“Sabemos se não estamos na Matrix?”: desde 1999 (ano de estreia do filme) essa é uma das mais eficientes iscas para introduzir um problema filosófico importante, o ceticismo sobre nosso conhecimento do mundo exterior. Só que ela frequentemente também introduz confusões porque as pessoas costumam se ater aos detalhes irrelevantes ou se apoiar em pressupostos dúbios e precipitados (“E se a simulação na Matrix não for perfeita?”, “Se a Ciência não pode descobrir, então não importa!”, “Dificilmente poderia acontecer de verdade!”, “Não faz diferença na minha vida!”). Por isso veremos exatamente como é o problema e como não lidar com ele.
Ceticismo sobre nosso conhecimento do mundo exterior
Tradicionalmente o ceticismo é tratado na Filosofia como um problema epistêmico, um problema sobre o que está ao alcance do nosso conhecimento. Assim entendido, o problema cético que nos ocupa aqui (há outros) se resume nesta questão: temos conhecimento sobre o mundo exterior? Desdobrando: conhecemos a realidade objetiva, que está por trás das nossas experiências e sensações? Desdobrando mais um pouco: sabemos que realmente existem pessoas, montanhas, cadeiras, átomos e gatos?
O cético nega que possamos saber se tais seres e coisas realmente existem, que possamos conhecer o mundo exterior. Ele tenta estabelecer isso através do seguinte argumento (sendo “P” um enunciado como “Pessoas existem” e “Q” a hipótese cética, que pode ser o enunciado “Estamos na Matrix”):
(1) Se sabemos que P, então sabemos que não-Q.
(2) Não sabemos que não-Q.
(c) Logo, não sabemos que P.
O enunciado indicado por “P” poderia ser sobre qualquer coisa ou fato cotidiano do mundo exterior que julgamos conhecer: “Árvores existem”, “As pessoas têm cabeças”, “O Sol é maior que uma formiga”, ou até algo menos cotidiano (como “Átomos existem” e “As espécies evoluem”). O enunciado indicado por “Q” não precisaria ser sobre o cenário de Matrix: quando Descartes considerou o problema cético ele imaginou que um gênio maligno, uma entidade sobrenatural parecida com uma divindade, controlaria suas experiências e sensações para torná-las enganosas sem que ele soubesse. O importante na hipótese cética não é que o cenário seja detalhado ou envolvente, mas que seja possível (no sentido abrangente em que dragões são possíveis, mas quadrados redondos não) e que seja um cenário no qual nossa percepção nos enganaria maciçamente.
O argumento cético é logicamente impecável, de modo que se julgamos que devemos rejeitar a conclusão, então necessariamente teremos que rejeitar ao menos uma premissa. É nesse ponto que a discussão filosófica se divide em diversas propostas sobre qual premissa rejeitar e como justificar tal rejeição. Há quem rejeite (1) e tente justificar a tese de que nem sempre nossas deduções competentes preservam nosso conhecimento (ou seja, não é porque deduzimos competentemente uma consequência lógica de um enunciado conhecido que necessariamente conheceremos essa consequência). Há quem rejeite (2) e tente justificar a tese de que na verdade sabemos, de alguma maneira a ser explicada, que não estamos na Matrix (ou em qualquer que seja a hipótese cética considerada). Faz séculos que várias propostas são exploradas (algumas, como a cartesiana, já caíram em descrédito, e outras surgiram só nas últimas décadas), o ceticismo sobre nosso conhecimento do mundo exterior ainda é um problema muito vivo.
O que deve ficar claro aqui é que os conceitos para os quais o cético apela não fogem do senso comum, ele não está propondo algo extraordinário, que fique além da nossa compreensão. O que ele propõe é, basicamente, um exercício de imaginação. Um filme como Matrix apenas realiza esse exercício por nós, facilita o trabalho do cético em sua tentativa de tornar a premissa (2) plausível. E ela não precisa ser mais do que plausível: basta constatarmos que não sabemos se estamos na Matrix, não importa se não estamos de fato na Matrix ou se isso é muito improvável. Os pressupostos do cético são modestos, os conceitos para os quais apela são cotidianos, é por isso que ele coloca uma dificuldade tão formidável (e por isso também não surpreende que tantos filósofos tenham abraçado a conclusão cética e concedido que não temos mesmo como conhecer o mundo exterior).
