Pular para o conteúdo

A filosofia científica e os limites da ciência

Gustavo Esteban Romero

Tradução de Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

O artigo foi publicado na Revista Científica de Estudios e Investigaciones (2017).

Resumo

A filosofia científica é a filosofia informada pela ciência, que usa ferramentas exatas como a lógica e a matemática, e proporciona à atividade científica uma base para discutir questões mais gerais sobre a natureza, a linguagem que usam para descrevê-la e o conhecimento que dela obtemos. Muitas teorias da filosofia científica podem ser contrastadas e avaliadas usando evidência científica. Neste artigo, concentro-me em caracterizar a filosofia científica e a discutir os limites da ciência.

Função da filosofia

O pensamento crítico sobre o mundo começou nas coisas jônicas quase 600 anos antes de Cristo. Ali, em Mileto, Tales formulou a primeira cosmovisão desprovida de elementos mitológicos de que temos notícia. Mais importante ainda foi que o seu discípulo Anaximandro discordou de seu mentor, e apresentou uma cosmologia melhorada: utilizou a crítica racional, e formulou ideias que influenciaram o pensamento ocidental por dois milênios e meio. A escola milésia se desenvolveu até que as invasões persas puseram um fim no florescimento da cultura grega na Ásia Menor. A semente do pensamento crítico, no entanto, subsistiu e se mudou para outras cidades gregas, na Itália e nas ilhas do Mar Egeu ou se esparramou pelo continente até Abdera. Após o período pré-socrático do pensamento grego, cuja característica essencial foi a interpretação racional do mundo, se passou a etapa clássica, em que a problemática humana e moral se juntou às problemáticas cosmológicas. A culminação desta etapa foi a obra de Aristóteles, por acaso o pensamento mais influente da história do Ocidente. No período Helenístico, que se estendeu até mesmo sob o domínio romano, as diferentes escolas filosóficas (epicurismo, estoicismo, ceticismo) trataram de cultivar não apenas uma interpretação física do mundo, mas também um sistema de prescrições para viver nele. Os grandes sistemas filosóficos eram apresentados como um preâmbulo para a ética: a justificação do nosso comportamento na vida. Já não se aspirava apenas ao conhecimento, mas à sabedoria; desejava-se o saber viver.

Com o colapso do Ocidente sob as invasões bárbaras, a visão puramente racional do mundo deu lugar a cosmologias com forte influência oriental, repletas de elementos mitológicos e mágicos. A reintrodução das obras de Aristóteles no Ocidente durante a Baixa Idade Média preparou o caminho para o nascimento da ciência moderna e do método experimental nos séculos XVI-XVII (Lindberg 2008).

Até o século XIX, ciência e filosofia não estavam claramente separadas. Os iniciadores da ciência moderna, como Galileu, Newton, e Huygens realizaram investigações que hoje seriam consideradas “filosóficas”, enquanto que os grandes filósofos racionalistas do Século XVII como Leibniz, Spinoza, e Descartes não apenas estavam cientificamente informados, mas fizeram contribuições científicas, em particular Leibniz. É com a reação romântica ao Iluminismo do Século XVIII que surge uma filosofia de corte idealista que se separa completamente da ciência. O mais importante representante desta tendência é Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Hegel introduziu uma forma de fazer filosofia que seria o germe das maiores correntes antirracionalistas do Século XX e influenciaria até hoje através de correntes de pensamento tão variadas como o existencialismo, o pós-modernismo com suas muitas variações, e o construtivismo social. Essa forma de fazer filosofia, obscura e divorciada da experiência, contrastaria enormemente com a filosofia necessária para fazer ciência (ver Popper 2013, para uma crítica ao Hegelianismo e sua influência). No mesmo Século XIX surge outra corrente filosófica que tende à precisão na linguagem, ao uso de ferramentas formais, que está informada pela ciência da época, e que evita a verborragia característica da expressão hegeliana. A nova filosofia foi impulsionada por cientistas com inclinação filosófica ou por matemáticos. Entre eles, quero mencionar Gottlob Frege, Ernst Mach, Hermann von Helmholtz, Heinrich Hertz, Charles S. Peirce e Ludwig Boltzmann. É, talvez, neste último que o espírito de uma filosofia científica se manifesta de forma mais pura (ver Boltzmann 1974). Boltzmann entendeu que a função da filosofia na era científica é a de resolver os problemas mais gerais que surgem no estudo da natureza, e, a partir de suas soluções, proporcionar à ciência um marco e um fundamento que permita resolver de forma eficiente os problemas específicos. A filosofia, portanto, não pode ser uma atividade desligada da ciência, mas deve se realimentar dela, mudar com ela, e servir sempre com ela para proporcionar uma melhor compreensão dos problemas científicos. Uma filosofia que cumpre essas funções pode ser chamada de “filosofia científica”.

