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As células de von Economo e sua importância na evolução do comportamento social em mamíferos

O cérebro humano é sem dúvidas um órgão incrível. A complexidade organizacional de seus componentes elementares, os neurônios, ainda intriga a comunidade de neurocientistas. Desvendar como estas células codificam e decodificam as informações provindas de nossos sentidos, influenciando em cada aspecto de nosso comportamento, ainda é um desafio.

Existem vários tipos de neurônios no cérebro, e estes podem diferir quanto a sua morfologia, função e localização. Em especial, destacarei um tipo particular de neurônio que tem chamado atenção da comunidade neurocientífica nos últimos 10 anos. Estes são chamados de neurônios de von Economo (Figura 1), estas células podem ser uma novidade evolutiva que possibilitou o surgimento do comportamento social em nossa espécie.

As células de von Economo (VEN)

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Figura 1 – Célula de Von Economo
Fonte: prefrontal.org

As células de von Economo (VEN) foram descritas pelo psiquiatra e neurologista romeno Constantin Freiherr von Economo, em um artigo de 1925. Elas possuem três características principais: o seu formato alongado, a velocidade aumentada de condução do impulso neural, e a sua localização no cérebro. Em alguns casos as VEN apresentam dentritos1 que se prolongam de forma enroscada, como a parte metálica de um saca-rolhas. O formato das VEN facilita a condução do impulso neural, possibilitando o processamento em grande velocidade. Somente duas regiões do cérebro possuem VEN:  o Córtex Insular anterior e o Córtex Cingulado anterior [1].

 Ambas regiões estão envolvidas no processamento das emoções, possuindo vastas conexões com outras áreas do cérebro. Em especial a Ínsula anterior tem recentemente sido reconhecida como uma região importante para sentimentos de cunho social como empatia, que é a habilidade de perceber e partilhar o estado emocional de outra pessoa [2].

 Economo acreditava inicialmente que estas células eram na verdade neurônios em processo de degeneração, já que as encontrou em cérebros de pessoas com Encephalitis lethargica – doença inflamatória do tecido neural, que se alastrou de forma epidêmica na Europa no inicio do século XX. O nome células VEN foi dado pelo neurocientista americano Jhon Allman, em tributo às contribuições de Economo [3].

 

Células VEN e sua relação com o comportamento social

Estas células ocorrem exclusivamente em mamíferos altamente sociais, como grandes primatas (chipanzés, gorilas, orangotangos e bonobos), elefantes, baleias jubartes, morsas e golfinhos. Esses também apresentam células VEN em regiões análogas às citadas anteriormente e, mesmo que a quantidade destas células sejam comparáveis entre as espécies, no grupo dos grandes primatas assim como nos humanos, o número é maior [4].

John Allman
John Allman e sua colaboradora Atiya Hakeem examinando cortes do cérebro de um elefante. Allman é biólogo e pesquisador no Instituto de Tecnologia da Califórnia – Caltech.

A hipótese levantada para explicar a maior abundância de células nos humanos sugere que as células VEN (Figura 2b) teriam surgido a partir de neurônios piramidais (Figura 2a), outro tipo de neurônio abundante no córtex cerebral. Mais especificamente, as VEN teriam surgido em regiões do cérebro que processavam comportamentos sociais úteis à sobrevivência, tais como comunicação ou respeito à hierarquia do grupo [4].

O córtex cingulado e a insula são regiões ativadas em situações como: mães que ouvem o choro de um bebê, ver a pessoa amada recebendo algum estímulo doloroso e, em dilemas de jogos onde cooperação e traição são escolhas possíveis. Sentimentos como culpa, ressentimento, desgosto, empatia, confiança, e amor estão relacionados à atividade nestas regiões. O que todos os casos tem em comum? – contextos sociais onde sentimentos socialmente relevantes para as relações estão em jogo [5].

O processamento das informações relevantes em contextos sociais seria mais rápido e eficaz devido não só à maior velocidade de condução das VEN, mas também pelo grande número de conexões e proximidade com áreas envolvidas com memória, controle da sensação corporal, controle motor da vocalização, raciocínio lógico, e planejamento. Conjuntamente, esses fatores fazem com que a velocidade de dispersão das informações por essas regiões seja rápida, permitindo responder em tempo menor [5].

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Figura 2a – Célula piramidal
Figura 2b – Célula de Von Economo
Fonte: neuronbank.org

VEN e sua relação com as doenças mentais

Embora sejam recentes os estudos sobre o papel das VEN em doenças e transtornos mentais, os dados sugerem um possível atuação nos sintomas afetando principalmente as habilidades relevantes para a sociabilidade do indivíduo. Alguns distúrbios neuropsiquiátricos oferecem evidências para o caso, tais como a demência frontotemporal, esquizofrenia, transtorno bipolar, e autismo [3].

A demência frontotemporal (DFT) talvez seja o caso mais interessante. Ela é uma doença que atinge pessoas com idade superior aos 50 anos, sendo que suas principais características são déficit no autocontrole (desinibição), negligência com higiene pessoal, desatenção, perda de julgamento social e empatia [3].

