Bento de Espinosa nasceu em Amsterdã, na Holanda, em 1632. Aos 23 anos foi excomungado pela sinagoga de judeus portugueses da cidade, que provavelmente queria se distanciar dos ensinamentos de Espinosa. Seu Tratado teológico-político sofreu ataques posteriores de teólogos cristãos e acabou banido em 1674 – destino comum à obra do filósofo francês René Descartes. O furor motivou Espinosa a adiar a publicação de sua maior obra, Ética, lançada postumamente.
Espinosa era um homem modesto, cioso da moral, recusou vários cargos bem remunerados, como o de professor, para preservar a liberdade intelectual. Levou uma vida frugal em vários lugares da Holanda, sobrevivendo do ensino particular de filosofia e como polidor de lentes. Morreu de tuberculose em 1677.
Como a maioria das filosofias do século XVII, o sistema filosófico de Espinosa tem a noção de “substância” em seu cerne. Esse conceito pode ser remontado a Aristóteles, que questionou a natureza do objeto que permanece o mesmo ainda que passe por uma mudança. A cera, por exemplo, pode derreter e mudar de forma, tamanho, cor, cheiro e textura, e ainda assim permanecer “cera”, instigando a questão: a que nos referimos quando falamos em “cera”? Já que pode mudar de todas as formas perceptíveis, a cera também deve ser algo além de suas propriedades perceptíveis, e para Aristóteles esse algo imutável era a substância da cera. De maneira mais geral, substância seria algo que tem propriedades, ou aquilo que está sob o mundo da aparência.
Espinosa empregou o termo “substância” de maneira similar, definindo-a como aquilo que explica a si mesmo – ou aquilo que pode ser compreendido conhecendo-se apenas sua natureza, em oposição a todas as outras coisas. Por exemplo, só se compreende o conceito “carroça” com referência a outros conceitos, tais como “movimento”, ” transporte”, e assim por diante. Além disso, para Espinosa, só podia haver uma substância, porque se houver duas, compreender uma acarretaria entender sua relação com outra, o que seria uma contradição à definição de substância. Ele argumentou que, já que há apenas uma substância, não pode haver nada, de fato, exceto essa substância, e tudo o mais é, em certo sentido, uma parte dela. A posição de Espinosa é conhecida como “monismo de substância”: afirma que todas as coisas são essencialmente aspectos de uma única coisa, em oposição ao “dualismo de substância”, que defende que há essencialmente dois tipos de coisas no Universo, em geral definidos como “mente” e “matéria”.
Deus ou natureza
Para Espinosa, a substância subjaz a nossa experiência, mas também pode ser conhecida por seus vários atributos. Ele não especificou quantos atributos, mas disse que os seres humanos, ao menos, podem conceber dois: o atributo da extensão (fisicalidade) e o atributo do pensamento (mentalidade). Por essa razão, Espinoza também é conhecido como “dualista do atributo”. Ele afirmou que os dois atributos não podiam ser explicados um pelo outro, e deviam ser incluídos em qualquer explanação completa do mundo. Quanto a substância em si, Espinosa argumentou que estaríamos certos em chama-la de “Deus” ou “natureza” (Deus sive natura): aquilo que explica a si mesmo, que na forma humana vê a si mesmo sob os atributos do corpo e da mente.
No nível das coisas individuais, incluindo seres humanos, o dualismo de atributo de Espinosa foi projetado em parte para lidar com a questão de como interagem corpos ou mentes. As coisas que sentimos como corpos ou mentes individuais são, de fato, modificações de substância única, conforme concebidas sob um dos atributos. Cada modificação é algo físico (na medida em que concebido sob o atributo da extensão) e algo mental (na medida em que concebido sob o atributo do pensamento). Em particular, a mente humana é uma modificação da substância concebida sob o atributo do pensamento, e o cérebro humano é a mesma modificação da substância concebida sob o atributo da extensão. Dessa forma, Espinosa evitou qualquer questão sobre a interação entre mente e corpo: não há interação, apenas uma correspondência.
