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A amnésia súbita me mostrou que o eu-próprio é apenas uma ficção conveniente

Por Steven D. Hales
Publicado na Psyche

Tradução de Érico Bennemann Carvalho

Estávamos praticamente voando por uma estrada estadual de duas pistas, ultrapassando todos os carros à vista. “Querida, por que você está dirigindo tão rápido?”, perguntei. “Qual é a emergência?”

Minha esposa olhou para mim em pânico, e disse: “Algo está errado com você e estamos indo para o hospital”.

“OK… por que estamos indo para o hospital?”

“Você não está bem. Aqui, você precisa colocar uma máscara”.

“Por que preciso de uma máscara?”

“A pandemia de COVID-19”.

“Para onde estamos indo?”

Ela pisou no acelerador ainda mais forte.

Vanessa e eu havíamos conversado depois que chegamos em casa do trabalho. Eu perguntei a ela o que íamos fazer para o jantar, e ela olhou para mim surpresa, porque tínhamos acabado de ter essa conversa alguns minutos antes. Eu não me lembrava disso. “Não me sinto bem”, disse a ela. Ela começou a me fazer perguntas – quando é o nosso aniversário de casamento, quando é o aniversário da minha filha, em que mês estamos, qual feriado está chegando – e eu não sabia a resposta de nenhuma delas. Não me lembrava de ter dirigido para casa, pego a correspondência ou dado aulas na universidade. A quinta-feira tinha acabado de desaparecer. “Precisamos levar você ao hospital”, ela disse. Eu estava confuso, mas obediente.

No hospital, fiz um teste de competência na triagem, um exame no qual falhei espetacularmente (embora com bom humor – “Você sabe em que mês estamos?”, “Necas!”). Havíamos chegado há menos de 10 minutos e eu já estava dentro de uma máquina de tomografia, para eles verem se eu tinha tido um derrame. Deu negativo. De volta ao meu quarto, um neurologista fez uma consulta por vídeo, com Vanessa respondendo à maioria das perguntas. Tentar obter um histórico de um paciente que claramente sofria de amnésia teria sido bastante inútil. “Meu cérebro não pode estar quebrado”, declarei, “É a minha melhor parte”. Vanessa relatou que eu reclamei de uma forte dor de cabeça na noite anterior, que tinha durado o dia todo. Eu não tinha (e não tenho) nenhuma lembrança de uma dor de cabeça, ou mesmo de qualquer coisa que estou contando aqui. Esta história foi montada posteriormente, a partir dos fragmentos. Os médicos me deram uma intravenosa do especial da casa para enxaqueca: um coquetel de analgésicos de venda livre, magnésio e Benadryl, que basicamente me nocauteou.

A primeira coisa na manhã seguinte foi uma ressonância magnética da minha cabeça. Isso também deu negativo. Sem derrame, sem tumores, sem histórico de epilepsia ou outro distúrbio convulsivo, sem drogas, álcool – nada. Tenho tendência a ter dores de cabeça, mas, até onde sei, nunca tive enxaqueca. Diagnóstico: amnésia global transitória (AGT).

Ninguém sabe o que causa a AGT. Existem apenas alguns indicadores nebulosos, como sexo, mudanças repentinas e extremas de temperatura e sofrimento emocional agudo. Os maiores fatores de risco são enxaquecas e ter mais de 50 anos. Mas ninguém sabe realmente o que está acontecendo; não há nem mesmo uma teoria funcional da causalidade. O lado positivo é que é um evento raro e muito improvável de acontecer novamente.

Perder memórias é assustador, como uma descontinuidade na narrativa do eu-próprio. Em seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano (1689), John Locke se perguntou o que o tornava a mesma pessoa que um indivíduo em particular que viu o rio Tâmisa inundar no inverno anterior. Sua resposta foi que ele tinha a mesma consciência do homem que o viu transbordar. Locke argumenta que ele é a mesma pessoa que acabou de sentar-se em sua escrivaninha porque está consciente de que o fez; ele se lembra de ter feito isso. Ele fornece exatamente a mesma justificativa para acreditar que ele é a mesma pessoa que viu o Tâmisa transbordar. Ele se lembra de ter visto a enchente em um determinado momento, de um local e perspectiva específicos. O Locke atual está conectado através do tempo com o homem que viu o rio inundar por meio da consciência ininterrupta. Isso é o que os torna partes temporárias de uma mesma pessoa persistente.