Como não lidar com o problema
Talvez a reação intuitiva diante do problema cético seja exigir mais detalhes do cenário até achar a brecha pela qual a vítima obteria uma experiência capaz de revelar a verdade. O cético não pode se descuidar na construção de seu cenário, e é melhor ser um pouco convincente, mas essas são condições mínimas que, se satisfeitas, frustram a reação intuitiva. O cenário será cético precisamente se nenhuma experiência puder nos salvar, se não pudermos contar com nossos sentidos (ou somente com eles). Nisso o cético parece nos encurralar, pois não poderemos contar com (ou somente com) nossos sentidos nem com nosso conhecimento de verdades lógicas ou matemáticas uma vez que, mesmo que este seja firme e que essas verdades não dependam dos sentidos para serem conhecidas (tal como as verdades do mundo exterior dependem), elas não implicam que não podemos estar na Matrix, sonhando ou sob os caprichos de um gênio maligno (de “2+2=4″ não podemos deduzir muito sobre como é ou o que há no mundo em que estamos, por exemplo).
Portanto, uma resposta como esta falha (o que não tira os méritos das descobertas neurocientíficas apresentadas). Por mais que observemos diferenças nas atividades e capacidades cerebrais de quem está sonhando, nada impede que as próprias experiências que constituem tais observações sejam enganosas (que também sejam sonhos, por exemplo). Nada impediria que estivéssemos em um mundo em que cérebros sequer existem, em que qualquer outra coisa (dependendo da nossa imaginação) produziria as experiências que constituem observações (supostamente) de cérebros e suas atividades. Seria circular nos apoiarmos em experiências obtidas pelos sentidos para tentar mostrar que experiências assim obtidas não podem ser maciçamente enganosas. Como a Neurociência (e a Ciência de modo mais geral) depende das nossas observações e experiências, não podemos contar com ela para justificar nossa rejeição da hipótese cética, não sem pressupor o que deveríamos estabelecer ou sem andar em círculos.
Mas, se a Ciência não pode resolver o problema cético, devemos concluir que ele é irrelevante, indigno da atenção de mentes mais sérias? Deveríamos encarar o argumento cético como uma espécie de passatempo? Nada disso. A honestidade intelectual requer pausa antes do salto para “se está fora do alcance da Ciência, então é besteira”, pois esse é um raciocínio que não vai longe: nenhuma teoria científica nos diz que só pode ser racionalmente resolvido aquilo que pode ser resolvido pela Ciência. Fora que é preciso fazer justiça ao fato de que parece (para muitos de nós pelo menos) profundamente racional pensar que sabemos que temos mãos e cabeças, que existe o mundo exterior e que ele tem certa natureza. Assim, a dificuldade do problema e a incapacidade da Ciência em resolvê-lo não são boas razões para deixar o cético sem uma resposta ponderada.
Quem acha que a Ciência é importante na questão, mesmo reconhecendo que por si só ela não a resolve, pode dar o primeiro passo para uma resposta ponderada alegando isto: a hipótese cética é séria, mas é eliminada pelos critérios que usamos para avaliar hipóteses científicas. Se pararmos para pensar, por mais estranha que seja a hipótese cética, também é estranha a tese (que já foi hipótese) física de que, ao contrário das aparências, o mundo é constituído por pequenas partículas que ficam se chocando por aí e que compõem aquilo que aos sentidos parece impenetrável. Quando estamos comparando hipóteses, céticas ou não, deixamos de lado a estranheza e, caso as aparências não ajudem a decidir, valorizamos características como: simplicidade, poder preditivo e coerência com demais hipóteses. Assim, poderia ser defendido que a hipótese cética se sai pior que hipóteses concorrentes na avaliação dessas características, e por isso seria razoável rejeitá-la: seria melhor a hipótese de que estamos em uma realidade física comum do que em uma realidade física similar acrescida de uma realidade virtual complexa produzida por uma conspiração de robôs, por exemplo.
Aqui duas coisas exigem atenção. A primeira é que, como foi dito, esse seria só um primeiro passo possível para uma resposta ponderada. Tudo que teríamos mostrado nele é que a hipótese cética não satisfaz certos critérios de avaliação de hipóteses, o que fica longe de mostrar que (2) é falsa: do fato da hipótese cética não ser tão simples não segue que ela seja falsa, muito menos que sabemos que ela é falsa. O passo seguinte seria mostrar, portanto, que as características pertinentes asseguram a conexão com a verdade, mostrar que a simplicidade seria regularmente característica das hipóteses verdadeiras, por exemplo. Mostrar isso tem custado reflexão filosófica intensa desde Russell (reconhecido como um dos pioneiros dessa proposta, inicialmente formulada em uma das leituras indicadas abaixo).
