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A obscura noção de substância em Locke

Introdução

Em seu Ensaio sobre o entendimento humano, o filósofo John Locke explora, dentre outros temas, a sua concepção da noção de substância. Embora essa seja uma noção extremamente obscura na obra do autor, ela parece possuir uma função na sua perspectiva quanto a realidade e o conhecimento. Para compreender qual é a relevância dessa noção na filosofia lockeana e a razão pela qual ela pode ser entendida como uma das mais obscuras, é necessário que sejam esclarecidos alguns conceitos que a orbitam. Farei, pois, um apanhado geral desses conceitos antes de nos debruçarmos sobre pontos importantes que devem ser levantados a respeito da obscuridade e do papel da noção de substância na obra do filósofo.

Das ideias simples às complexas

Do ponto de vista de Locke, as coisas no mundo afetam os nossos sentidos de modo a produzir em nossa mente ideias correspondentes a elas. Em linhas gerais, podemos exemplificar o branco como uma ideia simples que afeta o nosso corpo de modo a produzir em nossa mente a ideia de branco que lhe é correspondente. As ideias simples se caracterizam sobretudo por não serem compostas: elas não podem ser divididas em mais ideias. A mente não pode nem criar ideias simples e nem destruí-las. Uma ideia simples, assim, é obtida de maneira passiva: na medida em que o mundo nos afeta, elas são produzidas. (cf. 2. 2. 1-2)

Além dessas ideias simples, existem as ideias complexas. As ideias simples são a matéria-prima – “materiais e alicerces” (2. 12. 1.) – da composição de todas as ideias complexas. É repetindo, comparando e unindo ideias uma a outra que conseguimos gerar as complexas. Nesse sentido, as ideias complexas, diferentemente das ideias simples, não são obtidas de maneira passiva. Primeiro, nós adquirimos – passivamente – ideias simples para, depois, as compormos – ativamente – em ideias complexas (cf. 2. 12. 1.).

É necessário que realizemos atividades mentais para gerar tais ideias complexas. Essas atividades podem consistir de três operações: I) combinação (ou composição), que é quando criamos uma ideia complexa a partir da combinação (ou composição) de ideias simples; II) comparação, que consiste em agrupar ideias de um modo que ainda seja possível encará-las como distintas – algo como colocar lado a lado –; e III) abstração, que consiste na operação de abstrair a ideia de sua existência singular tornando-a uma ideia geral (cf. 2. 12. 1.).

Da ideia do tipo modo à ideia do tipo substância

O autor divide as ideias complexas em três tipos: modos, substâncias e relações (cf. 2. 12. 3). Falarei aqui apenas sobre os dois primeiros tipos, já que são os mais importantes para a compreensão de como a noção de substância se apresenta na filosofia de Locke. Para explicá-los, utilizarei uma maneira de conceituar que é divergente da de Locke, porque quero deixar bastante destacada a diferença entre substância enquanto ideia e substância enquanto tipo de ideia.

As ideias complexas do tipo modo são aquelas que não possuem uma substância própria, que são dependentes de substâncias (cf. 2. 12. 4) – deixarei mais claro depois em que consiste essa “dependência”. Elas se dividem em dois subtipos: simples, em que apenas uma ideia simples é repetida e somada para gerar a ideia complexa – como a ideia de dúzia, que é a repetição da ideia de unidade –; e mistas, em que se combina ideias diferentes entre si – a ideia de beleza é mista, já que Locke a define como “uma certa composição de cor e figura, que deleita o expectador” considerando que cor, figura, deleite, expectador etc. são ideias distintas entre si (cf. 2. 12. 5.).

As ideias complexas do tipo substância são famosas por representarem coisas particulares subsistentes por si mesmas. Em todas as ideias desse grupo, a ideia de substância é a principal e a primeira, mas também a mais obscura e confusa de todas. A ideia de chumbo, por exemplo, é aquela em que se une, à ideia de substância, as ideias de “uma certa cor esbranquiçada esbatida, com certos graus de peso, dureza, ductibilidade e fusibilidade” (2. 12. 6). Logo, as ideias complexas desse tipo são obtidas pela união da ideia de substância às demais ideias. (cf. 2. 12. 6)

Um ponto importante a ser enfrentado aqui é o da diferença entre as ideias complexas do tipo substância em relação às do tipo modo. Locke coloca que as segundas “dependem” das primeiras. Em que consiste essa dependência?

Ao longo da história da filosofia, foi defendido que qualidades não poderiam existir dissociadas de um objeto. O branco, por exemplo, sempre estaria associado a algum objeto, porque ele não conseguiria existir no mundo independentemente de objetos: branco seria sempre branco de alguma coisa. Um tal objeto em que o branco ocorreria seria o substrato, o suporte ou – como disseram muitos – a substância por meio da qual essa qualidade se manifestaria. Assim, as qualidades seriam dependentes das coisas para se manifestarem na realidade.

