Traduzido por Julio Batista
Original de Hugh Pennington para a Nature
Os microrganismos têm sido atores-chave na história da humanidade. Veja, por exemplo, o fato do presidente dos EUA, Joe Biden, se descrever como ‘irlandês’. Ele rastreia essa herança até os ancestrais na Irlanda, incluindo seu tataravô, que esteve envolvido nos esforços de socorro em Ballina, durante a Grande Fome da década de 1840.
A fome foi causada pelo patógeno da batata Phytophthora infestans, que se espalhou do México para os Estados Unidos e, de lá, para a Europa. Quando finalmente chegou à Irlanda, causou o declínio da safra de batatas que matou cerca de um milhão de pessoas entre 1845 e 1852, principalmente por causa de epidemias de tifo (causado pela bactéria Rickettsia prowazekii) e uma infecção bacteriana conhecida como febre recorrente. Historicamente, as epidemias de tifo costumam ser associadas a fomes e guerras – a má nutrição leva a uma alta mortalidade e as más condições de vida aumentam o número de piolhos infectados por bactérias e, portanto, a transmissão da doença. Entre os anos censitários de 1841 e 1851, a população irlandesa diminuiu em 2 milhões; cerca de 1,3 milhão dessas pessoas foram para os Estados Unidos entre 1847 e 1854.
Os efeitos políticos da diáspora estimulada pela fome continuam. O efeito letal direto do tifo na Irlanda foi igualado apenas pelos 2,5 milhões a 3 milhões de mortes que a epidemia causou durante a guerra civil russa de 1917 a 1923, que levou ao estabelecimento da União Soviética.
Jonathan Kennedy, um analista de política e saúde global, não aborda tanto o tifo em seu livro Pathogenesis, que analisa micróbios e seus efeitos na história humana. Sua abordagem se trata menos da microbiologia e mais de uma visão marxista da história, na qual o conflito entre grupos sociais é o principal motivador da mudança. Kennedy considera como os eventos pré-históricos e medievais, juntamente com a escravidão, o colonialismo e a Revolução Industrial, podem estar ligados à propagação de doenças infecciosas. Ele termina considerando o impacto da pandemia da COVID-19.
A cobertura de eventos pré-históricos ou medievais é tão detalhada quanto as evidências permitem. Mas a especulação é abundante porque a qualidade dos registros históricos é muito ruim. A peste negra matou 60% da população europeia em 1348-49, como afirmam alguns historiadores? É difícil dizer. Na Inglaterra, o único censo realizado antes dessa época foi para o Domesday Book em 1086, e esse registro não nos diz quase nada sobre o número de camponeses, a maioria da população. Quase todas as estimativas dos efeitos da praga vêm dos arquivos da igreja; registros medievais, em geral, são caracterizados por hipérbole e amor por números redondos.
A alegação de Kennedy é que um declínio maciço da população do campesinato inglês levou ao fim do feudalismo e ao surgimento do capitalismo. Mas mesmo que uma diminuição na população tenha ocorrido nessa escala – e há muitas evidências circunstanciais de que as atividades econômicas e outras não foram tão severamente afetadas – correlação não é causalidade. A Peste Negra não acabou com o feudalismo na Europa Oriental e na Rússia. Lá, o sistema feudal se fortaleceu, com a eventual introdução da servidão pelo czar russo Boris Godunov na virada do século XVII e o desenvolvimento do sistema ‘mecânico’ de trabalho forçado em partes do império Habsburgo da Europa Central durante o século XVIII.