Filosofia científica

A visão de Boltzmann de uma filosofia científica, isto é, de uma filosofia que se ocupe dos problemas gerais comuns a todas as ciências, uma filosofia que está informada pela ciência e sirva à investigação científica, começou a ser praticada no século XX por meio de filósofos com forte formação em ciências. Filósofos como Bertrand Russell (matemático e lógico), Moritz Schlick (físico), Hans Reichenbach (físico e lógico), Rudolf Carnap (lógico e semanticista), Hans Hahn (matemático), Otto Neurath (sociólogo), W. V. O. Quine (lógico), e muitos outros na segunda metade do século.

A filosofia científica hoje está representada por uma grande quantidade de filósofos profissionais com séria formação científica que tratam problemas relacionados à física, à biologia, à matemática, às ciências sociais, e também a temas de caráter geral. Talvez, os filósofos científicos com obras mais ambiciosas no século XXI sejam Mario Bunge (ver, por exemplo, Bunge 1974-1989) e Nicholas Rescher (por exemplo, Rescher 2001).

A filosofia científica se ocupa de problemas concretos, mas gerais, como “o que é verdade?”, “o que é uma proposição?”, “o que é e como se determina o significado de um enunciado?”, “o que é a imprecisão?”, “há objetos vagos?”, “o que é informação?”, “o que é uma lei natural?”, “o que é um evento?”, “o que é o espaço?”, “o que é o tempo?”, “é o espaço-tempo uma entidade?”, “o que é uma teoria?”, “o que diferencia uma teoria de um modelo?”, “o que é conhecimento?”, “há limites do que podemos conhecer?”, “o que significa entender algo?”, “há diferentes formas de conhecer?”, “o que é um dado?”, “o que é evidência e em que se diferencia dos meros dados?”, “são verdadeiras algumas teorias?”, “o que é ciência?”, “como diferenciar a ciência das imposturas pseudocientíficas?”, “qual é a diferença entre ciência e técnica?”, “o que são valores?”, “como avaliamos?”, “como saber se as nossas avaliações são corretas?”, “o que é um código moral?”, “existe livre-arbítrio?”, “há níveis de existência?”, “o que é realidade?”, “computadores sofisticados podem pensar?”… e muitos outros problemas similares. Novos problemas filosóficos aparecem com o avanço da ciência (por exemplo, antes das investigações de Albert Einstein e de Hermann Minkowski, a problemática sobre a natureza do espaço-tempo não existia), e outros desaparecem (os avanços das neurociências mostraram que os problemas relacionados com substâncias mentais são irrelevantes, ou, pior ainda, mostraram que são pseudoproblemas). A filosofia científica evolui com a ciência, e a ciência usa conceitos filosóficos.

Em geral, os problemas filosóficos estão agregados em cinco grandes grupos, ou áreas de investigação filosófica (ver Romero 2017 para uma discussão detalhada). Estas são:

1. A semântica filosófica. É a investigação dos problemas mais gerais da linguagem que usamos para representar o mundo. A semântica filosófica se ocupa de esclarecer conceitos essenciais para a ciência como sendo os de referência, denotação, designação, representação, significado, verdade, relevância e imprecisão. Também se ocupa da interpretação de linguagens formais e da estrutura de nossas teorias e de nossos modelos.

2. A ontologia. É o ramo da filosofia que investiga a natureza dos existentes e a estrutura da realidade. Por exemplo, “o que significa ‘existir’?”, “existem quarks?”, “e os números?”, “há diferentes conceitos de existência?”, “há hierarquias de existentes?”, “há eventos que não obedecem a leis?”. Entre os grandes temas de investigação da ontologia estão os conceitos de indivíduo, objeto, coisa, propriedade, mudança, lei, causalidade, azar, necessidade, propensão, disposição, e nível ontológico.

3. A epistemologia, ou teoria do conhecimento. É a investigação da natureza do conhecimento e como o adquirimos. Inclui a investigação dos problemas filosóficos das ciências naturais e formais, e questões comuns a todas elas, como a natureza das teorias, como são avaliadas, substituídas, contrastadas etc.