Em contrapartida, a noção de dependência aqui pode ser entendida como diferente dessa noção clássica. Primeiro, que existe uma diferença entre substância enquanto ideia e substância enquanto tipo de ideia. As ideias do tipo modo dependem diretamente das ideias do tipo substância, e não da própria ideia de substância. Além disso, as ideias do tipo modo não correspondem às qualidades acidentais que um objeto pode ter. Ideias desse tipo – como a de triângulo, gratidão e de assassinato – dependem das ideias de tipo substância para existir por outra razão.

Nas palavras de Woolhouse,

Para que existam a gratidão e o assassinato, é necessário que existam homens gratos e seus atos, assassinos e suas vítimas. Similarmente, os triângulos que encontramos no mundo precisam ser feitos de chumbo ou de outro material.¹

Creio que o caso do assassinato como ideia de tipo modo seja o que deixa mais clara essa diferença, já que não conseguimos imaginar como assassinato poderia ser uma propriedade que subsiste em um objeto da mesma forma que subsistiria, por exemplo, o branco. De qualquer forma, fica clara essa distinção quanto ao tipo de dependência que as ideias do tipo modo possuem em relação às ideias do tipo substância.

A obscura ideia de substância

Pensemos agora um pouco mais a substância, não enquanto tipo de ideia complexa, mas enquanto uma ideia. Se questionassem a Locke o que é a substância, ele poderia parecer

o indiano (…) que referia que o mundo era suportado por um grande elefante, e ao perguntarem-lhe em que é que o elefante descansava, ele respondeu: sobre uma grande tartaruga. Mas ao ser mais uma vez mais pressionado para se saber o que sustentava a tartaruga com tão grande carapaça, ele respondeu que era qualquer coisa, não sabia o quê. (2. 23. 2.)

Essa é a mesma situação na qual se encontra aquele que é pressionado a responder o que é a substância. Ele não consegue se livrar da ideia, mas ao mesmo tempo não consegue defini-la, já que

Em si mesmo, ao que parece, o substratum deve ser totalmente “descaracterizado” – pois se ele tiver qualidades em si próprio, então elas, pela mesma linha de raciocínio, requiririam alguma “coisa” ainda mais básica para as “suportar”.²

A substância, pois, deve ser o último nível. Se ela for um conjunto de qualidades, então esse conjunto de qualidades precisará ter como substrato outra – verdadeira – substância.

Um gato, por exemplo, é composto por maciez e negritude, mas também por substância. A substância (ou substratum) do gato não é o copilado de propriedades do gato, e sim algo que se soma àquelas propriedades para que o gato possa existir. Assim, a ideia de gato imita o gato real, uma vez que ela é a ideia de substância somada às ideias de negritude, maciez e outras mais.

Então um substratum, falando de modo coloquial, não tem propriedades que pertencem a ele como as que podem pertencer a um gato. Antes, ele as suporta e elas estão inerentes a ele. Nós somos capazes, em um primeiro momento, de pensar em um gato tendo propriedades, como sendo uma substância individual, porque a ideia de gato é uma ideia de substância e por isso, então nos conta Locke, contém a ideia de um substratum como uma de suas partes. ³

Se refletirmos sobre os nossos pensamentos, veremos que o Sol nada mais é do que um conjunto de qualidades associadas a ele somado a algo que atua como suporte de tais qualidades (cf. 2. 23. 6). Se pensarmos mais um pouco, veremos que muitas dessas propriedades na verdade são poderes: o Sol tem o poder de provocar nas pessoas as ideias que associam a ele como de ter certa cor e de provocar calor. Esses poderes, todavia, não são a ideia de substância: os poderes e as substâncias são ideias distintas entre si (cf. 2. 23. 7).

Nesse sentido, também não podemos confundir a substância com qualidades primárias como “o volume, a forma, o número, a situação e o movimento dos corpos” (2. 23. 9). Essas qualidades primárias têm toda uma aparência de substâncias, já que elas geram qualidades secundárias como cores, sons e sabores. Nesse sentido, as qualidades primárias parecem ser uma “estrutura interna” ao próprio objeto ou mesmo um suporte das qualidades secundárias. Entretanto, elas também não se equivalem à substância, porque o volume, a forma e o movimento de um corpo, tudo isso precisa de um suporte. Logo, a substância pressupõe sempre um não sei o quê para além dessas qualidades, por mais primordiais que sejam.

Além disso, Locke também tenta mostrar (2. 23. 23-27) que a substância possui um lugar diferente de hipóteses quanto a como as coisas se juntam que derivavam da física de sua época. Ele coloca que a questão é metafísica, e não física – é um problema de como metafisicamente (e não fisicamente) as partes se associam ao todo. Não poderíamos, pois, apelar para microestruturas, partículas e explicações desse gênero: elas também pressuporiam, de algum modo, a substância como o substrato que condiciona suas existências.

As ideias que compõe, junto com a substância, a ideia complexa em nada nos ajudam a entender o que é a substância dos objetos (cf. 2. 23. 16.). Por isso, o máximo que Locke pode fazer para “definir” a substância é citar exemplos de ideias complexas em que uma das ideias que as compõe é a ideia de substância, como as ideias de homem, cavalo, ouro e água (cf. 2. 23. 3.). Dar exemplos, todavia, não parece ser estabelecer realmente uma boa definição – e Locke está ciente disso.

