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A evolução da tolerância à lactose

Uma parcela significativa da população não é capaz de digerir o açúcar contido no leite, a lactose. Dependendo de cada país, a porcentagem de pessoas capazes de digerir a lactose pode variar. Essa variação entre a capacidade de digerir a lactose ou não, envolve processos evolutivos que ocorrem acerca de 10 mil anos em nossa espécie e ainda está em curso.

Os animais mamíferos apresentam uma extraordinária capacidade de digestão da lactose nos primeiros momentos de sua vida. A medida que envelhecem, a lactase, enzima responsável pela digestão da lactose, vai sendo produzida em menor escala, fazendo com que o animal perca a capacidade de digestão do açúcar.

Um indivíduo que produz pouca ou nenhuma lactase, ao ingerir leite ou seus derivados, não será capaz de digerir totalmente o açúcar do leite. Por sua vez, bactérias presentes no nosso intestino irão fermentar essa lactose não digerida, liberando ácidos e gases que irão causar os sintomas clássicos da intolerância:  Cólicas abdominais, distensão abdominal e diarreia.

Fisiologia da digestão da lactose.

Evolutivamente, nosso corpo estava adaptado, assim como todos os mamíferos, para não ingerir leite à medida que envelhecemos. Isso se deve ao fato de que a medida com que os mamíferos param de mamar ao envelhecer, produzir uma enzima que não será utilizada, no caso, a lactase, apresenta um custo fisiológico. Logo, as espécies que se adaptaram a “desligar” genes que sintetizam essas enzimas em estágios sequenciais da vida, irão apresentar vantagens, pois poderão “deslocar” energia para outros processos essenciais para sobrevivência/reprodução.

No entanto, há cerca de 10 mil anos ocorreu o que chamamos de revolução neolítica. Os humanos passaram de uma vida de caçadores-coletores para hábitos mais sedentários, graças ao desenvolvimento da agricultura e a atividade  pastoril com a domesticação de gado, cabra, porcos, etc.

Esse processo de domesticação de animais possibilitou o acesso de novos recursos alimentares, não só em decorrência de se alimentar diretamente da carne, mas também da possibilidade de ingerir o leite produzido por esses animais. A mudança alimentar foi positiva para os indivíduos que continuavam produzindo a lactase durante a vida adulta. Consequentemente, as variantes genéticas responsáveis pela tolerância a lactose passaram a sofrer uma pressão seletiva favorável e consequentemente apresentando uma dinâmica de aumentar sua frequência na população.

Regiões onde houve atividade pastoril na Revolução Agrícola.

Bases genéticas

O que difere os indivíduos tolerantes a lactose dos intolerantes na fase adulta são as mutações em regiões reguladoras do DNA, ou seja, mutações que vão fazer com que o gene que produza lactose seja expresso por muito mais tempo e não cesse sua atividade no final da primeira infância. Não existe apenas uma mutação que possibilita os humanos a serem tolerantes a lactose na vida adulta. Sendo assim, distintas mutações em regiões diferentes podem trazer o mesmo resultado.

A tabela abaixo expressa algumas dessas mutações em suas respectivas regiões geográficas. Por exemplo, o nucleotídeo T na região 13,910 associado ao nucleotídeo na região 22,018 está associado a tolerância a lactose, principalmente na Eurásia, já na África e Ásia Central a tolerância a lactose está associada a mutações diferentes.

Assim, a tolerância a lactose surgiu de forma independente em regiões diferentes do planeta. Essas variáveis  já estavam presentes na população em frequências muito baixas, porém antes da atividade pastoril elas não cumpriam nenhum papel positivo e ainda regulavam a síntese de uma enzima que o nosso corpo não utilizava. A medida que existe uma nova oferta nutricional, o leite, os indivíduos com capacidade de se alimentar a partir dessa nova reserva alimentar passaram a ter vantagem em relação aos que não podiam se alimentar.

Dessa forma, a variante genética que tornava os indivíduos capazes de se alimentar com leite passou a ser selecionada positivamente e apresentou uma dinâmica de fixação dessa variante na população.

As regiões onde a atividade pastoril se consolidou precocemente, apresentam indivíduos com maior capacidade de digestão a lactose. Um estudo mostrou uma correlação entre quanto maior a atividade pastoril maior a capacidade daqueles indivíduos digerirem lactose. Demonstrada no gráfico abaixo: Atividade pastoril (eixo y) e tolerância a lactose (eixo x).

O exemplo da tolerância a lactose mostra que a evolução ainda atua sobre os humanos. Além disso, os processos evolutivos podem explicar uma série de características atuais da humanidade sendo que, muitas delas, são doenças, levando a Medicina e a Evolução a cada vez mais convergir em busca de explicação de fenômenos causadores de enfermidades.

Ademais, a tolerância a lactose é um exemplo clássico de construção de nicho. Os humanos alteram de forma significativa o seu meio e esse por sua vez passou a exercer uma nova pressão seletiva. As mudanças de costumes (agricultura e pastoril) passaram a ser herdadas pelas gerações seguintes. Assim, a humanidade passou não só a herdar genes dos seus progenitores como também cultura que, por sua vez, exercia uma nova pressão seletiva nos genes, em um claro processo de coevolução gene cultura.

Referências

  • Genetic origins of lactase persistence and the spread of pastoralism in Africa.
  • On the Evolution of Lactase Persistence in Humans.
  • Evolution of lactase persistence: an example of human niche construction
Lucas Sena

Lucas Sena

Mestre e doutorando em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).