4. A ética, ou teoria do comportamento moral. A ética investiga os códigos morais, as suas justificações, e os conceitos envolvidos. Uma ética científica deve realizar estas investigações à luz de conhecimentos científicos atuais sobre a sociedade, a cultura, e os comportamentos e as necessidades dos indivíduos. Deve basear-se na antropologia, sociologia e neurociência, assim como em linguagens formais, para sugerir códigos morais adequados para as diferentes sociedades humanas. Também deve se ocupar do estudo dos valores que usam para justificar qualificações morais (“bom”, “mal”, e graus de avaliações intermediárias) relativas a determinados códigos ou regras.

5. A estética. Estuda a experiência estética e trata de desvendar a sua natureza com a ajuda das neurociências e das ciências da cultura. Entre os seus objetivos está o de clarificar os conceitos de arte, beleza, harmonia, e similares.

Cada ciência específica está em condições de ajudar a testar determinadas teorias filosóficas. Por exemplo, conjecturas acerca da incidência de padrões de simetria visual na experiência estética podem ser avaliadas por meio de estudos não invasivos da atividade do cérebro de indivíduos expostos a certas obras artísticas com padrões definidos, em experimentos com adequados controles de erros.

As ciências físicas, e, em particular, a astrofísica e a cosmologia, estão em condições de ajudar a contrastar muitas ideias filosóficas no campo da ontologia. Por exemplo, problemas como “quais são os constituintes básicos do universo?”, “é o espaço-tempo uma entidade?”, “por que se nossas representações das leis da física são invariantes sob a reversão do tempo?”, “o universo que observamos sofre mudanças e processos irreversíveis?”, “quantas dimensões têm o mundo?” (Romero 2017).

Os limites do conhecimento

Há limites para o conhecimento da natureza que se pode ser alcançado através da ciência? A ciência é uma atividade sistemática e autocorretiva destinada a obter conhecimento verdadeiro do mundo, e, sem dúvida, o melhor método que temos para isso. Há perguntas mais além de seu alcance? Há problemas sem solução? Está a ciência aumentando nosso conhecimento de uma maneira tal que tenderá a uma representação final e completa da natureza?

Para responder às perguntas acerca da natureza mediante a ciência, primeiro temos de fazer essas perguntas. Mas as perguntas que formulamos sempre têm pressupostos, se originam em um estado preexistente de conhecimento. O progresso da ciência não apenas proporciona respostas a algumas destas perguntas, mas às vezes (na verdade, com muita frequência) nos leva a modificar o nosso conhecimento de fundo de uma maneira que as velhas perguntas perdem sentido e surgem outras novas, antes inconcebíveis. A dinâmica da investigação científica não é acumulativa nem leva a aumento linear de conhecimento. Pelo contrário, o conhecimento pode colapsar e reexpandir em novas direções. Conjuntos completos de perguntas, que uma vez foram significativas e pareceram importantes, de repente se dissolvem e caem no esquecimento. Ninguém se importa agora, por exemplo, com a estrutura do flogisto ou das propriedades do éter eletromagnético. Não há de perguntar, portanto, se o empreendimento científico pode responder a todas as perguntas acerca da natureza que se podem formular em um dado momento, já que pode ser o caso de que muitas das tais perguntas se devam a investigações ou indagações ilegítimas com respeito a um futuro corpo de conhecimento. Novas respostas e soluções a novos problemas mudam os pressupostos para a formulação de perguntas adicionais. Ao aprofundar a nossa compreensão do mundo, aparecem novos interrogantes nunca vislumbrados antes. Cada estado sucessivo de conhecimento leva junto um novo conjunto de perguntas válidas. Não há nenhuma razão para pensar que isso é um processo convergente.

Devido à metodologia de autocorreção inerente à investigação científica, o conhecimento é sempre revogável, conjecturável e transitório. Não existe uma teoria científica definitiva, na medida que o método científico permanece válido. Apenas podemos aspirar a obter cada vez melhores representações parciais e provisórias da realidade. A imagem científica do mundo é sempre provisional e conjectural. Não há uma “verdade final” a que nossas teorias tendem. A razão é simples: somos nós que atribuímos a verdade para as nossas declarações acerca da natureza. Fazemos sobre a base de evidência, porém podemos nos equivocar. Nós nos equivocamos muito e seguiremos nos equivocando. A certeza não se encontra entre as opções ao atribuir valor de verdade a nossos enunciados sobre a base de provas limitadas.

