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Carl Sagan no leito de morte

Hoje, dia 20 de dezembro de 2019, faz 23 anos que Carl Sagan faleceu. Suas obras tiveram um grande impacto em minha vida. Este projeto de divulgação científica que você acompanha, o Universo Racionalista, existe muito por conta das obras de Sagan.

Abaixo, segue a transcrição de uma parte do epílogo do livro “Bilhões e Bilhões” de Carl Sagan, em que Ann Druyan narra os últimos dias de vida de seu último esposo.


Com seu otimismo característico em face de uma ambiguidade angustiante Carl escreve o final de uma obra prodigiosa, apaixonada, ousadamente interdisciplinar e espantosamente original.

Poucas semanas mais tarde, no início de dezembro, ele estava sentado à nossa mesa de jantar, considerando o prato predileto com um olhar de perplexidade. Não sentia vontade de comer. Em nossos melhores dias, a minha família tinha sempre se orgulhado do que chamamos “wodar”, um mecanismo interior que incessantemente perscruta o horizonte à procura dos primeiros sinais de possíveis desastres. Durante nossos dois anos no vale da sombra, o nosso wodar se mantivera num constante estado de alerta máximo. Nessa montanha-russa de esperanças eliminadas, alimentadas e eliminadas de novo, até a mais leve variação num único elemento da condição física de Carl fazia soar as campainhas de alarme.

Um olhar se passou entre nós. Eu imediatamente comecei a tecer uma hipótese benigna para explicar essa repentina falta de apetite. Como de costume, argumentava que poderia não ter nada a ver com a sua doença. Era apenas um desinteresse transitório pela refeição, que uma pessoa saudável nem sequer notaria. Carl conseguiu abrir um pequeno sorriso e disse apenas: “Talvez”. Mas daquele momento em diante teve de se forçar a comer, e suas forças diminuíram visivelmente. Apesar disso, insistiu em cumprir um antigo compromisso de dar duas conferências, no final daquela semana, na área da baía de San Francisco. Quando voltou a nosso hotel depois da Segunda palestra, estava exausto. Telefonamos para Seattle.

Os médicos nos mandaram voltar para o Hutch imediatamente. Eu receava ter de dizer a Sasha e Sam que não voltaríamos para casa no dia seguinte, conforme o combinado; que, ao contrário, estaríamos fazendo uma quarta viagem a Seattle, um lugar que se tornara para nós sinônimo de terror. As crianças ficaram aturdidas. Como poderíamos acalmar os seus medos de que essa seria, como já fora três vezes antes, uma temporada de seis meses longe de casa ou, como Sasha imediatamente suspeitou, algo muito pior? Mais uma vez repeti o meu mantra de levantar os ânimos: o papai quer viver. Ele é o homem mais corajoso e valente que conheço. Os médicos são os melhores que o mundo pode oferecer… Sim, Hanukkah teria de ser adiado. Mas assim que o papai estivesse melhor…

No dia seguinte, em Seattie, um exame de raio X revelou que Carl tinha uma pneumonia de origem desconhecida. Repetidos exames deixaram de apresentar evidências de uma bactéria, vírus ou fungo culpado. A inflamação nos seus pulmões era, talvez, uma reação tardia à dose letal de radiação que recebera seis meses antes como preparativo para o último transplante de medula. Megadoses de esteroides só aumentaram o seu sofrimento e não conseguiram limpar os seus pulmões. Os médicos começaram a me preparar para o pior. Agora, quando me arriscava a andar pelos corredores do hospital, encontrava expressões inteiramente diferentes nos rostos já familiares da equipe. Eles se encolhiam com simpatia ou desviavam os olhos. Era hora de os garotos virem para o oeste.

Quando Carl viu Sasha, a visão da filha pareceu realizar uma mudança milagrosa na sua condição. “Bela, bela, Sasha”, disse. “Você não é só bela, você também é deslumbrante.” Ele lhe disse que, se conseguisse sobreviver, seria em parte por causa da força que sua presença lhe dera. E, durante as horas seguintes, os monitores do hospital pareceram documentar uma mudança na situação. Minhas esperanças se renovaram, mas no fundo da minha mente não pude deixar de observar que os médicos não partilhavam meu entusiasmo. Viam nessa recuperação das forças aquilo que realmente era, o que eles chamam de “veranico”, uma breve trégua do corpo antes de sua luta final.

“E uma vigília de morte”. Carl me disse calmamente. “Vou morrer.” “Não”, protestei. “Você vai vencer desta vez, assim como já venceu antes, quando tudo parecia sem esperança.” Ele se virou para mim com aquele mesmo olhar que eu tinha visto inúmeras vezes nos debates e brigas de nossos vinte anos de trabalhos em conjunto e amor apaixonado. Com uma mistura de fino bom humor e ceticismo, mas como sempre, sem nenhum vestígio de autopiedade, disse ironicamente: “Bem, vamos ver quem tem razão desta vez”.