Willian Seeley, neurologista e pesquisador do Centro de Memória e Envelhecimento da Universidade da Califórnia, comparou o cérebro de pessoas idosas nos estágios iniciais da DFT, Alzheimer e normais. Os resultados foram claros: nos estágios iniciais de DFT há uma perda de cerca de 74% de neurônios VEN. Os exemplares normais não apresentam tal redução.  Os cérebros de pacientes com Alzheimer apresentaram uma redução considerável, porém não abrupta. O que mais intriga nesta doença é que a redução é somente vista nos neurônios VEN, seus vizinhos, as células piramidais permanecem praticamente inalteradas [3], [6].

Em pacientes no estágio final da doença de Alzheimer há uma redução de 60% de células VEN. Neste estágio da doença há maior deterioração do comportamento social. O mesmo padrão de decaimento é visto em casos avançados de transtorno bipolar e esquizofrenia [3].

William Seeley
Willian Seeley é médico neurologista e pesquisador na Universidade da Califórnia em San Diego. Sua pesquisa procura entender o porquê de alguns neurônios serem mais vulneráveis a certos tipos de demência.

Nos casos de crianças com autismo, há evidência de uma quantidade maior de células VEN, porém elas são inchadas ou deformadas (Figura 3a) além do fato destas serem esparsas uma das outras. Em pessoas sem alguma doença mental, estas aparecem concentradas em pequenos grupos. Ainda não é claro para os neurocientistas o porquê da aparente vulnerabilidade destas células a estes tipos de doença mental [3].

O ponto em comum de todos estes distúrbios psiquiátricos é o comprometimento do comportamento social. Dado a localização dos neurônios VEN em regiões neurais responsáveis pelo processamento emocional, é possível que estas células possuam um papel fundamental no desenvolvimento afetivo-social do indivíduo.

É fascinante observar a sua presença em mamíferos altamente sociais. Os elefantes africanos, por exemplo, demonstram sinais de luto e particular interesse por restos mortais da mesma espécie. Esse tipo de comportamento presente em humanos e outras espécies próximas são traços únicos e, as células de von Economo podem ser uma novidade evolutiva que possibilitou lidar e conviver com semelhantes [7].

1 Prolongações menores que o axônio de um neurônio. Veja mais: http://goo.gl/x8ye3

Texto originalmente publicado no site do Comporte-se Psicologia Científica

Versão em PDF do texto aqui!

Agradecimento

Ao amigo Diogo B. Provete, biólogo doutorando em Ecologia e Evolução na University of Texas at Austin. Pela revisão dos termos de biologia utilizados no texto.

Referências

[1]      B. C. Bernhardt and T. Singer, “The Neural Basis of Empathy,” Jun. 2012.

[2]      V. Mazzola, V. Latorre, A. Petito, N. Gentili, L. Fazio, T. Popolizio, G. Blasi, G. Arciero, and G. Bondolfi, “Affective response to a loved one’s pain: insula activity as a function of individual differences.,” PloS one, vol. 5, no. 12, p. e15268, Jan. 2010.

[3]      C. Butti, M. Santos, N. Uppal, and P. R. Hof, “Von Economo neurons: clinical and evolutionary perspectives.,” Cortex; a journal devoted to the study of the nervous system and behavior, vol. 49, no. 1, pp. 312–26, Jan. 2013.

[4]      E. A. Nimchinsky, E. Gilissen, J. M. Allman, D. P. Perl, J. M. Erwin, and P. R. Hof, “A neuronal morphologic type unique to humans and great apes,” Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 96, no. 9, pp. 5268–5273, Apr. 1999.

[5]      J. M. Allman, N. A. Tetreault, A. Y. Hakeem, K. F. Manaye, K. Semendeferi, J. M. Erwin, S. Park, V. Goubert, and P. R. Hof, “The von Economo neurons in the frontoinsular and anterior cingulate cortex.,” Annals of the New York Academy of Sciences, vol. 1225, pp. 59–71, Apr. 2011.

[6]      W. W. Seeley, D. A. Carlin, J. M. Allman, M. N. Macedo, C. Bush, B. L. Miller, and S. J. Dearmond, “Early frontotemporal dementia targets neurons unique to apes and humans.,” Annals of neurology, vol. 60, no. 6, pp. 660–7, Dec. 2006.

[7]      K. McComb, L. Baker, and C. Moss, “African elephants show high levels of interest in the skulls and ivory of their own species.,” Biology letters, vol. 2, no. 1, pp. 26–8, Mar. 2006.

Marcelo Zanotti da Silva

Marcelo Zanotti da Silva

Aluno do curso de Psicologia da UFES. Interessado por pesquisa desde cedo na graduação, aspirante a analista do comportamento e estudante de neurociências. Atualmente em um estágio de pesquisa no Human Brain Stimulation and Electrophysiology Laboratory na University of Texas at Austin.