O cérebro é como qualquer outro órgão, sendo ele o produto de processos evolutivos. Da mesma forma, a neurociência tem reforçado ideias filosóficas de materialismo sobre a mente em detrimento do dualismo cartesiano. Sendo assim, existe uma boa justificativa para pensar que:
- sendo a mente o resultado de fenômenos cerebrais;
- sendo o cérebro o resultado de processos evolutivos;
- podemos concluir que a mente também é o resultado de processos evolutivos.
A menos que você seja um criacionista, ninguém sério discordaria desse argumento de que a evolução teve pelo menos algum grau de papel na formação da mente humana e de outros animais. No entanto, uma coisa é dizer que a evolução teve um papel em sua origem e formação; outra é debater como esse processo se deu. Dentro da chamada psicologia evolutiva existem diferentes abordagens, algo já mencionado em um texto da página “Quantas psicologias evolutivas existem?”. Dentre estas, uma das abordagens mais sistemáticas e que tem tido mais respaldo acadêmico é a chamada escola cultural (também conhecida por teoria da dupla-herança, coevolução gene-cultura ou psicologia cultural evolutiva – PCE).
Proposta pelo biólogo Peter Richerson e pelo antropólogo Robert Boyd, o foco dessa abordagem de pesquisa tem sido mostrar como, ao longo da evolução humana, a cultura não apenas se originou graças à evolução do cérebro, mas, uma vez aparecendo, se tornou uma força evolutiva tendo um papel nos padrões de seleção natural. Exemplos de fatores culturais impactando a evolução humana incluem desde a resistência à lactose em sociedades de consumo de leite (Laland & Brown 2011), que tem atuado em alguns povos, até o papel do cozimento de alimentos, que permitiu que o cérebro humano aumentasse de tamanho (Fonseca-Azevedo & Herculano-Houzel 2012) em nossa linhagem. No entanto, embora essa linha de pesquisa tenha surgido inicialmente para explicar a evolução da linhagem humana, sabemos que a aplicação é muito mais ampla, com a cultura também tendo um papel na evolução de outros grupos de organismos.
A predominância da cultura em outras espécies
Existem múltiplas definições do que é cultura na literatura, mas a definição utilizada por defensores da PCE é: “Cultura é o conjunto de informações socialmente aprendidas e armazenadas no cérebro dos indivíduos, sendo capaz de afetar o comportamento destes” (Richerson & Boyd 2008). Dentro dessa definição, podemos dizer que, embora os seres humanos tenham os padrões culturais mais complexos que outras espécies (em parte, inclusive, pelo maior número de neurônios do córtex que permite maior abstração na nossa espécie), a cultura não é algo exclusivo de humanos, já sendo documentada em múltiplos organismos diferentes, como outros primatas, cetáceos, elefantes, aves e mesmo invertebrados (Danchin 2010; Whiten 2021).
Assim como em humanos, outras espécies aprendem diferentes habilidades através da imitação, podendo transmiti-las a gerações futuras. Se alguma dessas habilidades tiver impacto em um comportamento sobre o qual a seleção natural atua (por exemplo, uma prática de obtenção de alimentos ou forrageamento), ou se essa prática expuser a população a uma nova dinâmica seletiva, isso pode resultar em seleção genética ocorrendo de forma distinta quando comparada a outras populações.
Um dos exemplos mais estudados envolve a evolução do comportamento de caça em orcas. Diferentes populações de orcas possuem diferentes formatos corpóreos, e estes formatos parecem estar associados a distintas estratégias de caça. Por exemplo, populações do oceano Antártico são caracterizadas pelos tipos: A, B1, B2, C e D. Membros do tipo A tendem a ser maiores, viver em mar aberto e caçar baleias-minke; o tipo B1, menor, é especializado na caça de pinguins e focas; e os demais tipos, menores, são especializados na caça de peixes, sendo o tipo D ainda alvo de debate e poucos estudos sobre sua dieta (De Bruyn, Tosh & Terauds 2013; Pitman & Balance 2019).
As preferências por alimentos e técnicas de caça são adotadas pelos filhotes por aprendizado dos membros do grupo. Dependendo se o foco da caça são peixes ou outros cetáceos, isso pode resultar na seleção de baleias com corpos menores ou maiores, o que, por sua vez, reforça as práticas de caça (por exemplo, um corpo maior facilitaria uma população com a prática cultural de caçar baleias). Em outra população da Patagônia, algumas orcas iniciaram a prática de encalhar na praia para capturar leões-marinhos na costa. Essa prática possui sérios riscos de encalhamento e morte do animal, sendo assim, atua como um fator seletivo sobre orcas que melhor aprendem a técnica e possuem morfologia mais apropriada para sair do encalhamento.
Um dos fatores que contribui para essa diversidade de práticas culturais é o fato de as sociedades de orcas serem matrilineares, com múltiplas gerações coexistindo dentro do grupo. Isso permite que avós continuem a desempenhar um papel, dando possibilidade de maior armazenamento de memórias e facilitando a transmissão cultural por múltiplas gerações (Rendell 2001). O mesmo ato de manutenção de avós e avôs em grupos da linhagem humana pode ter sido um dos fatores que contribuíram para facilitar a evolução cultural na nossa espécie. É importante salientar que este não foi o único fator para a evolução de uma cultura complexa, mas parece desempenhar um papel importante na evolução da estrutura sociocultural de diferentes espécies sociais (Hawkes 2020).