Patógenos esquecidos
Mas Kennedy está certo ao afirmar que as pandemias e os surtos de peste tiveram uma grande influência ao longo da história humana. Esses episódios dramáticos são escritos por historiadores, e Kennedy descreve seus relatos com entusiasmo. Mas concentrar-se nesses eventos bem documentados ignora muitos patógenos humanos importantes que não se comportam dessa maneira. Na década de 1920, a maioria das pessoas foi infectada pelo Mycobacterium tuberculosis, mas apenas algumas morreram por causa de sua doença. Essa minoria vinha diminuindo constantemente na Inglaterra desde a década de 1830, evidência das melhorias nos padrões de vida elogiadas por Steven Pinker em seu livro de 2018 Enlightenment Now (cujos argumentos são caracterizados por Kennedy como “arrogantes” e “exagerados”). Me interesso no assunto pois tenho uma lesão chamada complexo de Ghon calcificado em um dos pulmões causada pelo M. tuberculosis e testei positivo para a bactéria no teste tuberculínico, embora nunca tenha apresentado sintomas clínicos.
Outro patógeno não muito alarmante, mas importante, é o ancilóstomo (Necator americanus). Há um século, esse verme infectava silenciosamente cerca de 50% das crianças no sul dos Estados Unidos, impedindo o desenvolvimento delas – e da região. Larvas de vermes se enterram entre os dedos dos pés de crianças descalças quando elas caminham sobre solo contaminado com fezes humanas. Melhorias nas habitações e especialmente banheiros com drenagem adequada desempenharam um papel crucial na redução das taxas de infecção em cerca de 50.000 vezes.
A redução nas infecções por tuberculose no Reino Unido pode ser em parte graças a melhores regulamentações de saúde pública, mas provavelmente principalmente devido ao aumento da disponibilidade de alimentos ricos em proteínas a preços acessíveis: em 1910, havia 25.000 lojas com peixes e batatas no país. Os habitantes de Glasgow escaparam da cólera durante a pandemia de 1867 porque sua água vinha de um lago nas Terras Altas por meio de um aqueduto construído uma década antes para abastecer a indústria, hidrantes e a crescente população. Curiosamente, a Escócia é pouco mencionada por Kennedy, apesar de ser um dos primeiros países a se urbanizar, com mais de um terço da população em 1850 vivendo em cidades. Mesmo assim, o feudalismo persistiu apesar da peste negra 500 anos antes – seus mineiros de carvão eram servos ligados à mina até 1755.
O papel da medicina moderna
Outra figura também está faltando no livro: o médico microbiologista. Kennedy considera seu papel como garantido. Identificar o HIV e transformar a infecção pelo vírus em uma condição não letal foi um avanço científico que também moldou a história humana. O mesmo aconteceu com o uso da penicilina para tratar a sífilis e a escarlatina. Kennedy se limita a descrever as dificuldades que muitos países africanos têm em fornecer medicamentos antirretrovirais para o HIV às suas populações e a possibilidade de que a resistência antimicrobiana possa levar à próxima pandemia.
Ele acha que a COVID-19 será um ponto de inflexão crucial na história da humanidade. Eu sugeriria que é muito cedo para dizer. Talvez sua influência a longo prazo não seja maior do que a da pandemia de gripe de 1918–19, que matou quase tantas pessoas quanto a COVID-19 no Reino Unido, e mais do que durante as epidemias de cólera no país. Coletivamente, os surtos de cólera quase desapareceram de nossa consciência histórica, e Kennedy os menciona apenas de passagem. Mas, apesar de todo o impacto marcante da atual pandemia, ele considera que não há nada de novo ou notável nela. Discordo. Nunca antes respondemos a um vírus com restrições quase universais ou definimos seu progresso genomicamente.
Nenhum outro patógeno mostra uma relação linear direta entre idade e mortalidade. A pandemia de gripe de 1918–19 matou jovens adultos. A COVID-19 teve como alvo as casas de repouso, mas quase não matou nenhuma das centenas de milhares de estudantes universitários infectados. Apenas o tifo chega perto de ter efeitos tão marcantes relacionados à idade, matando principalmente pessoas mais velhas. Ainda assim, matou Anne Frank, de 15 anos, no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, em 1945.
O livro de Kennedy é bem escrito e controverso. Não o leia para entender a ciência das pandemias; não contém muito sobre isso. Leia-o para uma visão de sua história e sociologia.