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A aventura da Lógica continua

No início do século XX, a maioria dos intelectuais estava entusiasmada com os avanços no campo da Lógica. O processo de simbolização das operações e enunciados representava a possibilidade de resolver muitos problemas causados pela imprecisão da linguagem comum (falamos um pouco sobre isso aqui). Do mesmo modo que a matemática contribuiu para uma maior precisão e objetividade na linguagem científica, a lógica simbólica proporcionaria clareza para campos que enfrentavam historicamente problemas justamente nesse ponto.

Um exemplo é a Filosofia, que por muito tempo foi criticada por ser obscura e nebulosa. Desde o século XVIII, o campo da metafísica, que faz parte da Filosofia, vinha sendo sistematicamente atacado como uma fonte de obscuridades e especulações infrutíferas, especialmente se comparada com a ciência moderna, que ainda estava dando seus primeiros passos largos.

O que se objeta, porém, à obscuridade da filosofia profunda e abstrata não é simplesmente que seja penosa e fatigante, mas que seja fonte inevitável de erro e incerteza (David hume)

De linguagem difícil, os textos filosóficos da época também vinham carregados de influência da escolástica e da teologia. Esses aspectos foram duramente criticados pelos filósofos empiristas, especialmente pelo escocês David Hume, que em uma passagem da sua obra “Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral”, denuncia: “O que se objeta, porém, à obscuridade da filosofia profunda e abstrata não é simplesmente que seja penosa e fatigante, mas que seja fonte inevitável de erro e incerteza”.  [1]

O filósofo David Hume. Fonte: Wikipedia

Immanuel Kant, seguindo as ideias de Hume, buscou livrar a filosofia desse fardo, mantendo a metafísica, mas limitando o seu escopo à própria teoria do conhecimento. Segundo o pensador prussiano, quando a razão iria além do mundo dos fenômenos (tudo aquilo que percebemos por meio dos sentidos), ela cairia em especulações contraditórias, quiméricas. Boa parte da mais importante obra de Kant, a “Crítica da Razão Pura”, está centrada nesta questão. Após as obras de Kant, o contexto filosófico do século XIX seria marcado pelo conflito entre aqueles que pretendiam salvar a metafísica e aqueles que propunham descarta-la completamente.

Uma salvação para a metafísica?

A tradição analítica, que incorpora muito do espírito humeano, funda-se justamente no final do século XIX, quando os avanços no campo da Lógica permitem que esta se torne uma ferramenta poderosa para traduzir o pensamento filosófico em uma linguagem clara e objetiva. Erros de raciocínio seriam facilmente detectados, do mesmo modo que um físico pode detectar erros nos seus cálculos e equações. Esta parecia uma solução promissora para salvar a filosofia das especulações abstratas e obscuras que a dominavam.

Muitos pensadores da época, então, iniciaram a árdua tarefa de “desfazer os nós” da filosofia e resolver os problemas filosóficos que se estendiam por mais de mil anos, especialmente os paradoxos. Alfred Tarski, por exemplo, buscou resolver o Paradoxo do Mentiroso a partir da sua teoria da verdade para linguagens formais. Boa parte do seu trabalho é expresso na forma de lógica simbólica.

Alguns filósofos, como Ludwig Wittgenstein, no entanto, chegaram à conclusão radical de que todos os problemas da filosofia não passavam de problemas produzidos pela imprecisão da linguagem filosófica. O emprego da Lógica, desse modo, simplesmente eliminaria toda a filosofia, restando somente a ciência e a Lógica como formas válidas de conhecimento.

Entrada para o “Seminário Matemático” na Universidade de Viena, onde os pensadores positivistas lógicos do Círculo de Viena se reuniam. Fonte: Wikipedia

Esse pensamento também era compartilhado pelos positivistas lógicos do Círculo de Viena, que eliminaram completamente a metafísica e seguiam uma forma de empirismo radical: somente os enunciados reduzíveis às sentenças protocolares (enunciados básicos da experiência) são legítimos. É fácil perceber como essa visão tem influência da filosofia de Hume e pensadores de inspiração kantiana, como Karl Popper, opunham-se fervorosamente. O prefácio da sua obra “A Lógica da Pesquisa Científica” já inicia com uma citação de Kant que diz que uma disputa prolongada no campo filosófico não deriva somente de um problema de palavras, mas um “problema genuíno acerca das coisas.”[2]. Muitos dos trabalhos de Popper, inclusive, fazem uso da lógica simbólica e é interessante notar como mesmo seguindo princípios semelhantes, como o de usar a Lógica para resolver o problema da obscuridade na filosofia, os pensadores da época chegavam à conclusões divergentes.