O segundo detalhe que exige atenção é que ao nos concentrarmos em comparar a hipótese cética com outras, muda o foco do problema: ele passa a ser sobre a natureza do nosso mundo exterior, não sobre a possibilidade de conhecermos qualquer mundo exterior (que seria o foco epistêmico inicial). Uma vez que abordamos o problema assim ele deixa de ser cético e se liga ao problema central da Metafísica: qual é a natureza fundamental da realidade? Nessa abordagem o cético e seus cenários (como o de Matrix) apenas nos fazem considerar diferentes hipóteses metafísicas disponíveis e perceber o quão complicado pode ser decidir entre elas (por isso David Chalmers aborda o tema em um artigo chamado “A Matrix enquanto hipótese metafísica”, que está incluído nas leituras indicadas). Estaremos lidando com um problema diferente, que exigirá respostas diferentes. Quem se interessar pelo problema de como sabemos se conhecemos o mundo exterior estará interessado no problema propriamente cético, quem se interessar pelo problema de como é o mundo exterior estará interessado no problema propriamente metafísico.
Outro modo de não lidar com o problema cético é tentar fugir dele com o pretexto do ônus da prova estar com o cético. Ainda está indefinido na discussão filosófica se e porque, ao nos depararmos com o problema, podemos ainda assim conservar o que pensamos (o conhecimento que julgamos ter) enquanto esperamos que o cético apresente algo adicional. De qualquer jeito, é seguro notar que mesmo que não sejamos racionalmente obrigados a responder o cético (para podermos seguir com a vida e continuar pensando que sabemos que pessoas existem e tudo mais), ainda assim será racionalmente desejável que enfraqueçamos nossas convicções até ter algo melhor do que uma indiferença educada. Especialmente porque o problema cético tem um aspecto dialético e um aspecto conceitual. A despeito de ignorarmos o primeiro aspecto, que consiste na questão “Que argumento satisfaria o cético?”, fica o segundo: pelo próprio modo como normalmente empregamos o conceito de “conhecimento” e pelo que assumimos sobre ele e suas instâncias, encontramos o problema de que as três próximas teses não podem ser aceitas conjuntamente:
(i) Conhecemos verdades cotidianas sobre o mundo exterior.
(ii) Conhecemos tudo aquilo que conseguimos deduzir competentemente do que já conhecemos.
(iii) Não sabemos se estamos no cenário cético.
Essas teses são individualmente muito plausíveis, mas a razão cobra que pelo menos uma seja abandonada. Portanto, independentemente da atenção que damos ao cético e da possibilidade de convencê-lo, o problema que ele levanta nos acompanhará.
Por fim, sobre reações do tipo “Não faz diferença na minha vida!” já dediquei considerações mais gerais (sobre a diferença feita pelo contato com a Filosofia e não apenas com o problema cético) neste texto. Mas, gostaria de acrescentar que sem dúvidas é uma reação compreensível, só é um pouco mais delicado saber quando ela é justificada (quando ela é um desinteresse respeitável e respeitoso e não um desprezo autoritário e dogmático), algo que vai variar de pessoa para pessoa.
Até alguns filósofos eminentes defenderam que o problema cético deveria mesmo ser ignorado ou abandonado (e por razões parecidas com a que motivam a reação “Não faz diferença na minha vida!”). A dificuldade é que mesmo que seja defensável que todos devam ignorá-lo ou abandoná-lo, é preciso dar razões para isso, e elas não são óbvias. Ou seja, simplesmente não há jeito fácil de lidar com o problema cético, qualquer jeito que seja fácil certamente será um exemplo de como não lidar com ele.
Leituras indicadas:
Discurso do Método e Meditações, de René Descartes: foi através dessas obras que o problema do ceticismo sobre nosso conhecimento do mundo exterior estreou na Filosofia. A apresentação que Descartes faz do problema, particularmente nas Meditações, é até hoje muito instigante, e só pelo valor histórico e literário já valeria a leitura.
Os Problemas da Filosofia, de Bertrand Russell (um dos capítulos está disponível aqui): um clássico entre os livros introdutórios para a Filosofia, nele Russell elabora a resposta ao problema cético que na literatura passou a ser conhecida como “abdutivista”. É um livro que, de qualquer jeito, vale ser lido por todo seu conteúdo, não só pela abordagem do ceticismo.
A Matrix enquanto hipótese metafísica, de David Chalmers (uma parte traduzida para o português está disponível aqui, o original em inglês está aqui): nesse artigo Chalmers discute o problema cético, mas volta sua atenção especialmente para o problema metafísico que seria levantado pelo filme Matrix.
Entrada “Skepticism” na Stanford Encyclopedia of Philosophy, de Peter Klein (disponível aqui): artigo introdutório que cobre todo o problema do ceticismo na Filosofia (que vai bem além do ceticismo sobre nosso conhecimento do mundo exterior). No entanto, está em inglês e exige algum contato prévio com noções técnicas.
Seção “Epistemologia” na Crítica na Rede (disponível aqui): compilação de textos acessíveis e introdutórios em português sobre o campo da Epistemologia (um dos principais da Filosofia) e sobre o ceticismo, que faz parte dela.