O caso das orcas é um dos mais detalhados, no qual observamos diferenças fenotípicas mais extremas, mas existem outros casos documentados em nossos parentes mais próximos. Tanto chimpanzés quanto bonobos compartilham um ancestral em comum conosco, que viveu entre 7 e 6 milhões de anos atrás. Ao contrário do que muitos pensam, tanto a linhagem humana quanto a de chimpanzés têm evoluído desde o ancestral comum. Embora o registro fóssil da linhagem deles seja pobre (devido à dificuldade de fossilização em florestas tropicais), fósseis da linhagem humana, como do gênero Ardipithecus, sugerem que houve um aumento da capacidade craniana em ambas as linhagens (Suwa & Asfaw 2009).
Este é um dos motivos pelos quais estudos envolvendo o comportamento dessas espécies atuais não são o melhor modelo para estimar comportamentos do ancestral comum, já que ignoram os processos evolutivos ocorridos no comportamento e na estrutura social de ambas as linhagens. Chimpanzés atualmente possuem uma grande variedade de comportamentos de forrageamento, muitos deles dependendo de técnicas e tecnologias que surgiram nos últimos 4 mil anos (Mercader 2007). Essas técnicas parecem impactar a distribuição e a exposição de populações de chimpanzés a diferentes ambientes. Por exemplo, em uma revisão de 2017 sobre práticas culturais de grandes primatas, Andrew Whiten verificou que:
“Chimpanzés em Bossou, Guiné, foram mostrados depender de duas formas de tecnologia, em particular o quebra-nozes e o pilão (um meio de extrair nutrientes da polpa do ápice das palmeiras) durante a estação seca, quando as frutas escassearam (87); essas variantes culturais permitem que esses macacos habitem habitats que de outra forma seriam inadequados.”
Esses tipos de estratégias, embora não tenham levado ao extremo de diferenças morfológicas como em orcas, podem, ainda assim, abrir caminho para divergências fenotípicas ao expor essas populações a diferentes pressões seletivas. É importante lembrar que a evolução não é linear. Sendo assim, essa tendência de fatores culturais impactarem práticas de forrageamento de chimpanzés pode mudar a qualquer momento, ainda mais com as populações em risco de extinção. Esses são apenas alguns casos, mas já mostram o papel de como a cultura pode ter sido, e provavelmente foi, um fator decisivo na evolução não apenas humana, mas também na evolução de múltiplas outras linhagens e espécies.
Referências
- Danchin, Étienne GJ, et al. “Do invertebrates have culture?.” Communicative & integrative biology 3.4 (2010): 303-305.
- De Bruyn, P. J. N.; Tosh, C. A.; Terauds, A. (2013). “Killer whale ecotypes: Is there a global model?”. Biological Reviews. 88 (1): 62–80. doi:10.1111/j.1469-185X.2012.00239.x.
- Fonseca-Azevedo, Karina, and Suzana Herculano-Houzel. “Metabolic constraint imposes tradeoff between body size and number of brain neurons in human evolution.” Proceedings of the National Academy of Sciences 109.45 (2012): 18571-18576.
- Hawkes, Kristen. “Cognitive consequences of our grandmothering life history: cultural learning begins in infancy.” Philosophical Transactions of the Royal Society B 375.1803 (2020): 20190501.
- Herculano-Houzel, Suzana. “The human brain in numbers: a linearly scaled-up primate brain.” Frontiers in human neuroscience 3 (2009): 31.
- Laland, Kevin N.; Brown, Gillian R. (2011). Sense and Nonsense: Perspectivas evolucionárias sobre o comportamento humano. OUP Oxford.
- Mercader, J.; Barton, H.; Gillespie, J.; et al. (2007). “4,300-year-old chimpanzee sites and the origins of percussive stone technology”. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. 104 (9): 3043–8.
- Pitman, Robert & Ballance, Lisa & Sironi, Mariano & Totterdell, John & Towers, Jared & Wellard, Rebecca. (2019). “Enigmatic megafauna: type D killer whale in the Southern Ocean.” Ecology. 101. 10.1002/ecy.2871.
- Richerson, Peter J.; Boyd, Robert (2008). Not By Genes Alone: How Culture Transformed Human Evolution. University of Chicago Press.
- Suwa, G.; Asfaw, B.; Kono, R. T.; Kubo, D.; Lovejoy, C. O.; White, T. D.; et al. (2009). “The Ardipithecus ramidus skull and its implications for hominid origins”. Science. 326 (5949): 68.
- Whitehead, Hal, et al. “The reach of gene–culture coevolution in animals.” Nature communications 10.1 (2019): 2405.
- Whiten, Andrew. “Culture extends the scope of evolutionary biology in the great apes.” Proceedings of the National Academy of Sciences 114.30 (2017): 7790-7797.
- Whiten, Andrew. “The burgeoning reach of animal culture.” Science 372.6537 (2021): eabe6514.