Todos nós esquecemos coisas, é claro – quem era seu professor de geografia da 6ª série ou o que você almoçou há um mês são arrastados pelo rio do tempo. Olhar apenas para a memória (como alguns dos primeiros críticos de Locke fizeram) é uma maneira estreita demais de pensar sobre o que é estar psicologicamente conectado a versões anteriores de si mesmo. Existem muitas linhas de conexão psicológica: personalidade, gostos, crenças, memórias, interesses, preferências, desejos e ambições, dentre tantas outras. Elas são tecidas juntas como os fios de uma corda. Nenhum fio continua de uma extremidade da corda para a outra, e isso é de se esperar. Embora as fibras que compõem uma corda sejam relativamente curtas, elas se sobrepõem, se entrelaçam e se torcem juntas para que a corda em si seja forte e inteira. O mesmo também vale para a história psicológica de uma pessoa: é essa corda que atravessa o tempo que une as diferentes partes temporais e nos torna completos.

A amnésia desfia a corda. Ao olhar para trás, para o meu encontro temporário com ela, há uma sensação de fratura, do meu cérebro tentando, mas falhando em continuar sintetizando minha mente, como uma lente de câmera que ficou totalmente fora de foco, mas que então torna-se gradualmente mais nítida. Posso evocar imagens de quando estava no hospital ou fazendo coisas rotineiras que sei que devo ter feito naquele dia, mas são psicologicamente distantes, desbotadas e sem vida. A pesquisadora de memória Elizabeth Loftus compara nossas memórias à Wikipédia: podemos voltar e editar os artigos, mas outras pessoas também podem. Acredito que qualquer sensação de lembrança que eu tenha não passa de edições feitas por outras pessoas; Vanessa me contou o que eu disse ou fiz durante meu encontro com a AGT, e a lembrança de ela me contando funde-se com minha própria imaginação dessas cenas. Mas eu sou Locke sem uma conexão consciente genuína com a inundação do Tâmisa na quinta-feira.

A perda profunda de memória rompe a corda entre o passado e o presente de forma tão severa que é uma questão em aberto se existe realmente alguma persistência verdadeira através do tempo. O músico Clive Wearing sofreu uma lesão cerebral em 1985 como resultado de uma encefalite viral causada pelo vírus herpes simplex, e agora tem uma amnésia densa e irreversível. A doença destruiu ambos os hipocampos, localizados nos lobos temporais, e também uma parte do lobo frontal esquerdo. Como resultado, ele é incapaz de armazenar novas memórias de longo prazo, e sua memória de curto prazo é extremamente curta. Se sua esposa Deborah se ausentar por mais de alguns minutos, Wearing a cumprimenta como se ela estivesse desaparecida há 20 anos, com um reencontro com lágrimas e de partir o coração.

Na própria visão de Wearing de si mesmo, ele constantemente sente que está na zona de penumbra entre o sono e a consciência, e que ele acaba de acordar a cada momento, com o mundo dos sonhos do passado rapidamente caindo no esquecimento. Quando entrevistado, ele repetidamente insistiu que só agora estava consciente pela primeira vez, que estava dormindo, que estava cego, surdo, mudo, sem paladar, tato ou olfato. Que ele nunca foi visitado por ninguém antes. Todos os seus sentidos, no momento em que ele está ciente deles, acabaram de ser “ligados”. Quando ele assistiu a si mesmo regendo uma orquestra de Londres na TV, Wearing declarou que a pessoa na TV não era ele, que a pessoa “não está em minha consciência… não tem nenhuma conexão comigo”. Quando ele olhou para páginas anteriores em seu diário, escritas minutos antes com sua própria letra, ele as riscou com raiva ou as revisou, e insistiu que “essas páginas foram escritas por outras pessoas”. Mais assombrosamente, Wearing afirma com convicção que ele estava morto, e só agora, no momento presente, foi tirado do abismo da inexistência.

A amnésia súbita coloca a persistência e a continuidade em nítido relevo, e é tentador pensar que são apenas esses estranhos eventos nas fronteiras psicológicas que suscitam dúvidas sobre a identidade. Mas o desfiar final da corda de nós mesmos é o destino de cada um, mesmo que de maneira muito lenta. As mudanças rápidas e permanentes em Wearing, e temporariamente, em mim, não são fundamentalmente diferentes das mudanças graduais que todos experimentam.

