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A consciência é irrelevante para a mecânica quântica

Traduzido por Julio Batista
Original de Carlos Rovelli e Alexis Papazoglou para IAI News

Desde o início, a mecânica quântica incomodou os físicos. Parecia desafiar nossa concepção da realidade e levar a aparentes contradições. Um dos fundadores da mecânica quântica, Werner Heisenberg, questionou se a teoria oferecia uma descrição da realidade. Outros, como Niels Bohr, afirmaram que de alguma forma a consciência humana desempenhava um papel na teoria. Nesta entrevista, Carlo Rovelli explica as motivações antirrealistas de Heisenberg, esclarece o papel do “observador” na mecânica quântica e articula sua interpretação relacional da teoria, segundo a qual a realidade é uma rede de interações.

Alexis Papazoglou – Os fundadores da mecânica quântica ficaram muito desconfortáveis ​​com seus resultados – notoriamente Einstein achou que era uma teoria incompleta e brincou “Deus não joga dados”, e Schrödinger abandonou completamente a física pela biologia. O que havia de tão radicalmente diferente na mecânica quântica da física clássica que causou tanto desconforto aos seus próprios criadores?

Carlo Rovelli – A física costumava descrever o que acontece em um processo físico. Se você chutar uma bola e quebrar uma janela, a física descreve o caminho completo da bola de seus pés até a janela. A teoria quântica não faz isso. Apenas descreve como o seu chute na bola dá origem à quebra da janela, sem contar o que acontece no meio, como a bola voou. Quando você tenta preencher uma história do que acontece no meio, você fica sem sentido: como a bola estar em dois lugares ao mesmo tempo.

AP – Os físicos de hoje ainda estão conscientes de quão radical é a teoria e suas implicações mais amplas para nossa ideia de realidade? Ou nos tornamos tão familiarizados com a mecânica quântica, por causa de suas aplicações tecnológicas e porque já existe há algum tempo, que não apreciamos sua natureza radical?

CR – Sim, acho que a maioria dos físicos está muito consciente de quão radical é a teoria. Alguns pensam sobre isso, alguns apenas aceitam e usam para prever o resultado dos processos, sem se incomodar em perguntar o que diabos está realmente acontecendo. Mas a maioria percebe que isso é definitivamente estranho.

AP – Você acha que chegará um momento em que a mecânica quântica não mais nos intrigará? Ou sempre desafiará nossa ideia concebida da realidade?

CR – Acho que chegará um momento em que entenderemos claramente a novidade radical da teoria quântica e o que ela diz sobre o mundo. Estou otimista de que esse momento será em breve. Mas a imagem cotidiana da realidade será desafiada. Isso é o que a ciência sempre fez, como quando descobrimos que a Terra é redonda, que gira rápido, ou que os chimpanzés são nossos primos, ou que a matéria sólida é feita de átomos. É apenas um processo de reajuste contínuo de nossa compreensão do mundo. Não é diferente do que acontece quando vemos uma floresta distante como um verde uniforme e depois nos aproximamos e começamos a ver as árvores, os galhos, os insetos… aprendemos mais sobre o mundo, e nesse processo nossas ideias anteriores são desafiadas.

AP – O observador e a consciência pareciam desempenhar um papel bastante central nas primeiras interpretações da mecânica quântica, mas não mais. Por que?

CR – A consciência nunca desempenhou um papel na mecânica quântica, exceto por algumas especulações marginais que não acredito terem base sólida. A noção de “observador” não deve ser mal interpretada. Na linguagem da física quântica, um “observador” pode ser um detector, uma tela ou até uma pedra. Qualquer coisa que seja afetada por um processo. Não precisa ser consciente, ou humano, ou vivo, ou qualquer coisa do tipo…

AP – A mecânica quântica ainda tem um lugar importante para o observador, mas mais importante que a física clássica?

CR – No exemplo do processo em que você chuta uma bola e quebra uma janela, o “observador” é o vidro da janela. É a coisa física que é afetada pelo processo. Nesse sentido geral, a noção de “observador” desempenha um papel. Não é um observador humano, é o sistema físico afetado por um fenômeno. A teoria quântica não descreve o que acontece durante um processo, mas apenas a forma como o processo afeta os sistemas físicos, que são chamados de “observadores”.

AP – Você defende o que é conhecido como a interpretação relacional da mecânica quântica, você pode dar um breve relato do que é isso?

CR – É um refinamento moderno da interpretação tradicional desenvolvida pelos fundadores da teoria. A ideia é que o que a teoria quântica está nos ensinando é que não devemos pensar que as propriedades de algo (por exemplo, a bola chutada) são sempre definidas. Em vez disso, as propriedades são apenas a maneira como algo afeta outra coisa. Então, a bola literalmente não tem propriedades – nem mesmo uma posição – até que afete algo, o vidro das janelas, por exemplo. Isso nos diz que o mundo não é um conjunto de coisas com propriedades. O mundo é uma rede de interações.

AP – Heisenberg, um dos principais pioneiros da mecânica quântica, foi muito influenciado pela filosofia e, em particular, por uma filosofia antirrealista. Como isso afetou seu trabalho em mecânica quântica e a versão que ele apresentou? 

CR – A maioria, se não todos, os principais físicos da história conheciam a filosofia e foram influenciados pela filosofia. Heisenberg estava sob a influência do empiriocriticismo de Ernst Mach, e graças a isso ele foi capaz de saltar do realismo ingênuo intuitivo das coisas com propriedades. Acho que há muitas possibilidades intermediárias entre o realismo ingênuo e o anti-realismo radical, e se perder entre esses é o que nos confunde.

