Pesquisas de opinião pública ao redor do mundo têm levantado preocupação com a queda da confiança da população na ciência. E não é por menos: uma população favorável à ciência provavelmente também será favorável ao financiamento público e privado de projetos científicos, essenciais para o desenvolvimento tecnológico, e ao uso das tecnologias daí advindas para trazer avanços em áreas como saúde, agricultura, educação e meio ambiente.
O Fórum Econômico Mundial também coloca a falta de confiança nas instituições públicas, não só as científicas, como um problema urgente. O Barômetro Edelman de confiança aponta uma “erosão global de confiança”, e apresenta uma relação preocupante entre infodemia, tomada de decisões em saúde e hesitação vacinal. Além disso, outros estudos mostram que a confiança está relacionada com motivações políticas e ideológicas.
Basta, então, restabelecer a confiança e problema resolvido? Outros autores, e eu, discordamos. Focar na questão de confiança pode ser perigoso. Confiar cegamente, de maneira acrítica, em qualquer coisa, não é uma atitude racional.
Além disso, quando líderes pedem que a população “confie na ciência”, ou “confie nas instituições”, de que ciência e de que instituições estamos falando? Durante a pandemia de COVID-19, tivemos exemplos de países com altas taxas de vacinação porque a população confiou nos respectivos governos. Mas também tivemos o exemplo do Brasil, onde registramos altas taxas de vacinação apesar da desinformação espalhada pelo governo federal e o Ministério da Saúde, que a população não confiou.
O problema da confiança acrítica
O’Brien e colaboradores chamam atenção para o problema do excesso de confiança acrítica na ciência no artigo intitulado “Confiança indevida: quando a confiança na ciência fomenta a crença em pseudociências e os benefícios de uma avaliação crítica”. Neste estudo, eles descrevem como pessoas com alto grau de confiança em ciência tendem a compartilhar mais facilmente desinformação que traga referências científicas, ou que ao menos pareçam científicas.
Os autores são cuidadosos com a análise dos resultados, ressaltando que o problema não é confiar, mas confiar cegamente, sem avaliar criticamente a informação, de maneira que qualquer coisa que pareça ciência acabe merecendo a mesma credibilidade. Se o cidadão acredita que astrologia é ciência, por que não consultar os astros antes de tomar decisões importantes?
Talvez a resposta esteja então em fomentar não somente confiança, mas a compreensão. Compreender os processos da ciência, entender como a ciência funciona, quais são seus métodos, seus atores, o contexto em que ocorre, pode construir uma relação de confiança embasada, e não cega. Não se trata de querer transformar todo mundo em especialista, mas de fornecer ferramentas e habilidades que permitam uma análise crítica e racional da informação científica.
Além do letramento científico
Relatório da Academia Nacional de Ciências dos EUA (NSA) resume conceitos presentes em diversas definições de “letramento científico”. Este termo é usado em educação para tentar definir quais seriam as habilidades e competências necessárias que possibilitem aos indivíduos uma compreensão do processo, um entendimento da ciência como atividade humana, e a avaliação das evidências cientificas para tomada de decisões.
Para fins de educação em ciência, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) define letramento científico como a capacidade de “pesquisar, avaliar e usar informação científica para tomada de decisões e ações”.
Na prática, porém, ensinar letramento científico não é tão simples assim. Se por um lado temos estudos que apontam a importância da compreensão da ciência para não ser enganado por desinformação, há outros que mostram que só informar é insuficiente, e que crenças não justificadas são motivadas por vieses políticos, ideológicos e de pertencimento a grupos. Diversos autores demonstram que não basta ensinar método e processo científico para promover as competências necessárias para não ser enganado por desinformação e pseudociência.
É preciso, portanto, criar sistemas eficazes para ensinar crianças e jovens a pensar de forma racional e crítica. Desenvolver nesta população o pensamento científico como ferramenta de processo decisório, independentemente de que carreira profissional seguirão no futuro, é urgente.
Schmaltz e Lilienfeld sugeriram em 2014 o uso de pseudociências como ferramenta para treinamento em pensamento científico no ensino superior. Os autores defendiam que, com o aumento da circulação de desinformação, ensinar os alunos a diferenciar ciência de bobagem era essencial. Usando exemplos de práticas e crenças não justificadas, os professores instruíam sobre falácias lógicas e armadilhas da mente que fazem com que muitas práticas pseudocientíficas pareçam funcionar.
Fasce e Picó, por sua vez, investigaram o uso do letramento científico como uma vacina para escapar de pseudociências ou, mais precisamente, o que chamavam de crenças não justificadas, incluindo crenças pseudocientíficas, no paranormal e em teorias conspiratórias. Eles encontraram correlações entre conhecimento científico e confiança na ciência como preditores de crenças em pseudociências e no paranormal, mas não com teorias da conspiração, onde a correlação era bem mais fraca.