Sam, então com cinco anos, veio ver seu pai pela última vez. Embora estivesse com dificuldade para respirar e falar, Carl conseguiu se recompor para não assustar seu filhinho. “Eu te amo, Sam” foi só o que conseguiu dizer. “Eu também te amo, papai”, disse Sam solenemente.

Ao contrário das fantasias dos fundamentalistas, não houve conversão no leito de morte, nenhum refúgio de última hora numa visão consoladora do céu ou de uma vida após a morte. Para Carl, o que mais importava era a verdade, e não apenas aquilo que poderia fazer com que nos sentíssemos melhor. Mesmo nessa hora, quando qualquer um seria perdoado por se afastar da realidade de nossa situação, Carl foi inabalável. Quando olhamos profundamente nos olhos um do outro, foi com a convicção partilhada de que a nossa maravilhosa vida em conjunto estava terminando para sempre.

Tudo começara em 1974, num jantar oferecido por Nora Ephron na cidade de Nova York. Lembro-me de como Carl estava bonito com as mangas arregaçadas e seu sorriso deslumbrante. Falamos sobre beisebol e capitalismo, e vibrei de poder fazê-lo rir com tanto gosto. Mas Carl era casado, e eu tinha um compromisso com outro homem. Saíamos juntos como casais. Nós quatro nos tornamos íntimos e começamos a trabalhar juntos. Havia momentos em que Carl e eu ficávamos sozinhos, e a atmosfera era eufórica e altamente carregada mas nenhum de nós deixava que o outro entrevisse os verdadeiros sentimentos que estavam em jogo ali. Era impensável.

No início da primavera de 1977, a NASA convidou Carl a criar uma comissão para selecionar o conteúdo de um registro fonográfico que seria afixado em cada uma das naves espaciais Voyager 1 e 2. Depois de completar um ambicioso reconhecimento dos planetas mais distantes e suas luas, as duas espaçonaves seriam gravitacionalmente expelidas do sistema solar. Era a oportunidade de enviar uma mensagem aos possíveis seres de outros mundos e tempos. Seria muito mais complexo que a placa que Carl, sua mulher Linda Saizman, e o astrônomo Frank Drake tinham colocado na Pioneer 10. Essa fora a pioneira, mas era essencialmente uma placa de licença. O registro das Voyager incluiria saudações em sessenta línguas humanas e em língua de baleias, um ensaio sonoro evolucionário, 116 imagens da vida sobre a Terra e noventa minutos de música escolhida dentre uma gloriosa diversidade de culturas do mundo. Os engenheiros projetaram uma vida útil de 1 bilhão de anos para os preciosos registros fonográficos.

Quanto tempo é 1 bilhão de anos? Em 1 bilhão de anos, os continentes da Terra estariam tão alterados que nem reconheceríamos a superfície de nosso próprio planeta. Há bilhões de anos, as formas de vida mais complexas sobre a Terra eram as bactérias. No meio da corrida das armas nucleares, o nosso futuro, mesmo a curto prazo, parecia uma perspectiva duvidosa. Aqueles dentre nós que tivemos o privilégio de trabalhar na confecção da mensagem das Voyager realizamos a tarefa com um propósito quase sagrado. Era concebível que, como Noé, estivéssemos organizando a arca da cultura humana, o único artefato que sobreviveria num futuro inimaginavelmente distante.

Durante a minha procura assustadora pelo trecho mais digno de música chinesa, telefonei para Carl e deixei uma mensagem no seu hotel em Tucson, onde ele estava dando uma palestra. Uma hora mais tarde, o telefone tocou no meu apartamento em Manhattan. Atendi e ouvi uma voz dizer: “Voltei para o meu quarto e encontrei uma mensagem que dizia: ‘Annie telefonou’. E me perguntei: porque você não deixou essa mensagem há dez anos?”.

Blefando, brincando, respondi alegremente: “Bem, estava pensando em lhe falar sobre isso Carl”. E depois, mais sobriamente: “Você está falando sério?”.

“Sim, estou”, disse ele ternamente. “Vamos nos casar.”

“Sim”, disse eu e naquele momento sentimos que agora sabíamos como deve ser a sensação de descobrir uma nova lei da natureza. Era um “heureca”. O momento em que se revela uma grande verdade. que seria confirmada pelas inúmeras linhas independentes de evidências nos vinte anos seguintes. Mas era também a admissão de um compromisso ilimitado. Uma vez admitidos neste mundo de maravilhas, como poderíamos ser felizes fora dele? Era 1º de junho, nosso dia santo do amor. Desde então sempre que um de nós não estava sendo sensato com o outro, a invocação do 1º de junho geralmente fazia com que o ofensor recobrasse a razão.

Antes disso, eu perguntara a Carl se esses hipotéticos extraterrestres de 1 bilhão de anos no futuro saberiam interpretar os ondas cerebrais de alguém que medita. “Quem sabe? Um bilhão de anos é muito, muito tempo”, foi a sua resposta. “Admitindo que poderiam ter essa capacidade, por que não tentar?”