AP – É verdade que muitos dos problemas de interpretação que surgem na mecânica quântica derivam de uma interpretação realista da física – a visão de que nossas teorias estão realmente descrevendo o que está acontecendo na realidade? O enigma do experimento da fenda dupla, por exemplo, ou do Gato de Schrödinger, ambos surgiram ao tentar reconstruir uma ideia do que uma partícula está fazendo em qualquer ponto. Se o realismo é o problema, por que mais físicos quânticos não estão defendendo o anti-realismo, como Heisenberg?

CR – O anti-realismo de Heisenberg era limitado. Na sua época, a teoria quântica era aplicada exclusivamente a fenômenos em escala muito pequena e em laboratório, como átomos e moléculas. Ser antirrealista sobre esses objetos para ele era uma forma de ter cuidado para não exagerar nossos preconceitos sobre a realidade. Ele estava certo. Hoje aprendemos que a teoria quântica se aplica a tudo, não apenas a pequenas coisas. Aplica-se às estrelas, ao universo, a nós mesmos… É mais difícil ser antirrealista sobre tudo. Alguém pode ser um antirrealista sobre si mesmo?

A noção de realidade é uma ferramenta poderosa e abandoná-la inteiramente é enfraquecer a ciência. Mas a noção de realidade pode ser construída de forma compatível com nossa ciência atual e, nesse sentido, há possibilidades intermediárias entre o realismo ingênuo e o anti-realismo. A falta deles é o que nos confunde. O que precisamos é corrigir nossa noção intuitiva de realidade da rigidez excessiva, não abandoná-la inteiramente. A realidade está lá fora e nós a descrevemos. Renunciar a isso é renunciar ao nosso desejo de compreender. Ou, pensar que existe uma realidade lá fora, mas em princípio ela é inacessível não é muito interessante, na minha opinião, porque “realidade” é o nome que damos a tudo o que temos acesso, ou pensamos que podemos ter acesso a em algum sentido; o resto… quem se importa?

A noção de realidade compatível com a teoria quântica é uma realidade que é formada por sistemas que nem sempre possuem propriedades. É formado por sistemas que interagem, e suas propriedades descrevem o que acontece nas interações. Entendemos melhor o mundo se assumirmos que as coisas acontecem quando as coisas interagem entre si, não apenas quando interagem conosco. Estamos interessados ​​em mais do que apenas nossas observações diretas. Estamos interessados ​​em uma história global sobre a realidade que inclui nossas observações como um caso especial.

AP – Você disse antes que a filosofia pode ser uma inspiração para a física – muitos dos grandes, Einstein, Heidegger, Dirac, todos engajados com a filosofia. Mas pode a filosofia ser mais do que mera inspiração para a física? Os físicos podem realmente se envolver adequadamente com as alegações das teorias filosóficas, ou as duas disciplinas são muito diferentes uma da outra para ter um impacto direto?

CR – Acho que o impacto da filosofia na física sempre foi muito mais do que uma vaga inspiração. Análise crítica, reflexão sobre metodologia, formas alternativas de pensar, tudo isso vem mudando repetidamente a forma como fazemos ciência. Mesmo os cientistas que hoje menosprezam a filosofia estão repetindo teorias filosóficas recentes, sem perceber. Aqueles que afirmam que a ciência é um método claro e autocontido, baseado em experimentos, falseamentos e mudanças de paradigmas, estão apenas repetindo versões simplificadas de Popper e Kuhn, sem nem mesmo perceber que, entretanto, a filosofia da ciência alcançou uma melhor compreensão do desenvolvimento scientífico. As duas disciplinas são completamente diferentes em suas ferramentas e métodos, mas tradicionalmente trabalham em conjunto. Aliás, o oposto também é verdadeiro: os melhores filósofos, de Hume a Kant a Wittgenstein sempre foram bem conscientes e fortemente afetados pelos desenvolvimentos científicos de seu tempo.

AP – A filosofia é difícil de interpretar e muitas vezes leva anos para entender um pensador em particular. Existe o perigo de que os físicos também possam ser mal orientados por uma má leitura de um filósofo? Ouvi você dizer, por exemplo, que muitos físicos entendem mal as afirmações de Thomas Kuhn sobre a estrutura das revoluções científicas.

CR – Tudo requer esforços para ser compreendido e pode ser discutido para sempre, seja a filosofia de Kant, a bioquímica, os últimos quartetos de Beethoven, o Rei Lear ou a revolução copernicana. Mas não se deve confundir as discussões intermináveis, e às vezes estéreis, sobre os detalhes de algo, com o conteúdo central e o poder de uma ideia, ou uma obra de arte. Podemos apreciar algo e deixar que modifique nossa vida e pensamento, sem nos preocupar com as discussões dos especialistas sobre o número de anjos que podem dançar na ponta de um alfinete…

Julio Batista

Julio Batista

Sou Julio Batista, de Praia Grande, São Paulo, nascido em Santos. Professor de História no Ensino Fundamental II. Auxiliar na tradução de artigos científicos para o português brasileiro e colaboro com a divulgação do site e da página no Facebook. Sou formado em História pela Universidade Católica de Santos e em roteiro especializado em Cinema, TV e WebTV e videoclipes pela TecnoPonta. Autodidata e livre pensador, amante das ciências, da filosofia e das artes.