Além da consideração anterior, quero salientar que a expansão do conhecimento vai em direção de incrementar a sua complexidade. Isto se pode ver não apenas no enorme crescimento da literatura científica e na diversificação das revistas especializadas, mas também no detalhe técnico esmagador de novos enfoques, formalismos, e marcos teóricos. A natureza com certeza não é simples. A simplicidade ontológica é apenas um mito conveniente para pensar mais além dos detalhes, mas não há o menor apoio empírico a essa tese. A ciência natural não está vinculada a um princípio de simplicidade, ao contrário do que normalmente se afirma.

Por último, podemos nos perguntar se é possível dentro de determinado marco teórico propor perguntas que são impossíveis de serem contestadas em princípio. Em outras palavras, “há, como os escolásticos chamaram, Insolubilia?”, “há perguntas que a ciência, em princípio, não pode contestar?”. No âmbito da investigação empírica não há nada que não possa ser legitimamente levantado e não investigado. Por exemplo, se se pergunta acerca da posição e do impulso simultâneo de um elétron, se está formulando uma questão ilegítima já que, de acordo com a melhor teoria acerca de elétrons de que dispomos, a mecânica quântica, estas partículas não têm simultaneamente estas propriedades. Se nos perguntarmos, “o que há no interior de um buraco negro?”, estamos levantando uma pergunta válida. Ainda que o interior de um buraco negro seja inacessível para os experimentos ou observações realizados a partir de fora do horizonte de eventos, as perguntas sobre o interior podem ser respondidas mediante ferramentas teóricas, tais como a relatividade geral ou teorias de gravidade quântica. Se houvesse perguntas cujas resoluções estivessem mais além da ciência, então dificilmente se poderia considerar que essas perguntas tratam de questões científicas. Por outro lado, as questões científicas são, em princípio (ainda que não necessariamente em prática), solucionáveis.

Alguns cientistas, especialmente os físicos de partículas, falam, às vezes, de “teoria de tudo” ou “teorias finais”. Parecem sugerir que essas teorias podem fornecer um marco teórico único a partir do qual todas as perguntas científicas poderão ser em princípio contestadas. Pessoalmente, duvido que tais afirmações tenham algum sentido. Algo que temos aprendido sobre a natureza é que há níveis diferentes de composição e organização, e que cada nível tem propriedades emergentes que lho são próprias. Portanto, mesmo que uma teoria unificada de todas as interações físicas pudesse ser formulada, isto não implicaria que se pudesse obter repostas a todas as perguntas científicas: cada nível tem suas questões específicas, não redutíveis a conceitos dos níveis mais básicos. Não é possível responder perguntas biológicas ou sociais usando apenas teorias físicas e conceitos deste nível ontológico.

Além disso, uma suposta teoria de “tudo”, mesmo se estiver correta em sua formulação das leis físicas básicas, não dirá nada acerca das condições iniciais e de contorno necessárias para resolver as equações que expressam as ditas leis. As teorias finais, para usar uma expressão de Steven Weinberg, pertencem ao reino dos sonhos. E os sonhos são sonhos.

Referências

  • Boltzmann, L. (1974). Theoretical Physics and Philosophical Problems: Selected Writings. Edited by B. Mc Guinness. Dordrecht: Reidel.
  • Bunge, M. (1974-1989). Treatise on Basic Philosophy, 8 vol. Dordrecht: Kluwer.
  • Lindberg D. C. (2008). The Beginnings of Western Science: The European Scientific Tradition in Philosophical, Religious, and Institutional Context, Prehistory to A.D. 1450 2nd Edition. Chicago: Chicago University Press.
  • Popper, K. R. (2013). The Open Society and Its Enemies. Princeton: Princeton University Press.
  • Rescher, N. (2001). Nature and Understanding: The Metaphysics and Methods of Science. Oxford: Oxford University Press.
  • Romero, G. E. (2017). Scientific Philosophy. Heidelberg- Berlin- New York: Springer.
Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira

Divulgador Científico há mais de 10 anos. Fundador do Universo Racionalista. Consultor em Segurança da Informação e Penetration Tester. Pós-Graduado em Computação Forense, Cybersecurity, Ethical Hacking e Full Stack Java Developer. Endereço do LinkedIn e do meu site pessoal.