O Buda pensava que não existe um verdadeiro eu, que o eu é uma ficção, um mero nome para descrever uma coleção ou agregado de componentes em constante mudança. Em um texto, ele faz analogia a uma carruagem – uma carruagem é feita de partes que são em certo sentido mais reais do que a própria carruagem, que é apenas uma convenção, um nome que damos a um certo conjunto dessas partes. Também o filósofo do século 18 David Hume insistia que ele não é mais do que “um conjunto de diferentes percepções, que se sucedem com uma rapidez inconcebível e estão em perpétuo fluxo e movimento”. Ele descrevia a mente como um teatro, o espaço no qual essas percepções e pensamentos em constante mudança “fazem sua aparição, passam, voltam a passar, deslizam para longe e se misturam”. A identidade genuína ao longo do tempo ele pensava ser uma ficção e um ato da imaginação; identificamos pessoas ao longo do tempo por costume, sem uma razão filosófica mais profunda ou defensável.

Se Hume e o Buda estiverem certos, então a amnésia repentina é o tipo de choque Zen que revela a verdade de anattā, o não-eu. Somos como bandas, clubes, exércitos e times – a qualquer momento, existe uma coleção de pensamentos, ideias e percepções que compõem você. Existem ligações psicológicas e causais para trás no tempo para o que são tipicamente consideradas versões mais antigas de você mesmo, e para frente no tempo para versões futuras de você. Mas não há verdadeira persistência de um eu ao longo do tempo, não mais do que uma banda de rock que gradualmente substituiu todos os seus membros. Mick Jones é o único membro que sobrou da formação original da Foreigner. A banda atual ainda é a Foreigner? A Foreigner poderia existir daqui a 20 anos, composta apenas por mulheres e tocando música eletrônica de balada? Poderíamos saber todos os fatos sobre os membros da banda, todos os fatos sobre o rock-and-roll, e ainda não ter uma resposta objetiva e definitiva para essas perguntas. Como disse Hume, é apenas uma disputa verbal, uma discussão sobre palavras. Talvez nosso próprio senso de identidade seja uma ficção conveniente, uma história promovida por nossos cérebros que encobre os buracos de perda, mudança e alteração.

Normalmente, tenho uma boa memória, não apenas para os filósofos do século 18, mas para fatos e datas, e me dou bastante bem em quizzes de conhecimento geral. O clichê é que professores de faculdade são distraídos e perdidos em seus próprios mundos, mas a verdade é que tendemos a ter visão estreita quando nos focamos em algo, e tudo o mais é excluído da vista. No meio da minha amnésia, minha visão estreita era absoluta: a própria ideia de passado e futuro não tinha realidade concreta para mim. Não havia reflexão sobre a identidade ou como eu poderia (ou não) ser uma continuação de um eu passado, porque não havia, de fato, um passado. A sensação era de existir momento a momento, e o conjunto de ferramentas conceituais usadas pelos filósofos não servia para nada. Minha experiência com a AGT durou cerca de seis horas e minha recuperação foi gradual; nas palavras de Marcel Proust, minha memória veio “como uma corda descida do céu para me tirar do abismo do não-ser”. É apenas em retrospectiva que posso racionalizar o que estava sentindo durante esse período e o que isso pode significar. Agora fico com a sensação de ter entrado brevemente nos bastidores de um teatro, ter visto as roldanas e os acessórios de cena, apenas para me descobrir novamente na plateia assistindo ao show.

Os entusiastas da atenção plena incentivam viver a vida no momento, sem arrependimento pelo passado ou ansiedade quanto ao futuro. Para eles, posso recomendar a amnésia, que é uma excelente forma de viver fora do tempo. Não é um estado no qual devemos fixar residência definitiva, pois a história de nós mesmos é temporal. Estou feliz por ter voltado à narrativa.

Érico Bennemann Carvalho

Érico Bennemann Carvalho

Érico é farmacêutico-bioquímico graduado pela Unesp, e atualmente trabalha como tradutor na área farmacêutica. Ele acredita que a mente que se abre a uma nova ideia jamais retorna a seu tamanho original. Assim, gosta de passar o tempo aprendendo sobre assuntos instigantes, como astronomia e relatividade.