Poderíamos nos questionar, então, se não seria mais justo simplesmente desprezarmos a ideia de substância enquanto uma noção simplesmente sem sentido. No entanto, Locke explica (cf. 2. 23. 4) que a ideia de substância tem um papel importante na medida em que não temos a capacidade de conceber as qualidades de um objeto sem pressupor também a substância como aquilo que promove o elo entre as qualidades. De acordo com o filósofo, ela é a condição de possibilidade da ligação entre as propriedades, embora não saibamos com clareza o que ela é. É apenas na mente que ideias como vermelho e doce poderiam “subsistir” sem uma substância. No mundo, elas estão intrinsecamente dependentes dela.

Em contrapartida, não podemos também encarar a substância como um mero estado mental ou um produto psicológico da nossa interação com o mundo. De fato, Locke acreditava que a substância existia no mundo enquanto realidade, e não somente enquanto uma ideia. Segundo Lowe,

ele não está apontando (embora ele de fato concordaria com isso também) que estados mentais devem ser estados de uma substância de algum tipo (provavelmente de um “espírito” ou “alma”), mas antes que as qualidades de objetos físicos as quais causam essas ideias em nós requerem ser suportadas por algum “substratum” externo, material4

É claro que a substância existe na mente enquanto uma ideia – a ideia de substância –, e uma ideia pode ser entendida como um “estado mental”. Entretanto, a ideia de substância possui correspondência na realidade, pois substâncias existem na realidade. Nesse sentido, não é um mero estado mental, mas também um estado mental. Esse mesmo raciocínio valeria para quem encara a substância como uma característica da linguagem: ela não é uma mera característica da linguagem, mas também uma característica da linguagem.

Apesar de sabermos muito sobre o que a substância não é, ainda parece haver uma obscuridade enorme quanto ao que ela é. Ainda assim, como já foi demonstrado, não poderíamos simplesmente nos livrar dessa noção, porque ficaríamos sem uma explicação quanto àquilo que promove a ligação entre as qualidades. Podemos nos questionar, porém, quanto ao porquê dessa noção ser tão obscura para nós.

Ao ver de Locke (cf. 2. 23. 32), não temos conhecimento claro da ideia de substância por uma limitação das nossas capacidades epistemológicas. Isso quer dizer que, se fôssemos mais capazes, talvez entendêssemos o que é a substância tal como entendemos claramente o que são as cores. Locke define (cf. 2. 23. 6) a natureza da substância como “secreta”, o que nos indica que – como qualquer segredo – pode ser desvelado desde que hajam os meios necessários para isso.

Considerações finais

Depreendo, à luz dessas considerações, que a noção de substância de Locke em seu Ensaio parece ser a mais obscura. Em contrapartida, ela evidentemente possui um papel importante, que é o de ser o suporte das qualidades dos objetos, sem o qual elas não existiriam. Enquanto ideia, ela nos é acessível pela simples formação de certas ideias complexas em nossa mente. Enquanto tipo, ela é o conjunto de todas as ideias complexas que são compostas – dentre outras ideias – pela ideia de substância. Enquanto realidade no mundo, ela nos mostra que está para além de um estado mental, que não pode ser confundida com o poder de um objeto, com uma qualidade primária, secundária ou, sequer, com uma microestrutura. Um dia, quem sabe, nossas ferramentas epistemológicas atinjam uma tal capacidade que faça a substância se revelar para nós de maneira clara e distinta.

Notas

[1] Em uma tradução livre de: “For there to be gratitude and murder there need to be grateful men and their acts, murderers and their victims. Similarly the triangles we meet with in the world need to be made from lead or some other material” (1984, p. 98).

[2] Em uma tradução livre de: “In itself, it seems, the substratum must be utterly featureless – for if it had qualities of its own, then these would, by the same train of reasoning, require some yet more basic ‘stuff’ to ‘support’ them” (1995, p. 75).

[3] Em uma tradução livre de: “So a substratum does not, in the ordinary way, have properties which belong to it as they might belong to a cat. Rather it supports them and they inhere in it. We were able in the first place to think of the cat as having properties, as being an individual substance, because the idea of a cat is a substance-idea and hence, so Locke tell us, contains the idea of a substratum as one of its parts” (1984, p. 116).

[4] Em uma tradução livre de: “he is not pointing out (though he would in fact agree with this also) that mental states must be states of a substance of some kind (probably of a ‘spirit’ or ‘soul’), but rather that the qualities of physical objects which cause these ideas in us require suport by some ‘external’, material ‘substratum'” (1995, p. 74).

Bibliografia

LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.

LOWE, E. J. Locke on human understanding. London; New York: Routledge, 1995.

WOOLHOUSE, R. S. Locke. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.

Elan Marinho

Elan Marinho

Academicamente, entrei em filosofia em 2016. Desde então, desenvolvi uma pesquisa sobre como intuições funcionam. Nessa pesquisa, me baseio na filosofia analítica e nas ciências cognitivas. Também trabalho com divulgação de filosofia, sendo redator (2016-) do portal Universo Racionalista e produtor de conteúdo (2020-) para o Youtube no canal “Filosofia Acadêmica”.