No entanto, a teoria de Espinosa o comprometeu com a visão de que não apenas os seres humanos são tanto mente quanto corpo. Mesas, pedras, árvores – todas as coisas seriam modificações de uma substância sob os atributos de pensamento e extensão. Tais objetos seriam tanto físicos quanto mentais, embora sua mentalidade seja muito simples, de modo que não deveríamos chamá-la de mente. Esse aspecto da teoria de Espinosa é difícil de aceitar ou entender para muitas pessoas.
O mundo é Deus
A teoria de Espinosa, explicada inteiramente na Ética, é frequentemente classificada como uma forma de panteísmo: a crença de que Deus é o mundo e de que o mundo é Deus. O panteísmo costuma ser criticado pelos teístas (crentes em Deus), que o classificam como um ateísmo com outro nome. No entanto, a teoria de Espinosa é de fato muito mais próxima do panteísmo: a visão de que o mundo é Deus, mas que Deus é mais do que o mundo. Para o sistema de Espinosa, o mundo não é uma massa de coisas materiais e mentais. Em vez disso, o mundo das matérias é uma forma de Deus, como concebida sob o atributo da extensão; e o mundo das coisas mentais é essa mesma forma de Deus, concebida sob o atributo do pensamento. Portanto, a substância única ou Deus é mais do que o mundo, mas o próprio mundo é inteiramente substância ou Deus.
O Deus de Espinosa, contudo, é bem diferente do Deus da teologia judaico-cristã. Além de não ser uma pessoa, não pode ser considerado o criado do mundo no sentido encontrado no Livro do Gênesis. O Deus de Espinosa não existe por si só antes da criação, e daí a faz surgir.
Deus como causa
O que Espinosa quis dizer, então, quando se referiu a Deus como causa de tudo? A substância única é “Deus ou natureza” – então, mesmo que para Deus exista mais do que aquelas modificações da substância que constituem nosso mundo, como pode a relação entre Deus e natureza ser casual?
Primeiro, vale notar que Espinosa, em harmonia com a maioria dos filósofos antes dele, usou a palavra “causa” em um sentido muito mais rico que usamos hoje – um sentido que se origina na definição dos quatro tipos de causa de Aristóteles. Estas são: a causa formal, ou a relação entre partes de algo (contorno ou forma, tomando-se uma estátua por exemplo); a causa material, ou a matéria da qual algo é feito (bronze, mármore etc); a causa eficiente, ou aquilo que leva algo a existir (o processo de esculpir); e a causa final, ou o objeto para o qual algo existe (a criação de uma obra de arte, o desejo pelo dinheiro, e assim por diante).
Para Aristóteles e Espinosa, todas juntas definem “causa” e fornecem uma explicação completa sobre algo, diferentemente do significado contemporâneo, que tende a se referir apenas às causas “eficientes” e “final”. Portanto, quando Espinosa falou de Deus ou substância sendo causados por si, ele se referiu àquilo que explica a si mesmo, em vez de apenas gerar a si mesmo. Quando ele citou Deus como causa de todas as coisas, ele quis dizer que todas as coisas encontram sua explicação em Deus.
Deus, portanto, não é o que Espinosa chamou de causa “transitiva” do mundo – algo externo que traz o mundo à existência. Em vez disso, Deus é a causa “imanente” do mundo, que o mundo está em Deus, e que a existência e a essência do mundo são explicadas pela existência e essência de Deus. Para Espinosa, apreciar esse fato é atingir o mais elevado estado de liberdade e salvação possíveis: um estado que ele chama de “bem-aventurança”.
Bibliografia
- Espinosa, Bento de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
- Ponczek, Roberto Leon. Deus ou seja a natureza: Spinoza e os novos paradigmas da física. São Paulo: SciELO – EDUFBA, 2009.
- Garret, Don. Spinoza. São Paulo: Ideias & Letras, 2011.
- Chaui, Marilena. Desejo Paixão e Ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Referências Externas: Bento de Spinoza. In: Razão Inadequada
Disponível em < https://razaoinadequada.com/filosofos-essenciais/espinosa/ >