A Lógica à serviço da matemática

Paralelamente a esta questão, outros intelectuais voltaram-se para um outro possível uso da Lógica: a axiomatização da matemática. Como vimos no outro post da série, a Lógica cada vez mais se aproximou da matemática na sua “era de ouro”, especialmente a partir do trabalho de George Boole.

Desse modo, o filósofo, matemático e lógico Bertrand Russell iniciou um audacioso empreendimento: concluir todas as verdades matemáticas a partir de um sistema de axiomas e dedução usando a lógica simbólica. Em sua Principia Mathematica, Russell, em conjunto com Alfred Whitehead, propõe uma axiomatização completa da matemática, aperfeiçoando e reduzindo os axiomas de Peano para a definição dos números naturais, por exemplo. É uma obra monstruosa e extremamente complexa, dividida em três volumes, mas, se você quiser ter um gostinho dela, no trabalho“Introdução à filosofia da matemática”, Russell introduz para o público leigo as principais ideias do Principia Mathematica (e nós recomendamos que você comece por aqui se o assunto lhe interessar).

Trecho do Principia Mathematica que demonstra logicamente que 1+1 = 2. Fonte: Wikipedia

Como a história da Lógica está repleta de reviravoltas (a história de qualquer ciência parece ser assim), não demorou muito para que novos problemas aparecessem. Em 1931, o matemático Kurt Gödel publicou dois teoremas que expõe as limitações de empreendimentos como o Principia. A famosa Incompletude de Gödel basicamente demonstra que um sistema formal em que uma certa aritimética é expressa não pode ser completo e consistente ao mesmo tempo. Para entender os teoremas, é importante compreender o que “sistema formal”, “consistência” e “completude” significam nesse contexto. O sistema formal a qual Gödel se refere seria um conjunto finito ou ao menos decidível de axiomas e regras de inferência que permitem a dedução de novos teoremas. Completo aqui significa que, dado um sistema formal F que seja consistente, não existem enunciados nesse sistema que não são provados por F. Já consistente quer dizer que a consistência desse sistema F pode ser provada pelo próprio F.

O matemático Kurt Gödel. Fonte: Wikipedia

O trabalho de Gödel teve um enorme impacto em toda a cultura intelectual da época. Considerado uma das mais importantes obras publicadas no campo da Lógica, a Incompletude de Gödel produziu mais perguntas do que respostas: afinal, se mesmo sistemas altamente formais como a matemática não podem ser reduzidos à Lógica, o que falar da filosofia? Essas questões estimularam muitos intelectuais a extrapolarem o alcance e as conclusões que se pode tirar dos teoremas, dando origem a uma série de interpretações equivocadas. Muitas dessas interpretações, inclusive, foram usadas como argumento contra o uso da Lógica e da razão [3].

Mas este ainda não é o fim da nossa aventura. Alguns anos depois, a Lógica demonstraria ser útil para uma área completamente nova e que revolucionou nossas vidas. Dica: você está lendo esse texto graças a dela.

Notas:

[1] HUME, David.Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo: Editora Unesp, 2004. p.26

[2] KANT, Immanuel in POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2013.

[3] Sokal e Bricmont abordam um pouco o uso equivocado do Teorema de Gödel no livro Imposturas Intelectuais.

Referências:

HUME, David.Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

KANT, Immanuel in POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2013.

Standford Encyclopedia of Philosophy – Gödel’s Incompleteness Theorems http://plato.stanford.edu/entries/goedel-incompleteness/

**Este texto faz parte de uma série que aborda de forma resumida a história da Lógica, Leis do Pensamento e sua relação com a filosofia, matemática e computação.Não há pretensão de produzir um texto acadêmico ou de alto nível técnico, mas de simplesmente informar e despertar o interesse no assunto em leitores de todos os níveis de conhecimento. Não aprofundamos nenhuma das ideias aqui apresentadas, mas esperamos que este texto seja um ponto de partida para pesquisas futuras.

Caroline Soares de Araujo

Caroline Soares de Araujo

Jornalista graduada pela UFPA (2013), estudou por seis meses história da filosofia na Università degli Studi di Firenze (UNIFI). Mestranda em Filosofia no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPA (PPGFIL). Tem interesse por Epistemologia, Lógica, Filosofia da Ciência e Filosofia da Matemática.