparar as mudanças nas espécies.
Alguns desses cães podem ser descendentes de animais de estimação deixados para trás pelos evacuados, mas não está claro quantas populações permanecem ou quão diversas são essas populações, e se elas diferem de outros cães selvagens em toda a Ucrânia e países adjacentes.
“Antes que os efeitos da radiação em todo o genoma dessa população possam ser isolados de outros fatores influentes, a demografia e a história da própria população precisam ser compreendidas”, escreveram o biólogo da Universidade da Carolina do Sul, EUA, Timothy Mousseau e colegas em seu paper publicado.
Grandes mamíferos, como cães e cavalos, são de particular interesse porque os efeitos em sua saúde podem nos esclarecer sobre o que pode acontecer quando os humanos eventualmente retornarem.
A radiação continua a emanar da área agora conhecida como Zona de Exclusão de Chernobyl, que se estende por cerca de 2.600 quilômetros quadrados ao redor da usina em ruínas.
Apesar da radioatividade, o número de cães selvagens tem aumentado, levando à formação da Iniciativa de Pesquisas com Cães de Chernobyl (CDRI, na sigla em inglês), que fornece cuidados veterinários para esses cães desde 2017.
Estima-se que mais de 800 cães vivam em Chernobyl e arredores, muitas vezes alimentados por trabalhadores da usina que retornam para manter as instalações. Eles existem em três populações distintas, embora esta nova análise tenha revelado uma quantidade surpreendente de sobreposição genética e laços de parentesco entre eles.
Uma população vive na própria usina; a segunda ocupa a cidade de Chernobyl, uma área residencial abandonada a cerca de 15 quilômetros da usina; e a terceira mora a 45 quilômetros de distância, em Slavutych, uma cidade relativamente menos contaminada onde ainda residem alguns trabalhadores da usina.
Ao longo de dois anos, os veterinários do CDRI coletaram amostras de sangue de 302 cães vira-latas nas três populações, que a estudante de doutorado da Universidade da Carolina do Sul, Gabriella Spatola, analisou.
Spatola, Mousseau e colegas identificaram três grupos familiares principais entre os cães de Chernobyl, com o maior abrangendo todas as três áreas geográficas onde as amostras foram coletadas.
Com base em seu parentesco genético, parece que esses cães se movem entre locais, vivem próximos uns dos outros e se reproduzem livremente.
A história de reprodução entre as três populações de Chernobyl evidente em seus genomas indica “que os cães existem na região de Chernobyl por um longo período de tempo, potencialmente desde o desastre, ou até antes”, escreveram Mousseau e seus colegas.
Análises comparativas mostraram que os cães de Chernobyl também são geneticamente distintos dos cães criados livremente na Europa Oriental, Ásia e Oriente Médio.
Houve, no entanto, alguns influxos de material genético de cães modernos, como mastins, em algumas populações de Chernobyl. Isso pode ocorrer porque os residentes e seus animais de estimação começaram a voltar para a cidade de Chernobyl, suspeitaram os pesquisadores.
O que será interessante para estudos futuros é que as três populações de cães de Chernobyl foram expostas a vários níveis de radiação.
O próximo passo, disseram os pesquisadores, será projetar estudos mais amplos “visando encontrar variantes genéticas críticas que se acumularam por mais de 30 anos neste ambiente contaminado e hostil”.
Se os estudos conduzidos até agora sobre a vida selvagem de Chernobyl servirem de referência – e com base no que sabemos sobre como as exposições ambientais podem ser herdadas como registros moleculares no genoma de um organismo – os cientistas terão dificuldade em extrair descobertas claras para resolver seus debates de uma vez por todas.
A pesquisa foi publicada na Science Advances.