Dois dias depois do telefonema que mudou as nossas vidas, entrei num laboratório no Hospital Bellevue, na cidade de Nova York, onde me ligaram a um computador que transformou todos os dados do meu cérebro e coração em sons. Percorri um itinerário mental de uma hora, pensando em todas as informações que desejava transmitir. Comecei pensando sobre a história da Terra e a vida que contém. Dentro de minhas possibilidades, tentei pensar um pouco sobre a história das ideais e a organização social humana. Pensei sobre a situação difícil em que se encontra a nossa civilização e sobre a violência e a pobreza que tornam este planeta um inferno para muitos de seus habitantes. No final, eu me permiti uma declaração pessoal de como se sente uma pessoa apaixonada.

Agora a febre de Carl era violenta. Eu o beijava e esfregava o meu rosto contra o dele, ardente e não barbeado. O calor de sua pele era estranhamente tranquilizador. Eu desejava repetir muitas vezes esse gesto, para que seu ser físico e vibrante se tornasse uma lembrança sensorial indelevelmente gravada. Estava dividida entre exortá-lo a lutar e querer vê-lo livre dos aparelhos torturantes de suporte à vida, bem como do demônio que o tinha atormentado durante dois anos.

Telefonei para sua irmã Carl, que tinha dado tanto de si para impedir esse fim, para seus filhos adultos, Dorion, Jeremy e Nicholas, e para o neto, Tonio. Toda a nossa família tinha celebrado o Dia de Ação de Graças em nossa casa em Ithaca. há algumas semanas. A opinião unânime era de que fora o melhor Dia de Ação de Graças que já tivéramos. Saímos todos da festa com uma espécie de brilho. Reinara uma autenticidade e uma intimidade nessa reunião, que nos deu um grande senso de unidade. Agora eu colocava o fone perto do ouvido de Carl, para que ele pudesse ouvir, uma a uma, as suas despedidas.

Nossa amiga escritora/produtora Lynda Obst veio correndo de Los Angeles para estar ao nosso lado. Lynda estava presente naquela primeira noite encantada na casa de Nora, quando Carl e eu nos conhecemos. Ela tinha testemunhado em primeira mão, mais do que qualquer outra pessoa, nossas colaborações pessoais e profissionais. Como produtora original do filme Contato, trabalhara junto conosco durante os dezesseis anos em que preparamos o projeto para produção.

Lynda tinha observado que a incandescência constante de nosso amor exercia uma espécie de tirania sobre aqueles ao redor que tinham sido menos felizes na sua busca de um parceiro de alma. Entretanto, em vez de ficar ressentida com nosso relacionamento, Lynda o acalentava como um matemático faria com um teorema da existência, algo que demonstra que uma coisa é possível. Ela costumava me chamar de srta. Felicidade. Carl e eu apreciávamos muito o tempo que passávamos com ela, rindo, conversando até tarde da noite sobre ciência, filosofia, fofocas, cultura popular, tudo o mais. Agora essa mulher que tinha voado alto conosco, que me acompanhara no dia vertiginoso em que eu escolhera o meu vestido de noiva, estava ali ao nosso lado, enquanto dizíamos adeus para sempre.

Durante dias e noites, Sasha e eu nos revezamos sussurrando ao ouvido de Carl. Sasha lhe repetia o quanto o amava e falava sobre todos os modos que descobriria para honrá-lo. “Homem admirável, vida maravilhosa”, eu lhe disse mais de uma vez. “Tudo muito bem feito. Com o orgulho e a alegria de nosso amor, eu o deixo partir. Sem medo. 1º de junho. 1º de junho. Para valer…”

Enquanto faço as correções nas provas, que Carl receava seriam necessárias, seu filho Jeremy está no andar de cima dando a Sam a sua lição de computador noturna. Sasha está no quarto fazendo os deveres. Com suas revelações sobre um pequenino mundo embelezado pela música e pelo amor, a nave Voyager já saiu do sistema solar e se dirige ao mar aberto do espaço interestrelar. A uma velocidade de 70 mil quilômetros por hora, projeta-se em direção às estrelas e a um destino com o qual só podemos sonhar. Estou cercada por pacotes do correio, cartas de pessoas de todo o planeta que lamentam a perda de Carl. Muitos lhe dão o crédito por tê-los despertado. Alguns dizem que o exemplo de Carl os inspirou a trabalhar pela ciência e pela razão contra as forças da superstição e do fundamentalismo. Esses pensamentos me consolam e me resgatam de minha dor. Permitem que eu sinta, sem recorrer ao sobrenatural, que Carl vive.

Ann Druyan
14 de fevereiro de 1997
Ithaca, Nova York

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Consultor em Segurança da Informação e Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking e Full Stack Java Developer. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.