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Alguns ateus acreditam em coisas sobrenaturais – e há evidências científicas disso

Nós, ateus, somos pessoas bastante racionais, né? Negamos a existência de Deus não só por não haver boas evidências de que Ele existe, mas também por termos – ou acreditarmos ter – boas razões pra afirmar que o mundo jamais foi habitado por qualquer divindade. Além disso, nossa postura cética se aplica a diversos outros assuntos controversos, tais como à homeopatia, à telepatia e aos relatos de abdução alienígena. A gente aprendeu a valorizar a ciência, a razão e a honestidade intelectual. Até há alguns meses, pelo menos, essa era a ideia básica que eu tinha sobre nós e, “de tabela”, sobre os nossos colegas agnósticos. Mas eu estava enganado.

Ano passado, foi publicado um relatório relativo à pesquisa denominada “Compreendendo a descrença” (Bullivant, Farias, Lanman & Lee, 2019). Entre outros objetivos, essa investigação – ainda em andamento – visa identificar coisas como os valores e as crenças de pessoas que não creem em Deus. Por enquanto, já foram entrevistados mais de 5 mil crentes e descrentes do Brasil, dos Estados Unidos, da Dinamarca, do Reino Unido, da China e do Japão. Muitos resultados interessantíssimos foram descritos nesse relatório inicial, mas um deles fisgou totalmente a minha atenção: o de que alguns ateus e agnósticos acreditam em coisas sobrenaturais.

Sim: uma proporção significativa de nós acredita em coisas como objetos com poderes místicos, forças subjacentes do bem e do mal, carma, vida após a morte e reencarnação. Entre os ateus, os chineses e os brasileiros eram os mais crentes em ideias sobrenaturais. Os agnósticos tupiniquins tendiam a ser menos crédulos, mas não ficavam muito pra trás. Por exemplo, 22% dos ateus e 19% dos agnósticos do Brasil concordaram com a afirmação de que “As posições de estrelas e planetas afetam a vida das pessoas”. Por sua vez, 33% dos representantes da população geral indicaram acreditar em astrologia.[1]

Outro dado notável foi o de que, entre os brasileiros, apenas 27% dos ateus e 12% dos agnósticos discordaram de todas as dez ideias sobrenaturais investigadas. Em outras palavras, a maioria deles ou acreditava, ou estava em cima do muro quanto à veracidade de ao menos uma dessas ideias. Curiosamente, enquanto os agnósticos brasileiros foram os mais descrentes dentre os dos seis países, os ateus daqui só eram menos crentes do que os da China e os da Dinamarca. Levantando o “troféu naturalista”, 35% dos ateus norte-americanos assinalaram não crer em nada daquilo.

Esses dados respondem a algumas questões, mas também levantam tantas outras. Por um lado, está claro que descrer em Deus não é o mesmo que ser naturalista, isto é, acreditar que tudo o que existe é o mundo natural. Por outro lado, os autores não procuraram esclarecer como muitas pessoas “conciliam” o seu ateísmo (ou o seu agnosticismo) com uma ou mais crenças sobrenaturais. A propósito, ao divulgar alguns desses dados por aí, eu me deparei com muita gente desconfiada de que essa pesquisa não entrevistou ateus e agnósticos “de verdade”. É mole?

Mas eu entendo a descrença desse pessoal. De certa forma, tudo isso parece confrontar algumas crenças que precocemente desenvolvemos sobre as características básicas de ateus e agnósticos. Partindo do pressuposto de que pessoas que não creem em Deus são céticas, por que elas creriam em coisas tão questionáveis como astrologia, carma e reencarnação? Isso não parece… contraditório?

Como eu não encontrei grandes problemas metodológicos naquela pesquisa, minha conclusão foi inevitável: “Nem todo mundo é ateu como os meus colegas e eu”. Com isso em mente, decidi tirar um tempo pra elaborar algumas hipóteses que pudessem explicar essa confusão toda. Afinal, por que alguns ateus e agnósticos acreditam em coisas sobrenaturais? Pra conhecer minha resposta a esse aparente paradoxo, assista aí ao meu vídeo (logo abaixo). E, se quiser ficar por dentro de mais pesquisas interessantes sobre ceticismo e religião, não deixe de se inscrever lá no meu canal do YouTube (clicando aqui).

Nota

[1] Nesse estudo, ateus foram definidos como aqueles que, ao responderem à questão “Qual afirmação mais se aproxima da crença que você tem sobre Deus?”, optaram pelo item “Eu não acredito em Deus”. Por sua vez, agnósticos foram definidos como aqueles que optaram pelo item “Eu não sei se há um Deus, e não creio que haja uma forma de descobrir isso”. Já os representantes da população geral foram definidos como aqueles que optaram por qualquer uma das quatro opções restantes (por exemplo, “Eu não creio em um Deus pessoal, mas acredito em um tipo de Poder Superior” ou “Eu sei que Deus realmente existe e eu não tenho dúvida disso”).

Referência

Daniel Gontijo

Daniel Gontijo

Doutor em Neurociências pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor de Psicologia. Pesquisa as relações entre espiritualidade e saúde mental.