Já Dyer e Hall tiveram resultados muito promissores para o letramento científico. Os pesquisadores fizeram um teste controlado para o ensino de pensamento critico na redução de crenças não justificadas. Nele, alunos de graduação da Universidade Estadual da Califórnia foram divididos em três grupos. Um grupo participou da disciplina de Dyer e Hall sobre ciência e pseudociência, em que abordaram diretamente exemplos de pseudociências como astrologia, homeopatia, discos voadores etc. Já os outros dois grupos frequentaram cursos regulares de metodologia científica.
Questionários foram aplicados aos três grupos antes e depois dos cursos, e mostraram que os alunos do curso específico de pseudociências apresentaram uma diminuição drástica das crenças não justificadas na comparação com os estudantes que passaram pelos cursos regulares, para os quais quase não se observou diferença. A crença em teorias da conspiração, por sua vez, foi menos abalada, mas mesmo assim teve queda entre os alunos do curso especial. Os autores concluem assim que a estratégia educacional de abordar diretamente pseudociências como ensino de letramento científico é mais efetiva.
Experiência pessoal
Minha contribuição pessoal para o ensino de pensamento crítico começou em 2017, com a disciplina “Comunicação Pública da Ciência”, oferecida no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), com a professora Lourdes Isaac. Apesar de focada em comunicação de ciência, a ementa do curso trazia noções de como falar de pseudociência e promover letramento científico junto à população não especialista. O curso foi oferecido até 2020. Em 2021, surgiu novo desafio: fui convidada para lecionar na Escola de Relações Internacionais e Políticas Públicas da Universidade Colúmbia, nos EUA (Columbia SIPA). A ideia era justamente desenhar um curso sobre o uso de evidências científicas em políticas públicas.
Novamente, letramento científico e uma compreensão básica de como a ciência funciona, seriam necessários. Se já era difícil ensinar pensamento crítico para alunos de cursos de ciência, como mostraram Dyer e Hall, imagine para alunos de políticas públicas e diplomacia, que não necessariamente têm formação em ciência, mas precisam frequentemente tomar decisões informadas por conhecimento científico.
Haynes e colaboradores alertaram para a dificuldade do formulador de políticas públicas de escolher um especialista para atuar como consultor científico. Peter Gluckman, que foi assessor especial de assuntos científicos da Nova Zelândia, relata as dificuldades de aconselhar governos. Treinar diplomatas e especialistas em administração pública para fazer a interface entre ciência e governo parecia, portanto, essencial. A pandemia de COVID-19 contribuiu para escancarar como a falta de profissionais capazes de fazer esta ponte pode ser desastrosa.
Surgiu então minha disciplina da SIPA, em parceria com o professor Stuart Firestein. Ao mesmo tempo, fui convidada também pela Escola de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo para criar uma disciplina similar, e mais tarde, em 2022, uma disciplina de Diplomacia Científica para o curso de mestrado profissional.
O que todas estas disciplinas têm em comum é uma parte obrigatória de letramento científico, um treinamento para saber separar o que é ciência feita com respeito às evidências do que é pseudociência ou ciência de má qualidade. O objetivo dos cursos é apresentar a ciência como uma ferramenta para o futuro gestor público, deixando claro que é apenas UMA das diversas ferramentas que vão influenciar o processo decisório. As aulas contam com noções de filosofia da ciência, testes clínicos, vieses cognitivos, falácias lógicas, ferramentas de participação decisória da população, e estudos de casos de decisões de governos que ignoraram a ciência, e suas consequências.
O retorno dos alunos e das instituições tem sido excelente. O próximo passo é estabelecer métricas e parcerias com outros docentes que também ensinam pensamento crítico. Para isso, fundei com colegas que ministram cursos similares a Lilienfeld Alliance para o ensino de pensamento crítico e racional, um hub para professores universitários, para trocar experiências, ideias, atividades, e principalmente, avaliar resultados. Já temos mais de 50 participantes, de diversos países.
Em seu livro “Retorno ao Admirável Mundo Novo”, Aldous Huxley propôs uma “educação para a liberdade”, que prepararia o indivíduo para encarar criticamente as mensagens da propaganda política e comercial. Ele previa que este projeto sofreria oposição, que críticos diriam que isto criaria uma população cínica e desprovida de valores. Acredito que seja exatamente o oposto: a habilidade de pensar criticamente, com respeito às evidências científicas, é o que constrói os valores de uma sociedade democrática.
Natalia Pasternak, Microbiologista, Presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC) e Professora pesquisadora na Columbia University.
Este artigo foi republicado do The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.